2018-07-01

Como nunca perder (e perder como nunca)


Vou só dizer isto e calo-me. A glória neste jogo que mobiliza malucos e lúcidos, burros e espertos, pacíficos e violentos, voltará às quinas, sim, mais uma ou duas vezes neste século. Se gostassem mesmo de futebol, não escreviam nem falavam tanto do que não o é. Mas a verdadeira glória, deixem que vos diga, está e estará sempre nas ligas e nos desportos dos úlltimos. Ou na incrível entrevista de hoje do Souto Moura à E e em todo aquele deslumbramento literário. E, por falar em arquitectura, a verdadeira glória está num filmezinho que anda aí chamado Columbus, em que alguém questiona se o défice de atenção não estará no pai literato que se maça a ver o filho a jogar passado 5 minutos, e não no filho a jogar que (ainda) lê pouco. Sabem o que diz o mundo, a esta hora? Simplifica. Diz que o Cavani afastou o Ronaldo e mais nada. Como tinha dito Ronaldo 3 Espanha 3. Isto não é o meu país, ou pelo menos não é tão pouco nem tão simples.
Está bem, a glória facilita e anestesia algumas dores e deixa a memória e a nostalgia como drogas de resgate de alguns desesperos e desventuras. Mas o que resolve é a atenção. Saber escutar o mundo e o outro. Saber observar. Deste grandíssimo evento - como o são todos os mundiais - fica-me aquele estrondoso jogo com a Espanha e a superação desse atleta excepcional. Mas comovi-me mais com a festa do Panamá no golo de resposta aos 6 de Inglaterra. Agora, como todos, quero sarar. E, como a maioria, espero outras coisas. Bem maior do que esse Espanha Portugal foi a promoção desse outro Portugal, o que joga voleibol, à elite mundial. Lá também temos este Ronaldo da foto, que se chama Alexandre Ferreira. Ganha pouco dinheiro e joga longe de casa, na Coreia. Para o ano, pode até acontecer que Portugal perca todos os jogos na elite. Não serão menos do que os que hoje perderam em Sochi. A adormecer, aqui no quarto ao lado, tenho o meu herói máximo, um que fiz e que agora voa sozinho. Trabalha todos os dias muitas horas, ele e mais uma dúzia, para honrar as quinas num Europeu inédito que se joga a partir de 14 de Julho. Ainda estudam, todos estes heróis estudam, sem qualquer apoio.
Não ganham nada a representar o país, a não ser honra e ventura. Às vezes glória. A tal que voltará às quinas mais uma ou duas vezes neste século e não é grave que não tenha sido hoje. E todos vocês terão o vosso verão e as vossas glórias mais íntimas, uma doença superada, uma notícia boa. Isso sim, é importante. Isso e este abraço que vos deixo. Ser português é maravilhoso.


@pedroguilhermemoreira 2018

Adenda: recordo também o texto com que abri a reflexão sobre estas quase três semanas de Mundial da Rússia 2018, depois daquele estrondoso Espanha 3 Portugal 3:

New York Times. Para ler. Eu não sou o mais entendido dos adeptos e o meu desporto é o voleibol, mas ontem, à medida que as horas passavam, eu (e creio que todos) percebi que tinha acabado de assistir a um momento que ficará na eternidade, mesmo que Portugal não vá longe no Mundial da Rússia. E não é só por Cristiano, que conseguiu pôr um jornal argentino (argentino, cuidem bem) a escrever "a única dúvida é se ele é o melhor de sempre". A nível caseiro já não pode haver essa dúvida. Quanto ao jogo de ontem, eu tive a sorte de não deixar escapar aquele que, para mim, é o artigo perfeito sobre um momento de excepção, a prosa sublime e a atenção ao detalhe de Rory Smith para o New York Times, que escreve também um artigo para a eternidade. Ele diz que a FIFA, se não corresse o risco de perder muito dinheiro, devia fechar já o Mundial e eleger este Portugal 3 Espanha 3 como a final perfeita. E repartir o título pelos dois, digo eu. Uma final que ainda pode acontecer, e Portugal até pode jogar melhor do que hoje e ser campeão do mundo, mas duvido que o jogo e o espectáculo sejam melhores. E a minha cabecinha de português sofredor até estava satisfeita, mas lembrei os falhanços do Guedes, o quase-golo do Quaresma, com os espanhóis a fazerem o que nós devíamos ter feito ao Diego e ao Nacho, ou seja, a serem o camião à frente da baliza, e teríamos ganho. Mas o Rory Smith, que reparou nesse momento do Quaresma, foi à essência do jogo, qual Ortega y Gasset, que considerava o desporto a forma superior da existência humana (e eu envelheço a concordar, cada vez mais, com ele), mostrando também que fazem falta bons escritores e sensibilidades apuradas e multiculturais no desporto. Não esquecer a piada do The Guardian, que diz que Ronaldo devia doar o cérebro a um Museu da Fifa para se poder observar uma força mental do outro mundo. Mas Rory Smith foi ao detalhe de reparar na inteligência da economia e na arte do astro de 33 anos, o que menos correu na equipa portuguesa a seguir a Fonte. Fala dos adeptos espanhóis que ficaram a aplaudir Ronaldo já depois de a equipa de Espanha ter saído. Fala da beleza única do espectáculo entre equipas que podiam estar fragilizadas, e afinal mostraram brilho, Espanha pela saída de Lopetegui, Portugal pelo acordo fiscal do Ronaldo e pelo drama do Sporting e da usurpação da dignidade e excelência desportivas por um bando de arruaceiros. Rory Smith transforma um mero jogo de futebol naquilo que realmente foi: um momento superior de arte. Que mesmo os comentadores tacanhos sentiram, mas dificilmente nomearão como Rory. E, sem superlativos exagerados, pobres dos que perderam a noite de ontem levando-a à conta de voragem cultural do futebol. Ontem não. Ontem não foi isso. Foi Ortega y Gasset. E ninguém se pode lamentar. Nunca se lamenta o sublime e a beleza. A não ser quando somos egocêntricos feios. Mas isso nós, portugueses e espanhóis, apesar das aparências e dos buços, não somos. Foi uma lição ibérica para a eternidade. E a certeza do melhor de sempre. Kant, disse Adorno, postulou a imortalidade para fugir do desespero. Ortega y Gasset disse melhor ainda: 
"bien sé que a la hora presente me hallo solo entre mis contemporáneos para afirmar que la forma superior de la existencia humana es el deport"

@pedroguilhermemoreira 2018

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