II (volume anterior aqui)
Brasil, Maracanãzinho, 27 de
Outubro de 1990, cerca de vinte mil brasileiros nas bancadas, algumas centenas
de italianos, meia-final do mundial de voleibol, joga pela Itália a chamada
geração dos fenómenos, mas a equipa que limpava tudo, com um magnífico Joe
Despaigne como estrela, era mesmo Cuba; – expliquei eu ao Dez-cartas, tentando
abstrair-me das manobras do avião no aeroporto de Lisboa, a preparar a descolagem. Pedi ao Dez-cartas
para ficar à janela, era a primeira vez que andava de avião, tudo me parecia
fora de escala, tudo menos a jovem selecção portuguesa. Tivemos de ir apanhar o
voo a Lisboa, a Nádia, da agência de viagens da nossa aldeia, disse que era a
melhor alternativa tão em cima do Europeu, protestou por terem marcado a prova
para tão longe e o Dez-cartas ofereceu-se para levar o carro dele – que por
acaso é um Panda – até Lisboa e, como viemos de madrugada e o voo era logo às
seis e tal da manhã, eu sugeri ao Dez-cartas que deixasse o carro mal
estacionado num quelha perto do aeroporto que eles chamam de segunda circular, parece
que é a viela que define psicologicamente as classes de tiffosi portugueses e
os divide entre o verde da esperança e o vermelho da paixão (há uma versão
pessimista, diria mesmo arrivista, de que aqui não curaremos), disse o Dez-cartas e eu não tenho culpa, porque
eu só abri a boca para lhe explicar que o preço do reboque pelo estacionamento
na segunda circular era mais barato do que o estacionamento no aeroporto
durante uma semana. O Dez-cartas manobrou o carro numa zona da segunda circular
em que não há rails de protecção e deixou-o ali perto da BP, à sombrinha, debaixo de uma
árvore de um jardinzinho muito bonito e prático. Tirámos as bagagens de mão e
fizemos aquele bocadinho a pé. Como só levávamos bagaglio a mano, a Nádia disse
que podia fazer o check-in online e que podíamos ir directamente ao controlo de
bagagem. Como não sabíamos bem como fazer isso, perguntámos a um senhor com uma
camisa da Ana, não que algum de nós conhecesse a Ana, mas porque nos pareceu o
mais prático, mas ele limitou-se a falar para um walkie-talkie e a gemer monossílabos que nenhum de nós entendeu. Eu sorri-lhe, o Dez-cartas sorriu-lhe, mas
nada: ficou, não impávido, não sereno, mas teso e com umas gotículas de suor a
escorregar-lhe da testa que o Dez-cartas me explicou serem a sublimação da
fúria. É nesta altura que vemos os miúdos da selecção nacional que virão a ser
os nossos ídolos e o nosso refúgio, não no farwest, mas all’estremo sud.
Primeiro salvamento. Eu e Dez-Cartas estamos vestidos de verde e vermelho da
cabeça aos pés, com cachecóis alusivos que adquirimos ao merchandising oficial e dizem “Portugal Young Braves”, para serem entendidos pelo mundo inteiro.
Consigo um autógrafo do André M e do Diogo O, porque os outros, embora com
aquele sorriso lúteo do medo, não se chegaram às fitas exteriores do check-in.
Os corredores para controlo de bagagem são em zigue-zague: faz-se um quilómetro
para percorrer quinze metros. Tenho uma condição cardíaca e a menina da
segurança, que está formatada para intimidar, tem de me abraçar e amparar. Nem
assim consigo passar os líquidos, e tenho mesmo de pagar três euros por uma
garrafa de água na zona de trânsito. O embarque foi mais calmo e eu até
percebo certas pessoas mais experimentadas que querem fingir que viajar de
avião é o seu dia a dia. Nunca olham para os quadros de informações ou, uma vez dentro do
avião, também não olham pelas janelitas, lêem muito e nunca rebatem a cadeira
antes do tempo, como nós, parolos. E, como eu antecipei que a descolagem ia ser um momento
definidor no meu espectro gnoseológico, preferi desviar o assunto para a
geração-fenómeno italiana nessa meia-final do mundial de voleibol de 1990. A
equipa principal costumava ser Lorenzo Bernardi, claro, e Luca Cantagalli como
pontas, Zorzi a oposto, Paolo Tofoli distribuidor, e os centrais, dois
Andrea: Gardini e Lucchetta. Lembro-me disto, não sei se foi mesmo assim, mas tu percebes, Dez-cartas. Brasil e Itália estão empatados a 12 na negra. O "murazo" italiano opõe-se ao ataque
brasileiro. 13-12 para a Itália. Na jogada seguinte, Bernardi recebe como nos livros,
Tofoli passa – colocando as mãos de forma a que o central brasileiro sinta que
tem de saltar ao bloco para um bola rápida do central italiano, mas Tofoli
empurra a bola para a ponta e Cantagalli bate à linha; 14-12; Brasil faz
um ponto, 14-13, e serve, recebe Cantagalli e corre novamente para a ponta,
Tofoli coloca outra vez as mãos de forma a não serem lidas e faz o passe
curto, em salto, para o central, Lucchetta, que bate limpo para a zona um. Quer
dizer, a bola cai ali na zona intermédia entre a um e a dois. A Itália está na
final do mundial do Rio de Janeiro. O avião está no ar. Dez-cartas já dorme. Os
miúdos da selecção vão sentados a dez metros de mim, mas, apesar dos meus
acenos, nem um olha. Que profissionalismo. Penso que, mal Dez-cartas acorde,
tenho de lhe explicar que a final do mundial de 1990 vai ser Itália-Cuba, que
Cuba ganhou na primeira fase à Itália por 3-0, e que se ergue esse monstro do
voleibol mundial que é o Joel Despaigne, que atacava a mais de quatro metros de
altura, bloqueava apenas quinze centímetros abaixo e chegou às trezentas e
cinquenta internacionalizações por Cuba. Curiosamente, é um ídolo popular,
porque os lugares oficiais tendem a ignorar os diamantes do Fidel, o Despaigne
e, mais tarde, o Leonel Marshal, que tinham algumas parecenças em estilo de
jogo (dizem as lendas que Marshal chegou a saltar 1,70m). Despaigne acabou
por vir, claro, para Itália, onde todo um povo, do voleibol e fora dele, o
venera e respeita. Treina uma equipa da segunda liga italiana, mas não sei se
ainda salta mais de um metro. Aposto que sim. Esperem que o Dez-cartas acorde
para eu lhe contar isto. Não falta muito para chegar a Roma.
(continua no Volume 3)
também pode ler o volume 1 aqui
(continua no Volume 3)
também pode ler o volume 1 aqui
PG-M 2015
fonte da foto (Andrea Lucchetta)
2 comentários:
Olhem só o grande Lucchetta! Costumo ver o ex-campeão a comentar ps jogos que o meu marido vê. Vou pôr a leitura em dia e ler tudo per ordem correcta! Ma quanto mi manca l'Italia.
Faz isso, Helena :)
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