Santiago de Compostela, Escola de Idiomas, 23-11-2015, 20h, Nortear, Universo Literário Comum
Quando
ouvimos os discursos oficiais, metade do tempo é coloquialismo –
ninguém diz nada de importante antes de se dirigir a toda a hierarquia
presente. De certa forma, acredito na ordem como organização da
capacidade de escutar, e quase ninguém tem capacidade de escutar. Não
porque sou revolucionário, embora aposte em cavalos de tróia, mas
porque me dirijo sempre aos presidentes e aos directores quando os vejo
incomodados com a beleza.
Assim a regra mudou. Por isso,
Cristina Rubal, que vens em vez do Anxo, que é um nome belíssimo que em
Portugal só se usa nos nomes de família e quase sempre no plural, não me
dirijo a ti porque és subdirectora xeral das Bibliotecas da Galiza, mas
porque celebro ter-te conhecido aqui e ver-te vibrar e emocionar, não
apenas connosco, os protagonistas, mas com a audiência em frente, os
anónimos, aqueles que hoje, provavelmente, nós não conheceremos ainda.
Vladimir Nabokov, numa carta à sua mulher Vera, dizia que tinha a
sensação que os anjos estavam todos no céu a fumar com ar de culpados, e
que, quando o Arcanjo passava, deitavam os cigarros fora, à pressa, sem
os apagar, e que isso, para Nabokov, é que eram as estrelas cadentes.
Pois estou certo de que para ti também, Cristina.
Senhor Director
Gonzalo, não precisava de me dirigir a ti no intróito do meu discurso,
porque creio que já cumprimos todas as etapas da condição da amizade,
mesmo antes de nos conhecermos. Nem sempre é fácil como foi contigo, por
isso não te dirijo o discurso, mas amizade, respeito, mesmo esta paixão
comum pela literatura.
E não me dirijo a ninguém de Portugal,
porque Portugal está sempre comigo, dentro de casa. Talvez só me
dirigisse a Portugal se ganhasse um óscar – é certo, e isso garanto-vos,
que se me deixarem viver tempo suficiente, ainda ganho um óscar para
Portugal, até para explicar aos americanos onde fica. Mas os galegos
sabem onde fica Portugal. Portugal é o seu corpo no mapa, o corpo de
uma cabeça brilhante chamada Galiza.
E tenho pelo menos uma
religião: a negação de mim como centro do mundo. Não professo a fé de
quando os escritores aparecem perante uma audiência apenas com a
experiência e a sabedoria e não trabalham, não se tiram do centro, não
fazem da audiência e dos pares ao seu lado o centro do mundo, o objecto
do momento. Não fazem tudo para se apaixonarem e deixarem que se
apaixonem por eles. Não oferecem o corpo, os abraços, a voz, os beijos, a
saliva que separa as palavras umas das outras e até as queima, como
queima as línguas dos outros. Creio nas nossas línguas assim, num beijo,
em fogo, formando parte de uma unidade quando se juntam, e sendo
indivíduos quando separadas, como os grandes amores, durmam na mesma
habitação ou em habitações diferentes.
Grande parte deste texto
estava escrito antes do terror de Paris, mas não pensem que, porque é
moda ou anti-moda, eu vou deixar de disparar sobre vocês, eu vou fingir
que cada reunião pública não é um acto de coragem e liberdade,
principalmente de quem se senta na plateia. Porque, vejam bem, a
alternativa é o conforto do espelho, é o curriculum do escritor ao
espelho. Em vez de falares de ti, escritor, de dizeres o teu nome,
escritor, diz o nome da mulher em frente a ti, diz o nome do homem em
frente a ti.
Roberto Amarelle, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.
Alberto Crespo, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.
Aida Cuiñas, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.
O
Roberto não gosta de cinema, mas como poderia o Roberto gostar de
cinema, se está ocupado a viver as aventura do Capitão Alatriste, do
Arturo Perez Reverte?
O Alberto já gosta de cinema, do filme Abre
os olhos, de jogar futebol com o Ronaldo na quinta privada que têm na
praia e de comer comida mexicana e passar o tempo entre costuras.
A
Aida, que tem um nome de grandes obras literárias e é a protagonista do
meu primeiro romance, A Manhã do Mundo, onde estão todos os 11 de
Setembros e todos os Charlies e Atocha e Londres e Paris, é mista no
comer, Pilates e caminhada no mover, Inodchina no ver, mais de cem anos
de solidão no ler e uma casa com jardim.
Carmen Regueiro Dopazo, não te protejas, não caias na trincheira.
Ana Valladares Fernández, dá-te.
Monica, de quem não sei o apelido e por isso vale para todas as Mónicas, Mónica, a charla é sobre ti.
A
Monica, de quem não sei o apelido, é vegetariana e gosta da actividade
que mais faz crescer, que é dormir, gosta de ver drama político e de ler
poesia, filosofia, ciência, as vésperas de leviathan, e não sei se aqui
véspera se diz no sentido de dia anterior ou de final de tarde. Para
mim, Monica, é final de tarde na tua casa de campo.
A Carmen sobe
montes e vales por caminhos ínvios numa bicicleta estática e não gosta
de comédias absurdas e formará a sua própria novela numa casa longe de
tudo onde não haja contaminação.
A Ana Valladares tem algo que me
fez parar logo, é um detalhe, faz parte dela e de mim ao mesmo tempo.
Valladares é o nome dela e o nome da vila onde eu moro, da praia onde eu
escrevo e onde me banho e tomo sol. Não pode ser coincidência, Ana.
Nunca é. Ficas na obrigação de visitar essa vila portuguesa, porque eu
já te visitei a ti. Até porque, como tu, me deixo encantar pela
comida-lixo de vez em quando e vou comer ao mundo todo, a Itália, à
China e ao La Pepita, em Vigo e hoje vou chegar a comer em Santiago. E é
fascinante que o teu desporto favorito seja andar aos cogumelos e às
castanhas, passear, perderes-te por ruas ou povos desconhecidos. E é tão
bonito parar o carro e meter no maleteiro uma mesinha antiga antes de
ver um filme com mensagem social. E gostas dos livros todos, por isso,
sim, vais acabar por chegar aos meus, a mim e ao Valadares do Porto,
Portugal. Só tenho pena de não ter estufa nem chaminé em casa, Ana
Valladares.
Alexandre Vizinho Aguirre, a charla é sobre ti.
João António Calo Pouso , não caias na trincheira.
Cristina Sobrado, não te protejas, dá-te.
Alexandre,
só com o tema da trilogia do Padrinho, do Coppola, e a tua vontade de
visitar a cidade onde eu nasci e vivo, o Porto, não nos calaríamos
durante dias, mas há uma condição: espero que concordes que o Padrinho
só tem dois filmes bons, e que o III é mau. Curiosamente, o que
achávamos na altura ser um acesso de nepotismo do pai Francis, a
apresentação da filha debutante, Sofia, ao mundo, veio a revelar-se
premonitório, porque hoje a filha Sofia é mais brilhante a filmar do que
o pai Francis.
João António, será que percebi bem? A qualidade
do companheiro viajante deve ser brincalhão? Se percebi, talvez isso
baste. O humor é uma virtude superior.
Cristina, tu gostas de
comer na rua, de visitar a cidade, de te rires com a Costela de Adão, e
ficar o resto da vida a ler Crime e Castigo, do Dostoievsky. Pois, é
isto: está tudo dito. Basta querer fazer o mesmo.
Maria Tilve, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.
Maria,
tu que tomas um pequeno-almoço tão forte que a comida não te vê durante
o resto do dia, tu que amas Mia Couto com todas as tuas forças, como
eu, fica sabendo que ele é, há mais de dez anos, o meu candidato para o
próximo Prémio Nobel da Literatura em português, neste caso para
Moçambique, e que, apesar de trocar correspondência com ele, como par,
tenho veneração tão grande que o pudor me deixa calado quando nos
encontramos pessoalmente, logo eu, Maria, que nunca me calo! Pois sei
que amas Portugal e que, podendo, vivias o resto da vida, e até morrias
nos Açores. Só não sei em que ilha, tens de me dizer antes de eu me ir
embora, em qual das nove ilhas irias viver e morrer, Maria Tilve. E,
antes de te despedires da Galiza e navegares para os Açores, passa pelo
Porto e diz-me como descobriste o sal das palavras novas do Mia,
palavras que são novas em todas as línguas.
Uma canção recente da
genial cantora mexicana Natalia LaFourcade começa assim. “Esta historia
terminó, no existe”. Pois aqui é exactamente ao contrário. Tudo acaba
de começar.
Os nomes, anónimos há minutos, tornam-se subitamente
gigantes e o centro deste mundo. Este é o movimento. O escritor, o
artista, a figura pública, deve tirar-se do centro. Essa é a diferença
entre escritores vivos e escritores mortos. Pois muitos dos escritores
mortos estão bem vivos em nós, mas os que estão mesmo vivos não se podem
comportar como se estivessem mortos, desaparecer do mundo, exaltar o
silêncio de forma gratuita.
O universo literário comum é o
universo. E tu tens de escutar o universo. Só há problema quando não
escutas, quando ignoras. Se escutas, lês. Se olhas em volta, se
procuras, se não sais de tua casa e vens à casa do teu irmão galego,
nunca descobrirás que há literatura em lado nenhum. E ignoras o teu
vizinho. E então tens medo de morrer sozinho e ficas furioso por ninguém
te ouvir a ti. Isso é o suficiente para me querer, não escutar, não
ler, mas matar. Nunca me matarás se eu te ouvir, se eu te ler, se eu me
der a ler.
Como não podemos ter medo de terroristas e armas,
também não podemos ter medo de gostar, de chegar perto, de deixar chegar
perto. A rapariga sul-africana que se fingiu de morta no Bataclan, e
cujo testemunho no facebook foi lido por milhões, disse que, quando
estava deitada entre os corpos ensanguentados a despedir-se da vida, em
nenhum momento pensou nos assassinos, mas nas pessoas que amava e que a
amavam a ela, e garantiu aos familiares dos mortos que eles também
estavam a pensar nos que amavam e os amavam a eles, não a perder tempo
com o medo.
Como postou a Loaira, da Livraria Ciranda, no seu
facebook, de um jovem escritor brasileiro, Gonzaga Neto, “Em tempos de
gente seca, chova amor”, que em galego tem a mais bela palavra, que não
existe no português e eu aprendi com a Ledicia: agarimo.
Eu
sinto falta de que me toquem e de que se chore mais vezes. Não um choro
vazio e egoísta do “Olha para mim”, mas alguma coisa física e violenta
por não conseguirmos aguentar a beleza cá dentro. Acontece-me muitas
vezes com os poucos amigos íntimos: no Porto até temos o hábito de nos
insultarmos por amor, porque não aguentamos a beleza dentro do peito.
Esse é que devia ser o nosso universo comum: se nos tocarmos,
fisicamente ou intelectualmente, entendemos tudo o que dizemos em
qualquer língua: vão perceber porquê quando terminar esta leitura.
não creio na frialdade, pero que a hai, hai
Há uma palavra em galego que é muito mais bonita e completa do que em português: ilusion.
Ilusão,
em português, não é virtude. Mas é virtude em galego. Vou daqui com uma
decisão: vou começar a usar a ilusão em português como uma virtude.
O
universo literário comum do norte de Portugal e da Galiza não é uma
questão política ou linguística. É uma questão de carne, de escuta, de
atenção. De agarimo.
Tenho um problema grave com a minha
interlocutora, Ledicia. Quando comecei a ouvir o que ela escreve,
repito, a ouvir na minha cabeça o tom das frase e das palavras da
Ledicia, postas como ela as põe na pauta, reconheci-me. É o lado bom do
espelho, quando olhas da parte de trás e reconheces um igual. A Ledicia
é igual a mim, mas a Ledicia é muito melhor do que eu. Ainda botei os
olhos ao Recinto Gris, ao Animal chamado néboa, à Escarlatina, e não
encontrei nenhum livro infantil, nenhum livro juvenil ou adulto. Só
literatura. E incomodei-me com a beleza, como te prometi, Anxo, que tu
também te incomodarias.
Ledicia, não te vou perguntar o que pensas sobre nada, mas o que sentes sobre tudo.
Ou
então, vou perguntar outras coisas para fingir que não somos todos
frágeis, por exemplo, o que era o caderno rubio que a professora te
quitou? E porque é que a Marta ainda o usava? E porque é que a Marta,
que era a mais guapa da classe, tem de escrever grande, Ledicia? Tens
algo contra as formigas em forma de palavras, Leidicia, contra segredos
escritos baixinho? Fizeste chorar a Marta como Mario, Ledicia. Não é
grave, é dramático, como ela disse. Depois chamaste-lhe pécora, que é
uma palavra muito bonita em português, porque não se usa muito e soa aos
cobertos dos casamentos, não a prostitutas. Pécora é uma palavra bonita
em português. Agora podes escrevê-lo trezentas e trinta e três vezes,
Ledicia. Nenhum português pensa em loira quando ouve rubia, mas o galego
tem a palavra ruiva e usa rubia para loiros, mas a professora explicou
que, afinal, rubia é ruiva e loura é loura. Faime caso, Ledicia. Faime
caso, porque, se não me fazes caso também te pego um chiclete ao cabelo e
depois alguém vai ter de te cortar uma madeixa e nunca mais serás a
mesma. E a verdade é que, se me fazes caso, podes fazê-lo em qualquer
língua. Não me importa. Saber escutar é invisível como o agarimo, a
eternidade, a pena, o ar, o norte. O nosso norte. E cito-te, Ledicia:
Abrir
comiñas: “Há muitas coisas importantes que são invisibles. Air, pena,
amor, norte. O do norte é uma coisa rara. Porque, ainda que te dirijas
para ele, nunca chegas. Sempre há outro norte mais ao norte que esse
onde estás. E assim podes passar a vida, indo para norte. Eternamente. “
Fechar comiñas, porque Ledicia não se escreve entre comiñas. Ledicia
está aqui. Que sorte que Ledicia está aqui.
Quando eu era pequeno
e passava a velha ponte de Valença para Tui para comprar caramelos,
para mim a Galiza era só uma rua pequena junto ao rio Minho com lojas.
Tendas. Tenda sim, tenda sim. Estávamos horas a mostrar os documentos à
polícia da fronteira para passar uma ponte de ferro e caminhar
quinhentos metros para lá e para cá a comprar caramelos. Não estava mal
que a Galiza fosse só uma rua. Ainda é isso para mim. É infinita, mas
também é só uma rua onde eu caminho a escutar coisa invisíveis. É perto.
É minha.
E, apesar de todas as nossas semelhanças e raízes
comuns, o que me encanta, na literatura e na vida, é a diferença. E a
comunicação como ponte sobre os desfiladeiros. Gosto dos
estrangeirismos, gosto de escrever com palavras mais galegas do que
portuguesas, ou portuguesas com sotaque brasileiro ou galego, gosto da
liberdade de falar como me apetecer.
Gostava de fazer asneiras e
dizer palavrões em galego – é a primeira coisa que se deve aprender, a
fazer asneiras e a dizer palavrões.
Sou poliglota, mas comunico numa só língua, que as contém a todas, como os beijos.
E
porque eu gosto de todas as línguas, também sei que, se eu fosse
refugiado e estivesse cansado e pedisse a uma mulher síria para
adormecer o meu bebé, ela lhe cantaria uma balada em árabe e ele
entenderia.
Entenderia a paz da sua voz e das suas palavras.
Provavelmente
é isso. É essa a solução para um mundo melhor. Aprendermos estratégias
com a música. A música que nos fala sem palavras ou com palavras que
não entendemos e, ainda assim, comunica.
Adormecermos com um canto de embalar nos braços de outra mãe.
Pois a minha outra mãe é, faz muito tempo, a Galiza.
Obrigado.
PG-M 2015
foto da Escola Oficial de Idiomas de Santigago de Compostela