2015-12-09

Se me queres ouvir, não me comas à luz artificial

Se me queres ouvir, não me comas sob o novo
mobiliário urbano da vila, comparece contudo
defronte do banco de praça que o paisagista
rasgou oblíquo no mundo

Se me queres ouvir, não me comas nos festivais
onde uma versão temerária de mim e nenhum
pensamento circulará pelo auditório
minimal que o arquitecto municipal
ergueu apesar do mundo

Se me queres ouvir, não me comas na televisão
onde uma versão temerosa de mim e nenhum
olhar cegará os cinescópios datados
que o designer do cerco riscou apesar
do mundo

do mundo
volta atrás sem esperar o anúncio dos nossos
funerais e não me perguntes se vou publicar
e deixa os editores em paz que eles têm a corda
no pescoço por imperativos de mercado não
de literatura e então,

se me quiseres ouvir,
não me comas à luz artificial do novo
mobiliário urbano, chega-te ao banco
defronte do meu e observa as minhas
mãos a olhar para as tuas e os meus
joelhos a mostrar os teus e os meus
olhos a tomar os teus e o silêncio
a dizer o que ambos

queríamos ouvir
a mãe morreu
tem sido um prédio comprido de escalar entre
as costelas
lembras-te da milene? sim, até ficámos
de tomar café mal a vida toda cheia
ficasse vazia, porquê?
porque também morreu

foi quando?
foi ontem
foi ontem
foi ontem

ah, que alívio, então o funeral...
não foi, é amanhã
às três da tarde

quando as casas vazias

que bom, que bom,
vamos juntos
vamos juntos, sim
vai ser bom
vai, vai ser bom
e depois é o nosso
pois é, depois é o nosso 
ao menos
que não seja no mesmo dia

ahahahahahahahahahahahahah (treze sílabas métricas)

uma gargalhada subiu aos postes imaginados
pelo arquitecto paisagista e entrou
nos auditórios minimais
e nos velhos
cinescópios

os amigos continuarão a adiar-se
e a morrer sozinhos

(sem querer)

os escritores a dizer as mesmas coisas, mas felizmente
a escrever outras 

que ao menos não se comam uns aos outros
à luz artificial


PG-M 2015
foto de Jessical Ceballos, por Tyler Curtis: clique aqui para fonte da foto

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