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2018-07-01

Como nunca perder (e perder como nunca)


Vou só dizer isto e calo-me. A glória neste jogo que mobiliza malucos e lúcidos, burros e espertos, pacíficos e violentos, voltará às quinas, sim, mais uma ou duas vezes neste século. Se gostassem mesmo de futebol, não escreviam nem falavam tanto do que não o é. Mas a verdadeira glória, deixem que vos diga, está e estará sempre nas ligas e nos desportos dos úlltimos. Ou na incrível entrevista de hoje do Souto Moura à E e em todo aquele deslumbramento literário. E, por falar em arquitectura, a verdadeira glória está num filmezinho que anda aí chamado Columbus, em que alguém questiona se o défice de atenção não estará no pai literato que se maça a ver o filho a jogar passado 5 minutos, e não no filho a jogar que (ainda) lê pouco. Sabem o que diz o mundo, a esta hora? Simplifica. Diz que o Cavani afastou o Ronaldo e mais nada. Como tinha dito Ronaldo 3 Espanha 3. Isto não é o meu país, ou pelo menos não é tão pouco nem tão simples.
Está bem, a glória facilita e anestesia algumas dores e deixa a memória e a nostalgia como drogas de resgate de alguns desesperos e desventuras. Mas o que resolve é a atenção. Saber escutar o mundo e o outro. Saber observar. Deste grandíssimo evento - como o são todos os mundiais - fica-me aquele estrondoso jogo com a Espanha e a superação desse atleta excepcional. Mas comovi-me mais com a festa do Panamá no golo de resposta aos 6 de Inglaterra. Agora, como todos, quero sarar. E, como a maioria, espero outras coisas. Bem maior do que esse Espanha Portugal foi a promoção desse outro Portugal, o que joga voleibol, à elite mundial. Lá também temos este Ronaldo da foto, que se chama Alexandre Ferreira. Ganha pouco dinheiro e joga longe de casa, na Coreia. Para o ano, pode até acontecer que Portugal perca todos os jogos na elite. Não serão menos do que os que hoje perderam em Sochi. A adormecer, aqui no quarto ao lado, tenho o meu herói máximo, um que fiz e que agora voa sozinho. Trabalha todos os dias muitas horas, ele e mais uma dúzia, para honrar as quinas num Europeu inédito que se joga a partir de 14 de Julho. Ainda estudam, todos estes heróis estudam, sem qualquer apoio.
Não ganham nada a representar o país, a não ser honra e ventura. Às vezes glória. A tal que voltará às quinas mais uma ou duas vezes neste século e não é grave que não tenha sido hoje. E todos vocês terão o vosso verão e as vossas glórias mais íntimas, uma doença superada, uma notícia boa. Isso sim, é importante. Isso e este abraço que vos deixo. Ser português é maravilhoso.


@pedroguilhermemoreira 2018

Adenda: recordo também o texto com que abri a reflexão sobre estas quase três semanas de Mundial da Rússia 2018, depois daquele estrondoso Espanha 3 Portugal 3:

New York Times. Para ler. Eu não sou o mais entendido dos adeptos e o meu desporto é o voleibol, mas ontem, à medida que as horas passavam, eu (e creio que todos) percebi que tinha acabado de assistir a um momento que ficará na eternidade, mesmo que Portugal não vá longe no Mundial da Rússia. E não é só por Cristiano, que conseguiu pôr um jornal argentino (argentino, cuidem bem) a escrever "a única dúvida é se ele é o melhor de sempre". A nível caseiro já não pode haver essa dúvida. Quanto ao jogo de ontem, eu tive a sorte de não deixar escapar aquele que, para mim, é o artigo perfeito sobre um momento de excepção, a prosa sublime e a atenção ao detalhe de Rory Smith para o New York Times, que escreve também um artigo para a eternidade. Ele diz que a FIFA, se não corresse o risco de perder muito dinheiro, devia fechar já o Mundial e eleger este Portugal 3 Espanha 3 como a final perfeita. E repartir o título pelos dois, digo eu. Uma final que ainda pode acontecer, e Portugal até pode jogar melhor do que hoje e ser campeão do mundo, mas duvido que o jogo e o espectáculo sejam melhores. E a minha cabecinha de português sofredor até estava satisfeita, mas lembrei os falhanços do Guedes, o quase-golo do Quaresma, com os espanhóis a fazerem o que nós devíamos ter feito ao Diego e ao Nacho, ou seja, a serem o camião à frente da baliza, e teríamos ganho. Mas o Rory Smith, que reparou nesse momento do Quaresma, foi à essência do jogo, qual Ortega y Gasset, que considerava o desporto a forma superior da existência humana (e eu envelheço a concordar, cada vez mais, com ele), mostrando também que fazem falta bons escritores e sensibilidades apuradas e multiculturais no desporto. Não esquecer a piada do The Guardian, que diz que Ronaldo devia doar o cérebro a um Museu da Fifa para se poder observar uma força mental do outro mundo. Mas Rory Smith foi ao detalhe de reparar na inteligência da economia e na arte do astro de 33 anos, o que menos correu na equipa portuguesa a seguir a Fonte. Fala dos adeptos espanhóis que ficaram a aplaudir Ronaldo já depois de a equipa de Espanha ter saído. Fala da beleza única do espectáculo entre equipas que podiam estar fragilizadas, e afinal mostraram brilho, Espanha pela saída de Lopetegui, Portugal pelo acordo fiscal do Ronaldo e pelo drama do Sporting e da usurpação da dignidade e excelência desportivas por um bando de arruaceiros. Rory Smith transforma um mero jogo de futebol naquilo que realmente foi: um momento superior de arte. Que mesmo os comentadores tacanhos sentiram, mas dificilmente nomearão como Rory. E, sem superlativos exagerados, pobres dos que perderam a noite de ontem levando-a à conta de voragem cultural do futebol. Ontem não. Ontem não foi isso. Foi Ortega y Gasset. E ninguém se pode lamentar. Nunca se lamenta o sublime e a beleza. A não ser quando somos egocêntricos feios. Mas isso nós, portugueses e espanhóis, apesar das aparências e dos buços, não somos. Foi uma lição ibérica para a eternidade. E a certeza do melhor de sempre. Kant, disse Adorno, postulou a imortalidade para fugir do desespero. Ortega y Gasset disse melhor ainda: 
"bien sé que a la hora presente me hallo solo entre mis contemporáneos para afirmar que la forma superior de la existencia humana es el deport"

@pedroguilhermemoreira 2018

2018-06-04

Era uma vez a Marta Massada: ícone do tempo absoluto

Começo com uma história da Marta Massada o combate que pretende contribuir para elevar a forma como como o nosso país encara a Alta Competição (que agora se chama Alto Rendimento) e a dupla ou tripla excelência (no desporto e no ensino e até na profissão, como a Marta). E é bom começar por este facto: temos leis piores do que no "tempo" da Marta (o tempo de selecção, porque este ainda é, e será, o tempo da Marta e dos que são como a Marta), quase nunca aplicadas nas universidades, e o país não apoia nem protege os seus melhores atletas e estudantes. O esforço é das federações, dos próprios atletas, dos pais, dos amigos, dos treinadores, dos colegas. Não de Portugal. Mas Portugal pode, se a política mais nobre (onde quer que ela esteja) quiser, mudar isso. Pode estudar modelos de sucesso, como o americano, e importá-los, para que, um dia, ser campeão europeu e mundial não sejam acasos de sorte, nem uma medalha olímpica seja a excepção à regra.

Escolhi a Marta porque ela congrega em si o anti-cliché: é hoje, na prática, uma das ortopedistas desportivas mais conceituadas. Termina conferências citando Mandela sobre a superação e sobre a forma como o desporto nos pode dar um mundo melhor. Fez o curso de medicina em seis anos sem uma média alta, precisamente porque queria o instrumento que o diploma é, não o prestígio académico vazio, mas chegou à excelência com muito trabalho e paixão. Defende que mais valia ter parado o curso e aproveitado oportunidades de se prolongar profissionalmente no voleibol, mas já voltou várias vezes a jogar e não impõe a si própria um prazo de validade. Na sua carreira, foi quase sempre vice-campeã, tendo perdido de forma dura várias finais: no entanto, não é como vice que a vemos, mas como o ícone de uma campeã absoluta. E isto é também um bom motivo de reflexão: o que é um (verdadeiro) campeão. Quer ter voleibol a correr nas veias até morrer. Tem uma carreira internacional a nível de clube e selecção como poucas. É, pois, também, o ícone asoluto da dupla excelência sem clichés: no desporto e na medicina. o ícone do tempo absoluto e não relativizado.

Estou a levantar histórias que relacionem a alta competição e a escola ou universidade. Duvido que conte alguma história que seja um exemplo positivo de como Portugal faz alguma coisa pelos seus atletas, até porque todos eles, habituados à ausência do país na sua excelência, não perguntam o que pode o país fazer por eles, apenas o que podem fazer pelo seu país. Como a Marta, que congrega em si todas as virtudes pessoais e desportivas: paixão, empenho trabalho, dupla e tripla excelência.

Era uma vez, então.

Era uma vez a Marta Massada, estudante de medicina e filha de outra glória do desporto nacional e da medicina, o andebolista Leandro Massada.
Marta está em estágio prolongado pela selecção nacional de voleibol, como ainda hoje acontece (por vezes, dois meses longe de casa e da faculdade e da vida normal, em concentração competitiva absoluta, como tem de ser entre os campeões).
Empenhada levar o curso de Medicina sem atrasos e em não deixar cadeiras para a época especial, pede ao seus seleccionador e treinador da altura uma licença especial para poder ausentar-se o estágio e ir fazer um exame à faculdade. 
Disciplina-se e estuda em pleno estágio, ou seja, o duplo sacrifício, mas que ela, disciplinada, assume.
Chega à faculdade e, ao entrar na sala, o professor, alto e em bom som, à frente de toda a gente, profere a sentença:

"A senhora tem de se decidir: ou o desporto ou a Medicina!"

E fecha-lhe a porta da sala de exame, deixando a Marta de fora e impedindo-a de fazer o exame.

Podemos pensar que é uma excepção no país que temos.
Não é. É a regra. E por isso simbólica.

A Marta é o nosso (primeiro) ícone.

(continua, com mais histórias - até à dupla ou tripla excelência)

PG-M 2018

2017-01-20

Z4


quandos irrompes
para a pipe
o teu corpo está deitado no cosmos
na posição das galáxias
ao longe
percutem supernovas
e silêncio


PG-M 2017
foto de José Rodrigues

2016-12-30

Young and noble champions

(in english in the end) Esta história tenho de contar. Álvaro Gímeno e Guilherme Moreira, os melhores pontuadores absolutos do Torneo Navidad de Voleibol 2016, o Álvaro com quase 4 sets só à sua conta, o Gui com quase 3. Para quem gosta de voleibol, voleibol a sério, e sabe que não é sobre vitória e derrota, mas sobre pequenas histórias particulares e grandes duelos públicos, sabe que assistiu a vários na noite do segundo Espanha-Portugal (3-2). Gostava de destacar dois, entre muitos: o surgimento do Manuel Meirinho. Para um miúdo que veio do zero, como voleibolista, há dois anos, foi notável a garra e o esforço de superação neste jogo - na negra, empatou sozinho o jogo a 3-3, depois do 0-3 inicial (alguns "kill blocks" e picos ao metro, além dos gritos "ronaldianos" que mobilizaram toda a equipa - "siiiiiiiiiiim" e "eu estou aqui").
O outro foi este, entre o jogador fantástico que já é o espanhol Álvaro (mortífero no serviço, potente e inteligente no ataque, eficaz no bloco, enfim, tudo, e que se conserve assim :) ) e o craque aspirante a ser tão bom quanto ele, o cavalheiro de honor :), o meu Gui.

O Álvaro ganhou, mas o mais belo foi a luta, particularmente a forma como o Guilherme se foi artilhando para receber aquele serviços mortíferos. No final, a imagem documenta-o. Não é um cumprimento banal à rede: são sorrisos francos, a sapatadinha carinhosa, o respeito, e, estou certo, um princípio de amizade. Não tenho ilusões: sei bem que a maioria das pessoas, mesmo os amigos, lidam mal com a visibilidade ou com o falível conceito de sucesso, um conceito que sempre detestei. As coisas até podem acontecer e ser mostradas lá em cima, no absoluto, mas estes dois rapazes estiveram onde todos estiveram e esteve o Manel há dois anos: no início, no absoluto zero. E trabalharam muito para chegar aqui - e resistem quando estão lá dentro. É onde estão muitos que podem chegar aqui e mais longe. As conquistas desses também podem e devem ser contadas, desde que não percamos a noção do ridículo. O que aqui lêem é só a festa de um pai orgulhoso. Não acho que isto seja o máximo. É só bonito. Como amante do voleibol, agradeço a estes craques o espectáculo que me ofereceram. E ainda nem 18 anos têm. Ps: alguém identifique o Manel Meirinho aqui, que eu não consigo; mas ele merece ler isto. (já consegui, afinal! :) )
 
This story I have to tell. Álvaro Gímeno and Guilherme Moreira, the best absolute scorers of the Torneo Navidad 2016, Álvaro with almost 4 sets only to his account, Gui with almost 3. For those who like volleyball, volleyball seriously, and know that it is not about victory and defeat, but on small private stories and great public duels, know we watched several on the night of the second Spain-Portugal (3-2). I would like to highlight two, among many: the appearance of Manuel Meirinho. For a kid who came from scratch as a volleyball player two years ago, it was remarkable the claw and the effort of overcoming in this game - in the 5th and final set, he drawed the game alone, recovering from 0-3 to 3-3 (some kill blocks and spikes at one meter and those "ronaldian" war cries that mobilized the all team - "siiiiiiiiim" (yes!) and "eu estou aqui!" (I am here!)).. The other was this, between the fantastic player who the spaniard Álvaro already is (deadly in the service, powerful and intelligent in the attack, effective in the block, anyway, everything, and we ask he is kept like this :)) and the aspiring ace to be so good as he, the gentleman of honor :), my Gui. Álvaro won, but the most beautiful was the fight, particularly the way Guilherme was shining to receive those deadly services. At the end, the image documents it. It is not a banal compliment in the net:
the sincere smiles, the affectionate hand shake, the respect, and, I am sure, a principle of friendship. I have no illusions: I know very well that most people, even our friends, do not deal with the visibility or fallible concept of success, a concept I have always hated. Things may even happen and be shown up there, in the absolute, but these two boys were where everyone was and Manel was two years ago: at first, at zero absolute. And they worked hard to get here - and resist inside the court. It is where many who can get here and further are. Their achievements can and should be counted as long as we do not lose the notion of ridicule. What you read here is just the feast of a proud father. I do not think this is the maximum. It's just beautiful. As a volleyball lover, I thank these players for the amazing performance they offered me. And they are not even 18. Ps: Someone identify Manel Meirinho here, which I can not; But he deserves to read this. (I got it, later :) )

Algumas fotos (some photos):




2016-11-23

te echo de menos

 te echo de menos

a expressão espanhola para saudade também é bonita.

fiz-te de menos

ontem lembrei-me de como foste dos primeiros a dar-nos uma nova noção de tempo


era um funeral, e havia alegria no ar, e não era só a alegria do reencontro com os homens e mulheres mais importantes da nossa vida, os professores, nem aquele belíssimo pânico de os ver procurar com a memória que alunos éramos

estão tão mais bonitos, os professores.
quando eram os nossos professores, eram velhos por natureza.
agora somos nós os velhos e eles da nossa idade.
bonitos e cuidados, sábios, serenos, sem poder

só conhecimento

a alegria eras tu e o comprimento da tua obra


comentei com o lima​ que nunca tinha visto um funeral tão feliz
estavas a descer à terra e havia gargalhadas
o coveiro a devolver-te à matéria original, que é a mesma que resulta de ti, e abraços entre campas

eu de pé a tomar café e a falar de como a linguagem e o silêncio e o ouvido e a atenção revolucionam o próprio tempo
tu és um dos grandes culpados de, afinal, isto não ser só isto e de
morrer não ser bem morrer

depois ouvi falar de ti, do teu apagamento físico, por quem em nosso nome cuidou de ti e te mimou até ao último minuto
um apagamento físico irrelevante para o mundo, ou só relevante na medida do teu sofrimento: nada para lá do que te doeu importa
não havia choro ou abandono ou pena, as pessoas que contavam o drama da tua doença sorriam, porque, a par de cada perda, havia sempre a tua resiliência, a tua teimosia

talvez seja piedade dizer para não te ir ver, porque estavas pele e osso,
estar deitado dá cabo de nós todos, faz-nos desaparecer fisicamente,
faz-nos assumir a postura da defesa perante a impossibilidade de sermos o que nos ergueu e nos fez evoluir

afinal não parecia ser isso o importante para ti

o alzheimer levou-te as forças, o conhecimento - e é injusto
ter-te cabido uma doença do conhecimento

logo a ti

o alzheimer levou-te tudo, mas não a presença de espírito
nunca desapareceste
foste teimoso até ao fim
ressurgiste muitas vezes
estavas deitado, estavas presente,
não o corpo, já não o corpo,
tu

como agora, afinal

já não o corpo, tu

já não conseguias comer sólidos, mas comias bem
o que podias comer
comeste sempre bem

e continuavas a combater pela tua fleuma, pelos teus hábitos,
ainda lutavas pelos artigos dos jornais que querias ler, pedias  a coluna do rangel e, quando ta davam, sorrias, sentavas-te, punha-la perante ti e não lias

nestes útlimos tempos, já não lias

só replicavas o prazer de ler
o prazer de pensar
replicavas a busca do conhecimento
o arrebatamento do passo em frente
o trabalho
a graça disse que, mesmo agora, no fim, quando regressamos à aparência
da criança que nunca deixámos de ser,
cada vez que ela aparecia ias a despacho

a graça aparecia à porta e tu
puxavas de uma almofada e escrevias com o dedo


assine aqui, senhor padre,
e ali,
e ali,


e tu assinavas

todos pensamos na própria morte perante a morte dos outros

na verdade, não pensei muito na minha, ontem.
pensei mais na eternidade

o teu quarto ficou cheio de livros e papéis
e quem te amou sabe que está aí
a eternidade

não apenas a tua, toda a eternidade

aí e no que levamos de ti connosco
e passaremos aos nossos
e os nossos passarão aos seus
e os deles aos deles
intimamente


infinitamente

dormiste sempre no nosso colégio, morreste onde dormiste

deitado na almofada

já não o corpo, tu

como agora, afinal

já não o corpo, tu



PG-M 2016
foto propriedade do Colégio dos Carvalhos

2015-07-31

(Volume 5) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane

V    (volume anterior aqui)

Nota prévia: Dez-cartas, tens um papel para eu alinhar os versos? Começou a tocar "A Portuguesa", ali, all'estremo sud, tão longe de casa, e eu não contive as lágrimas que me queimaram o poema; os nossos heróis de mão sobre o coração e o poema deles a arder assim:
afonso está parado no ar com os braços desdobrados
e as mãos ilegíveis
ilude o palácio na curta para o central
david salta na vertical
a bola voa de costas para a zona dois
guilherme levanta voo da um
roda a roleta e bate
à frente dos três
capum
diagonal limpa a cair
na um do opositor
que devolve
kiko desenha uma prancha
a bola na pinta álvaro
empurra para o ponta
andré sobe e varre
a linha
marco de chaimite
dispara os directos
o terceiro fica
em jogo, diogo a.
faz de muro com
paulinho

a bola ressalta
a bola sobe

diogo o. bate seco
na longa oblíqua
max joga o pensamento no
bloco sobra
o triângulo curto
com sinfrónio
capum
zona um

foram vistos em bando
nas montanhas
de aspromonte
são aves de alma austral
planando por portugal

Bernardi 2015,
nas bancadas do Palazetto Sport de Cinquefrondi

PS: entreguei o papel ao Dez-cartas, que se iluminou de patriotismo e chorou

(continua no volume 6)

também pode ler Volume 1, Volume 2, Volume 3 e Volume 4
 

2015-07-30

(Volume 4) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


IV     (volume anterior aqui)


O quarto era fresco, mas a cama era de casal, o que não seria um problema, não fosse o cochilo algo edipiano do meu amigo filósofo. À décima vez em que ele assumiu a posição fetal trancando a minha perna esquerda entre as dele, resolvi levantar-me. Seriam umas seis da manhã em Itália, portanto cinco no meu relógio interno. Subi e puxei uma cadeira para a janela sobre o Mediterrâneo. Sentei-me com o braço estendido no parapeito. Se eu fosse escritor, teria aqui um problema de cifra. Creio que, para um escritor, todas as emoções intensas serão cifras, aparecem-nos como ovnis no firmamento, a projectar um feixe redondo de luz sobre o bloco do nosso peito e a tentar abduzir os órgãos onde a tradição dá residência aos sentimentos. Felizmente não sou escritor, posso limitar-me a sentir e, se preciso fosse, em vez de escrever chorava o que naquele cenário transcendesse as minhas forças e o corpo em si. As lágrimas viriam quentes, como as águas daquele mar, azuis como o seu reflexo. O tempo passa depressa quando se observa a perfeição: creio que somos narcotizados e cada minuto vira fatias mais grossas da hora. O Dez-cartas apareceu esgrouvinhado pelas oito, perguntou se era verdade, se estávamos mesmo ali, se houvéramos atravessado o Lácio a remoer, se tínhamos atravessado as montanhas mais míticas a olhar para o relógio, se trincáramos sandes de presunto e ricotta em estações de serviço a queixarmo-nos dos lavori in corso. Era isso mesmo. Abracei-o por me dar mais sentido e proporção do que qualquer escritor, mas expliquei-lhe - uma necessidade dos heterossexuais com teias de aranha na cabeça, como eu - que não era gay nem pensava tornar-me um, muito menos em Itália, pedi-lhe que não ficasse magoado comigo por, na próxima noite, eu patrocinar a empreitada de uma muralha de almofadas na linha central da nossa cama de casal. Então começámos a subida para a prima collazione do Giovanni. Não há descrição possível para aquela subida para  o pequeno almoço. Nos dias seguintes o Dez-cartas suplicar-me-á para levar carro, mas eu vou recusar por duas ordens de razão: é perigoso conduzir o carro alugado naquelas quelhas e não temos franquia zero, a primeira; viver a aldeia é vivê-la como a vivem os locais, e os locais não pegam no carro por tudo e por nada, a segunda. Por isso, caluda, o Giovanni só veio de Panda ontem à noite porque tinha um espectáculo a decorrer no seu bar. Pois a subida só se pode fazer com o rabo para trás e o peito quase no chão: de facto, as velhas italianas não sobem assim por velhice, mas por sabedoria. Esqueçam lá o elevador da glória, ou então concedam-lhe ainda mais inclinação e multipliquem a extensão por quatro. Mas talvez seja injusto dizer que qualquer pequeno almoço sabe bem naquelas condições. Os croissants e os brioches são fresquíssimos e, pelo visto, uma tradição italiana que o pão, na prima collazione, não é. O Giovanni trouxe também, à margem, um iogurte gelado de café que nos deixou os olhos cerrados. Os bofes à chegada haviam sido substituídos por gemidos. O Giovanni não pesca uma palavra de inglês, o que, neste contexto, deixou a mesa ainda mais animada e gesticulante. Depois de atravessar a bonita Piazza Garibaldi, de onde este herói italiano lançou a ofensiva para a libertação de Itália da Áustria, tem-se uma maravilhosa vista sobre a marina, que é como em Itália se chama às povoações que servem o mar. O Giovanni aconselhou-nos a ir à praia Groticelle, perto do Capo Vaticano, que ele vendeu como uma das mais belas do mundo. Sem desmerecer, temos umas cinquenta, entre o Algarve e Lisboa, tão ou mais bonitas, mas o que não temos é água do mar a trinta graus. O Dez-cartas parecia um bebé excitado, sempre a chamar-me para a água, mas eu precisava de deixar assentar a existência. Mesmo depois das duas horas matinais de meditação, tinha acabado de conduzir trinta minutos entre Nicotera e Capo Vaticano: recordo, estou em Itália, na Calábria. Sei bem que temos de nos adaptar à condução em todos os países, e, mesmo dentro de Portugal, há alguma diferença entre Lisboa e Porto (pensamos, de parte a parte, que os outros é que são os loucos), mas nunca mais digo mal dos condutores portugueses depois desta meia-hora. Em abono da verdade, os calabreses não são tão agressivos como os nós, ou seja, fazem as asneiras e toleram as asneiras dos outros quase em silêncio, ao contrário de nós, que, ao mínimo comportamento desadequado ou desritmado, perseguimos e insultamos o condutor relapso. Os calabreses não. Passam contínuos de forma descarada, não dão pisca para nada, estacionam de repente na berma, abrem a porta e saem antes de nós, que circulamos imediatamente atrás, passarmos, só buzinam para se cumprimentarem, não para reclamar. A adaptação é no sentido da ocupação do espaço: se nos aproximamos de um cruzamento, não devemos ser cautelosos, ou eles entram mesmo - devemos, sim, acelerar para ocupar o nosso território de forma assertiva. É menos perigoso assim, sendo lavajão como eles. Esta personalidade do lascia-fare acabará por se incorporar em nós na forma de generosidade. Este jeito de se atirarem de cabeça, primeiro, e perguntar depois é, aliás, a autenticidade apaixonada que muitos de nós procuram na própria vida. Pois eu pensava nisto enquanto o outro se atirava de cabeça para a água cristalina e quente do Mediterrâneo. Dividimos um spaguetti pomodoro basílico com os pés na areia, fomos a casa tomar banho e trocar de roupa, estava tanto calor que viemos mais molhados do que chegámos, mas sem sal. Vestimo-nos como tiffosi portugueses e agora só faltava encontrar o pavilhão. Não foi fácil, porque os italianos dão indicações como se todos dominássemos perfeitamente os princípios básicos do vocabulário das indicações em italiano e porque só um em cinquenta fala inglês. Se não sabemos, por exemplo, que "pavilhão" se diz em italiano "palazetto sport", não vamos a lado nenhum. Pois o pavilhão de Cinquefrondi ficava depois de um improvável e estreito túnel que parecia levar ao próprio inferno. Mas não. Em breve estaríamos sentados no paraíso, ou seja, nas bancadas gotejando suor e derramando a honra pátria e a beber o spresso lungo e a comer a maravilhosa macedonia (salada de frutas) do bar do Gianluca e do Nicola. Nada será o mesmo depois de Cinquefrondi. Hoje os rapazes usam o equipamento alternativo, calção azul e camisola branca, os italianos nas bancadas dizem que parece a Itália. Preparo-me então para fazer um poema com a arte dos nossos voleibolistas. Dez-cartas está maravilhado. Olha como eles voam, Bernardi! Olha como eles voam. Quero contar-te a final daquele mundial dos meus ídolos italianos, Dez-cartas, mas primeiro vou fazer um poema sobre estes doze. Do campo começam a vir sorrisos. Ver a bandeira portuguesa no punho de portugueses a três mil quilómetros de distância já não é só o capricho de um parasita que usou os retroactivos de uma pensão social rafada para ajudar à criação de um mito precoce. Em breve se calarão os Sigarette do Neffa e começará a portuguesa do Alfredo Keil, que os nossos meninos não ouvirão apenas em sentido, como dizem as regras de etiqueta, mas sentindo activamente a honra, à americana, com as mãos direitas sobre os respectivos corações.

(continua no Volume 5)
também pode ler Volume 1, Volume 2 e Volume 3

PG-M 2015

2015-07-29

(Volume 3) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle italiane



III    (volume anterior aqui)

O avião deu várias voltas a Roma. Disse-me o Dez-cartas, entretanto esperto, que o piloto aguardava autorização da torre de controlo para aterrar. Os atletas nacionais foram levantando a cabeça à medida que o movimento da nave se tornava menos coerente. A cada volta o avião assumia uma grande inclinação e os "olha o Coliseu", "olha o Vaticano" do Dez-cartas irritavam-me a mim e excitavam os miúdos, que olhavam de forma oblíqua para trás a ver se ele estava a brincar e depois procuravam nos terraços de Roma, pelas janelitas do avião, a solução. Os nervos fizeram-me recapitular a meia-final do mundial de voleibol de 90 entre o Brasil e a Itália e o Dez-cartas pareceu genuinamente interessado, até porque quis saber onde era a zona um, eu disse que era logo a do serviço e que as zonas, no court de voleibol, se contavam ao contrário da rotação, que por sua vez se fazia no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, a rotação, em voleibol, é a favor do tempo, mas conta-se contra ele. Então, deixa-me ver, o Lucchetta, para bater a bola ao centro da rede para uma zona entre a um e a dois...hum....deve ter sido muito bonito. E quando dizes segunda linha, queres dizer o quê? Há uma linha riscada a três metros da divisória dos campos que define o ataque e a defesa. Atacas à frente dela, defendes atrás dela. O ataque tem uma área que é metade da defesa. Quando atacas atrás da linha dos três metros, atacas de segunda linha. E o cubano Despaigne atacava assim? O Despaigne era solicitado em quase todos os pontos do campo. E era eficaz? Muito. Saltava atrás dos três metros, batia em voo na projecção do metro e meio, de cima para baixo, com muita violência, muitas vezes a quatro metros de altura. Os miúdos olhavam de lado. Os parolos falam de voleibol? Olha o Coliseu, olha o Vaticano, ai que estamos a descer, é como se o avião fosse pisando o degrau inferior, os flaps das asas cada vez mais abertos, travão a fundo, palmas, estamos no chão. Abraço o Dez-cartas comovido. Estavas com medo? Sim, isso e nem acredito que estou na Itália com que sonhei toda a minha vida. Começámos a odisseia aeroportuária para ir buscar o carro alugado. Os balcões romanos de aluguer pareciam a fila da sopa, com a agravante de que não se pode reclamar qualquer dignidade para a necessidade de um carro, muito menos compará-la com a fome, disse, e com toda a razão, o Dez-cartas. Mas isto é triste. E a ansiedade na cara das pessoas, certas de terem sido apanhadas numa espécie de armadilha? E as surpresas, e os sobre-custos? Chegou a minha vez e comecei a aprender. Perguntaram-me se aceitava um Panda automático. Nunca conduzi um carro automático. A minha interlocutora na alugadora disse que também não, que me tentaria arranjar um carro melhor, porque os Pandas manuais estavam todos ocupados - melhor, deixe-me ser sincera, disse ela, não mandamos carros menos seguros para o sul de Itália -, mas que, além disso, havia um problema. Nunca tinha usado o cartão de crédito que o banco teimara em dar-me. Mas a Nádia da agência de viagens pediu-me tantas vezes um cartão de crédito que eu cedi o meu e dei-lho. E assim reservou ela tudo, avião, carro, dormida. Os valores só seriam descontados no final, mas disseram-me no balcão da sopa que o meu cartão não estava autorizado. O Dez-cartas tinha um, mas não conduzia, não pode ser. Ofereceram-me o telefone para ligar à Nádia, mas a Nádia disse que não podia fazer nada, que provavelmente tinha um plafond. Mas se eu ainda não gastei tostão e eles todos aceitaram as reservas e tenho para aí dez mil euros à ordem? Tentei que me aceitassem a garantia em dinheiro, mas nada. São regras. O Dez-cartas via-me nervoso e pedia, ao longe, que me acalmasse. Estava de guarda às malas. À volta dele a diáspora. Pelas minhas contas, eram pelo menos sete horas de viagem para o sul de Itália e os meninos desfilavam nas ruas de Cinquefrondi às oito da noite. Era quase uma da tarde. Comecei a choramingar. A minha interlocutora na alugadora chamava-se Cristina Ribaldo, era muito magrinha e tentou acalmar-me dizendo que conhecia muito bem um escritor português. Como se chama, perguntei eu. O livro era "Sostiene Pereira" ou algo assim. Ah, mas esse não é português, é italiano, chama-se Tabuchi. Mas agora isso não interessa. Sostiene Bernardi que a aventura italiana não pode acabar entre as sopas de um aeroporto. Fui tomar um café e pensar numa solução. A cafetaria era sporca, o empregado da cafetaria sporco era e ainda por cima esperto, fartava-se de mandar bocas na fímbria dos lábios que nem os italianos percebiam. Pedi um Spresso Lungo, veio um curto. Ouça lá, eu disse lungo. E ele, com uma unha de tocar guitarra ostentando uma linha preta de quase meio centímetro de sujidade, meteu a ponta do dedo dentro da pequena chávena e perguntou: e isto não é lungo? Não. E ele, contrariado e ruminando as piadas para trás, meteu-lhe mais uma gota em cima. Eu disse que não queria saber. Telefonei para o meu balcão, cujo demorou mais de uma hora a atender, e falei com a Sílvia, que, para sorte minha, era gerente e me resolveu a questão noutra hora. A magra da Cristina Ribaldo levantou-se para pedir autorização do upgrade de carro ao gerente e, realmente, a minha avaliação sobre a sua magreza fora espúria: era cintadinha e vivamente bem feita. Vai levar aqui uma bomba, um Clio ou assim, e eu até entendo que ela pensasse que eu achava o Clio uma bomba, porque eu tinha pedido um Panda. Regressei para junto do Dez-cartas, que me exigiu o sorriso que eu não tinha. Já não vou ver os miúdos. Deixa lá, pá. Mais tarde saberíamos que os ragazzi seriam atropelados por discursos oficiais durante três horas para dez minutos de desfile nas ruas, e só agora estava a começar o maravilhoso mundo da Cantábria, que, como verão, não tem méritos na organização, mas no lascia-andare, e aí reside um pouco do seu encanto e lição ao mundo. A Calábria é Legendriana. Tem o fervoroso coração italiano de tronco nu. Mas já lá vamos. Agora estou a insultar, a meias, o Dez-cartas e a GPS. "A" porque personalizei a menina que fala nos mapas do meu telemóvel e lhe chamo Gabriela Pereira de Sousa. Ora, o Dez-cartas deu a ideia: já que não conseguimos chegar a tempo da apresentação, porque é que não vamos almoçar a Pompeia e ver os corpos suplicantes? Era suposto a Gabriela tirar-nos de Roma, mas ela, em vez de nos levar para Pompeia, levou-nos para Pomeza, na zona industrial de Roma - confesso que aquilo era assustador. No rádio já tocava aquela que viria a ser a canção desta viagem, e que na altura me fez gritar com o Dez-cartas para que desligasse aquilo: "Sigarette", a nova do Neffa (eu nem sei quem é o Neffa, foi o Shazam que me disse). Sigarette la mattina la-la-lalla-la-la-la / sotto questa pioggia fina la-la-lalla-la-la-la. A Gabriela mandava-nos virar para becos sem saída, perdemos mais uma hora e acabámos a almoçar num McDonalds na orla de Roma, a tentar sentir-nos felizes. Quando regressámos à estrada, já ninguém queria ver ou visitar nada, só fazer quilómetros. E assim foi. Velocidade lenta na aproximação a Salerno, experimentação das inacreditáveis áreas de serviço da A3 com 35 graus cá fora, saída para a montanha em fila indiana por causa dos lavori in corso e a noite a cair: disseram-nos, ao longo desta semana, que toda a Itália são lavori in corso, sempre. Muitas horas depois, na aproximação a Vibo Valentia, já dentro da Calábria, finalmente, pudemos pressentir a beleza das vistas que levavam o nosso olhar até Reggio e à Sicília, em frente, mas era só um pressentimento que nos era dado pelo prateado da lua no mar ou pela linha de luzes na costa, ao longe, porque a noite se fechara sobre os montes. O trilho final foi feito por pequenas estradas comunais sem iluminação, e aí a Gabriela, que enlouquecera às portas de Roma, disse presente. E chegámos à nossa aldeia, Nicotera, um povoado antiquíssimo sobre o Mediterrâneo, por quelhas medievais remendadas, com os músculos da cara retesados e alma meia encomendada à providência. Estacionei junto a uma igreja e liguei ao anfitrião, Giovanni, que não falava inglês e tentou explicar onde ficava a que seria a nossa casa num labirinto onde não havia nomes nas ruas. Nessa altura já nem me lembrava que tinha vindo pelo Voleibol. O Giovanni teve de descer a aldeia toda com o seu Panda para nos dizer onde era a casa. Abriu a porta e estava quente, muito quente. Eu e o Dez-cartas começámos a pingar, o Govanni sequinho. Explicou-nos o básico e disse: prima colazzione são duzentos metros a subir até aos Terraços de não sei quê. No dia seguinte saberíamos o que são duzentos metros a subir: nem o Elevador da Glória. O Dez-cartas lá tomou banho num chuveiro que molhava a sanita toda e eu, na janela sobre o Mediterrâneo que só me devolvia prata, chorava a rir.

(continua no Volume 4)

também pode ler Volume 1 e Volume 2

PG-M 2015
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2015-07-28

(Volume 2) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália – Novelle Italiane



II   (volume anterior aqui)

Brasil, Maracanãzinho, 27 de Outubro de 1990, cerca de vinte mil brasileiros nas bancadas, algumas centenas de italianos, meia-final do mundial de voleibol, joga pela Itália a chamada geração dos fenómenos, mas a equipa que limpava tudo, com um magnífico Joe Despaigne como estrela, era mesmo Cuba; – expliquei eu ao Dez-cartas, tentando abstrair-me das manobras do avião no aeroporto de Lisboa,  a preparar a descolagem. Pedi ao Dez-cartas para ficar à janela, era a primeira vez que andava de avião, tudo me parecia fora de escala, tudo menos a jovem selecção portuguesa. Tivemos de ir apanhar o voo a Lisboa, a Nádia, da agência de viagens da nossa aldeia, disse que era a melhor alternativa tão em cima do Europeu, protestou por terem marcado a prova para tão longe e o Dez-cartas ofereceu-se para levar o carro dele – que por acaso é um Panda – até Lisboa e, como viemos de madrugada e o voo era logo às seis e tal da manhã, eu sugeri ao Dez-cartas que deixasse o carro mal estacionado num quelha perto do aeroporto que eles chamam de segunda circular, parece que é a viela que define psicologicamente as classes de tiffosi portugueses e os divide entre o verde da esperança e o vermelho da paixão (há uma versão pessimista, diria mesmo arrivista, de que aqui não curaremos), disse o Dez-cartas e eu não tenho culpa, porque eu só abri a boca para lhe explicar que o preço do reboque pelo estacionamento na segunda circular era mais barato do que o estacionamento no aeroporto durante uma semana. O Dez-cartas manobrou o carro numa zona da segunda circular em que não há rails de protecção e deixou-o ali perto da BP, à sombrinha, debaixo de uma árvore de um jardinzinho muito bonito e prático. Tirámos as bagagens de mão e fizemos aquele bocadinho a pé. Como só levávamos bagaglio a mano, a Nádia disse que podia fazer o check-in online e que podíamos ir directamente ao controlo de bagagem. Como não sabíamos bem como fazer isso, perguntámos a um senhor com uma camisa da Ana, não que algum de nós conhecesse a Ana, mas porque nos pareceu o mais prático, mas ele limitou-se a falar para um walkie-talkie e a gemer monossílabos que nenhum de nós entendeu. Eu sorri-lhe, o Dez-cartas sorriu-lhe, mas nada: ficou, não impávido, não sereno, mas teso e com umas gotículas de suor a escorregar-lhe da testa que o Dez-cartas me explicou serem a sublimação da fúria. É nesta altura que vemos os miúdos da selecção nacional que virão a ser os nossos ídolos e o nosso refúgio, não no farwest, mas all’estremo sud. Primeiro salvamento. Eu e Dez-Cartas estamos vestidos de verde e vermelho da cabeça aos pés, com cachecóis alusivos que adquirimos ao merchandising oficial e dizem “Portugal Young Braves”, para serem entendidos pelo mundo inteiro. Consigo um autógrafo do André M e do Diogo O, porque os outros, embora com aquele sorriso lúteo do medo, não se chegaram às fitas exteriores do check-in. Os corredores para controlo de bagagem são em zigue-zague: faz-se um quilómetro para percorrer quinze metros. Tenho uma condição cardíaca e a menina da segurança, que está formatada para intimidar, tem de me abraçar e amparar. Nem assim consigo passar os líquidos, e tenho mesmo de pagar três euros por uma garrafa de água na zona de trânsito. O embarque foi mais calmo e eu até percebo certas pessoas mais experimentadas que querem fingir que viajar de avião é o seu dia a dia. Nunca olham para os quadros de informações ou, uma vez dentro do avião, também não olham pelas janelitas, lêem muito e nunca rebatem a cadeira antes do tempo, como nós, parolos. E, como eu antecipei que a descolagem ia ser um momento definidor no meu espectro gnoseológico, preferi desviar o assunto para a geração-fenómeno italiana nessa meia-final do mundial de voleibol de 1990. A equipa principal costumava ser Lorenzo Bernardi, claro, e Luca Cantagalli como pontas, Zorzi a oposto, Paolo Tofoli distribuidor, e os centrais, dois Andrea: Gardini e Lucchetta. Lembro-me disto, não sei se foi mesmo assim, mas tu percebes, Dez-cartas. Brasil e Itália estão empatados a 12 na negra. O "murazo" italiano opõe-se ao ataque brasileiro. 13-12 para a Itália. Na jogada seguinte, Bernardi recebe como nos livros, Tofoli passa – colocando as mãos de forma a que o central brasileiro sinta que tem de saltar ao bloco para um bola rápida do central italiano, mas Tofoli empurra a bola para a ponta e Cantagalli bate à linha; 14-12;  Brasil faz um ponto, 14-13, e serve, recebe Cantagalli e corre novamente para a ponta, Tofoli coloca outra vez as mãos de forma a não serem lidas e faz o passe curto, em salto, para o central, Lucchetta, que bate limpo para a zona um. Quer dizer, a bola cai ali na zona intermédia entre a um e a dois. A Itália está na final do mundial do Rio de Janeiro. O avião está no ar. Dez-cartas já dorme. Os miúdos da selecção vão sentados a dez metros de mim, mas, apesar dos meus acenos, nem um olha. Que profissionalismo. Penso que, mal Dez-cartas acorde, tenho de lhe explicar que a final do mundial de 1990 vai ser Itália-Cuba, que Cuba ganhou na primeira fase à Itália por 3-0, e que se ergue esse monstro do voleibol mundial que é o Joel Despaigne, que atacava a mais de quatro metros de altura, bloqueava apenas quinze centímetros abaixo e chegou às trezentas e cinquenta internacionalizações por Cuba. Curiosamente, é um ídolo popular, porque os lugares oficiais tendem a ignorar os diamantes do Fidel, o Despaigne e, mais tarde, o Leonel Marshal, que tinham algumas parecenças em estilo de jogo (dizem as lendas que Marshal chegou a saltar 1,70m). Despaigne acabou por vir, claro, para Itália, onde todo um povo, do voleibol e fora dele, o venera e respeita. Treina uma equipa da segunda liga italiana, mas não sei se ainda salta mais de um metro. Aposto que sim. Esperem que o Dez-cartas acorde para eu lhe contar isto. Não falta muito para chegar a Roma.

(continua no Volume 3)
também pode ler o volume 1 aqui
PG-M 2015
fonte da foto (Andrea Lucchetta)

2015-07-21

(Volume I) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane

 I
Não me chamo Bernardi. No entanto, metade da vila piscatória onde ora resido chama-me Bernardi. Não sabem de onde cheguei, um dia, de repente, nos idos de dois mil e tal, com uma obsessão pela geração de ouro do voleibol italiano e clamando, num sotaque trentino, que Lorenzo Bernardi era o melhor jogador de voleibol de sempre. Que finalmente a FIVB o tinha reconhecido como tal - com efeito, ser o melhor do século XX é ser o melhor de sempre. No dia em que cheguei envergava a camisola número 15 do USA Volleyball Team com Kiraly a encimar o dorsal. Ninguém no Café Central contrapôs que Kiraly tinha ganho a distinção ex-aequo com Bernardi, nem podia saber que, verdadeiramente, eu não gostava de Kiraly. Ninguém no Café Central podia ou queria saber.
A metade da vila que me chama Bernardi considera-me meio louco. A outra metade não  me chama nada nem tem opinião formada. Não é rigoroso dizer, contudo que, estatisticamente, toda a vila me atestou, perante a autoridade sanitária central, como vinte e cinco por centro louco. Não obstante, foi isso que atestou o Doutor Remédios que, como é consabido, conseguiu concluir o curso de Medicina sem nunca ter feito Matemática: conclui ele e atestou que, como metade da vila considerava o indivíduo Barnardi meio louco e a outra metade não tinha opinião formada, conclui-se e atesta-se que tal indivíduo tem vinte e cinco por centro de incapacidade para o trabalho, devendo por isso ser colmatada a falta pela sociedade e ter o indivíduo direito a uma pensão que se fixa em (preencher) Euros. Estive um ano para que o bom do Doutor Remédios preenchesse o valor que me devia ser pago. Entretanto, vivi a esmola. Ontem foram-me pagos os retroactivos. A primeira coisa que o Dez-Cartas, o filósofo do Café Central, me disse depois de lhe mostrar o envelope com o dinheiro e a factura à sociedade, sabendo da minha obsessão por voleibol, é que o filho do advogado que me tratou do caso pro bono parte para Itália amanhã para jogar pela selecção nacional sub-17 de Portugal. Se guardas isso, a senhoria, que é uma ladra, vai roubar-te tudo, nomeadamente exigindo as rendas atrasadas e reparação dos buracos dos parafusos para afixação de posters emoldurados de voleibol. Depositas o valor legal na Caixa e vais ver a selecção a Itália. Foi pelo Dez-Cartas que soube que o  Doutor Remédios tinha sido remetido administrativamente para a glória de licenciado na confusão dos saneamentos da liberdade - era, pois, um lutador e um indivíduo credível. Adoptei o alvitre como brilhante: o que podia ser melhor para o desfrute da pureza do voleibol do que ir apoiar uma equipa sem adeptos que era o embrião do futuro? Um dia, disse o Dez-Cartas, arrecadarás comenda pelo estatuto de cordão umbilical destes miúdos voadores e o país, não apenas a aldeia, se encurvará deante de ti - e disse-o assim mesmo, não perante, mas deante, com pedante arcaísmo. Fomos ambos à agência de viagens do povo, cuja abriu só para nós -  a agência de viagens tinha a vidraça mais marcada pelas nossas testas do que pelo limpa-vidros, porque lá passávamos horas a estudar folhetos desbotados de viagens impossíveis.

(continua no volume II)

PG-M 2015
fonte da foto

2015-05-10

Atlântico campeão nacional de voleibol

 E aí está. Há três anos campeão da 3ª, há dois campeão da 2ª, há poucas horas o nosso Atlântico da Madalena sagrou-se campeão nacional da 1ª divisão. Só com portugueses. Num jogo épico, em que esteve a ganhar por 2-0 e teve oito match points no terceiro set, permitindo a redução do outro grande finalista, o Castêlo da Maia, com um 35-33 (!!!) - grande jogo do Castêlo - e depois de se deixar empatar a 2, o Atlântico venceu a negra por 15-13, levando o pavilhão do Castêlo (repleto de gaienses) ao rubro. 
Parabéns também ao Benfica, que venceu nos Açores e inaugurou um novo título máximo, campeão de elite. É uma página histórica para Gaia. Ficam abaixo, em vídeo, os momentos finais do jogo do título.