Faltam 2 escassos dias para o insensato e insultuoso encerramento de uma das livrarias históricas do coração do Porto, a Latina: imaginem que salvavam alguém de se afogar e depois a empurravam para a morte. Foi o que aconteceu. Escrevo porque sou livre, tenho conhecimento de causa e posso dizer algumas coisas que não vi ditas: sou livre e não tenho amigos com o poder de desfazer isto. Entre várias estupidezes inexplicáveis da decisão do grupo Leya, grupo que me publica desde 2011 ‒ e eu tenho muita honra de ser um autor Dom Quixote, mas sempre exercerei a minha liberdade e expressarei o meu desacordo, primeiro em privado, mas sempre em público quando os lesados forem as pessoas e o interesse público e os responsáveis surdos à sensatez ‒ , lamento a morte trágica do Pedro Sobral e preferia tê-lo em cena para lhe explicar como é prejudical à imagem do grupo Leya o encerramento de uma livraria que é símbolo de um charme que um grupo financeiro não compra nem alcança por si e que de momento era superavitária e a crescer exponencialmente, o que para um gestor devia ser óbvio com o encerramento da Fnac de Santa Catarina, a vinte metros da Latina. Fiz o mesmo com o Paulo Cunha e Silva quando, depois da luta dos escritores do Porto contra a inenarrável decisão da APEL (a que ironicamente o Pedro presidia, instituição que precisa de corrigir a mão em tantas coisas, sendo uma delas uma gestão transparente do Fundo da Cópia Privada, onde os autores e os livreiros e editoras mais pequeninos estão esquecidos e continuarão a estar enquanto os grandes, por indicação “legal” pouco clara, continuam a repartir entre si o bolo anual de milhões) de acabar liminarmente com 83 anos de Feira do Livro do Porto, a libertamos para ser feita directamente pelo município e até hoje nunca o Porto ter verdadeiramente feito uma feira do livro de tripeiros por tripeiros: devia entregá-la aos livreiros da cidade, como acontece em Madrid: na altura, 2013, foi fácil perceber a perfídia de algumas instituições e seus dirigentes. Depois de os escritores terem reunido apoios várias vezes superiores aos 80.000 Euros exigidos pela APEL para “barracas”, esta recusou a nossa ajuda em telefonema, dizendo que agora era uma questão política. Pois era. Entretanto víamos Rui Rio, por mais que tenha anunciado boas intenções, a abrir garrafas de champanhe dentro de um barco Rabelo a meio do Douro enquanto caíam as torres do Aleixo, casas de tantas famílias e que certamente podiam ser musicadas com a marcha fúnebre do Mozart, mas nunca com champanhe e sorrisos.
Em 2013 o Paulo Cunha e Silva mostrou-se sensível aos argumentos e disse que ia corrigir a mão em próximas edições. Apresentou-se na primeira edição da feira a cumprimentar os promotores (que não estiveram na feira por convite, esse um dos erros do Paulo, mas de forma rebelde ‒ mesmo contra grupos como o Leya, que não queriam estar na feira livre do Porto nem que os seus escritores fossem ‒ , levando livros debaixo do braço e mesas e cadeiras de piquenique para as sessões de autógrafos) do que pode ter sido o único protesto de rua de escritores da História de Portugal, uma quase anedota que conto sempre e pode bem ser verdadeira, porque os escritores não costumam protestar na rua e nós fizemos isso: sem autorização oficial, tomámos a praça da Liberdade, no Porto, enchemo-la de livreiros e de citações, poemas e outros textos de escritores nas árvores. Paulo Cunha e Silva tinha essa capacidade e qualidade de reconhecer o erro. Mas também morreu logo a seguir. Agora temos a Casa onde nasceu o Garrett a cair (e já tinha caído se não tivesse lá o “brasão” de homenagem: ou seja, havia Porto em 1864) e a ser hotelizada sem condições de lá garantir a memória do Liberalismo e do seu maior símbolo. E temos outra vez pouco Porto nisto, em vez de Moreiras temos renascidas Luisinhas Midosis.
Deixem-me atalhar desde já a ignorância do que vi escrito desde que foi anunciado o encerramento da Latina (sobre já não ser a livraria que era): a Latina tinha hoje, obviamente, uma frente de loja dedicada aos que gastam dinheiro em capas e aos turistas. Mas tinha muito mais do que isso: tinha o que muitos não conheciam e que esta excelente foto do André Rolo (JN) retrata bem: mais três ou quatro andares de livros por ali acima e um auditório que só não era usado porque a Leya, verdadeiramente, não queria nem nunca estimulou, ao contrário do que tem feito na Buchholz desde que foi refrescada. Por isso dizia o falecido Pedro Sobral ao Nit no dia de Outubro de 2024:
“A Buchholz não irá, então, fechar portas, visto que não é apenas uma livraria. Por ali, também há apresentações de autores, clubes de leitura e várias outras ações ao longo do ano.”
Um perfeito disparate, insultuoso para quem vive no Porto e gosta verdadeiramente de livros. Não havia porque a patroa já não tinha esse plano para aqui. Espaço e vontade e história e memória havia. Era só querer. E a Leya não queria.
O argumento, também inenarrável, de que esse “não era o negócio da Leya” cai pela base com a metáfora exposta no início deste texto de defesa da dignidade e da decência das pessoas, das instituições e das cidades e sua memória:
Foi a Leya que salvou a Latina. Como autor Leya, orgulhava-me disso. O Pedro também disse que herdou o negócio de livrarias da Oficina do Livro. Não era o caso. Esta livraria estava insolvente e a Leya salvou-a. E bem. Quem mata o que salva?
Termino com aquilo que a Leya deveria ter realmente feito, num dia em que se decidisse comportar como pessoa de bem, que é muitas vezes (não sempre) e o deve a notáveis equipas que nela dão o litro, não a gestão e decisões sem alma e sem respeito pelas pessoas, pelas instituições, pela memória e pelas cidades:
Ter procurado um parceiro no sector, mesmo concorrente, que estivesse interessado em tomar de trespasse, mesmo com novas rendas, um projecto que, sempre o senti, podia ter um crescimento exponencial como teve a Lello, se devidamente feita e “vendida” a sua história e sua beleza, que também é flagrante.
E faço o meu Mea (e nossa) Culpa:
em primeiro lugar, não houve um verdadeiro movimento de fundo para salvar a Latina. A maior parte de nós não quis verdadeiramente saber e assim fica fácil para as gestões sem alma vingarem: percebi isso em cada contacto que fiz. As compras de Natal eram mais importantes.
E Mea Culpa porque vezes sem conta disse aos meus livreiros favoritos, o experiente Joaquim, a querida Isabel (que um dia teve a coragem de me fazer assinar todos os exemplares em loja do “Livro sem ninguém”, que eram uns 8, e acabou por ser premiada pelo risco, porque os vendeu a todos em pouco tempo quando vendia 1 a 2 por mês), o grande Paulo, que tínhamos de trabalhar a história da Latina e começar a programar clubes de leitura e eventos para lá, mas não fomos a tempo nem a patroa estava interessada.
A Latina é morta pela sua salvadora.
Em qualquer latitude isso é profundamente pérfido e triste.
Retiro-me a sonhar com alguém que ainda responda a um das minhas centenas de mails, sendo que um salvamento por grupo de cidadãos (como já foi feito noutras partes do mundo e até em algumas livrarias do país) exigia sempre uma rectaguarda financeira sólida, que não encontrei e não tenho, e, em vez de vertermos lágrimas quando passarmos e percebermos que já não estão lá as estantes e os livros, só tenha mudado a marca e se tenham salvo alguns dos empregos, porque, sou sincero, o abraço de despedida da Isabel doeu mais do que confortou.
Viva a Latina. Viva o Porto.
2 de Janeiro de 2025
Pedro Guilherme-Moreira
Foto de André Rolo (JN)
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