Mostrar mensagens com a etiqueta Dez-cartas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Dez-cartas. Mostrar todas as mensagens

2015-07-31

(Volume 7) Bernardi e Francesca na Gioiosa Ionica (e talvez voleibol) - Novelle Italiane

VII    (volume anterior aqui)
Bernardi ficou popular em Cinquefrondi depois do episódio de Toto e Gardini.
Atraiu atenções que até ali se limitavam a uma simpatia externa pelo estranho simpático.
Talvez vos tenha mentido quando atribuí a mesmice de expressão de Bernardi, nos últimos dois dias, (falava apenas por lágrimas) à sintese do poema. Não era bem isso. No fim do primeiro jogo de Portugal, houve, para Bernardi, uma desaceleração do tempo: os olhos diáfanos de Francesca. Ela passou em câmara lenta no corredor da imprensa e dos fotógrafos, aos pés do Palazetto, olhou fugazmente para a bancada e Bernardi atirou-lhe
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês.
- Cosa? No entiendo! - respondera Francesca, de fugida.
É comum que os italianos ouçam castelhano em todos os povos ibéricos e, se souberem algumas palavras, as usem com os portugueses, a quem agradecem regraciando, excepto Gardini, que sabia o que era um obrigado, e portanto também sabia agradecer em português. Não é difícil, realmente, aprender a palavra nacional de agradecimento dos três ou quatro povos que nos fazem vizinhança, mas também não é comum ouvir um italiano a dizer  "obrigado".
Convém também precisar a invenção de Bernardi: "sobremar" é uma palavra que não existia antes de Bernardi chegar all'estremo sud e olhar para o mar calabrês naquela primeira manhã. Explicou-me que a inventara para designar o mar perfeito, azul e homogéneo que se vê de um ponto alto, bem acima do nível do mar, mas "sobre o mar". Diz que designará um mar superior e alto. Pode chamar-se sobremar ao mar que se vê das montanhas madeirenses ou até das falésias alentejanas ou até da serra d'arrábida.
- Os teus olhos têm a mesma cor do sobremar calabrês, naqueles primeiros metros em que os corpos e os objectos não se podem esconder e tudo é transparente.
Francesca sorriu e seguiu.
É morena com os cabelos em flocos e uns óculos grandes e quadrados aparentemente sem lentes e com a exclusiva função de lhe emoldurar os olhos, caminha na cadência belucci dos melhores tempos e nem com a tshirt oficial do torneio perde o enlevo - aliás, a palavra Portogallo na tshirt é, para Bernardi, uma declaração de amor. Francesca seria o sortilégio de Bernardi. Nem o voo de um pica-pau negro sobre as montanhas rochosas de Aspromonte lhe mitigará o apego.
No manhã do último jogo de Portugal, já depois do episódio Gardini, Francesca apareceu-nos como uma mistura do coelho e do gato da alice do carroll, deu as cartas, às de copas, perguntou ao Bernardi se conhecia Gioiosa Ionica.
- Só pelo Toto, que disse que o mar Jónico era o melhor de todos os mares, mas o Toto exagera...
- No. È perfetto. Andiamo?
Uma águia azul planou, como fariam os atletas de Portugal, o vento quente do levante varreu os pêlos dos braços e as ervas altas, os lábios de Francesca estavam pintados de verde escuro e cheiravam a maçã, Bernardi reparou que as pestanas dela eram compridas e arciformes e roçavam nas lentes dos óculos, afinal os óculos tinham lentes, as mãos eram finas e compridas e melífluas e uma delas encaixou espontaneamente na sua. Bernardi olhou-me, entre o assustado e o feliz, e eu acenei que sim com os lábios cingidos e kiss-ready, expressão de aprovação de amigo. 
E Bernardi voltou a tomar conta do texto:
Fizemos todo o caminho para o mar jónico entre montanhas e com Francesca a olhar-me nos olhos pelo retrovisor central. Cheirava a lírios-brancos. Chegámos à Gioiosa Ionica, Francesca indicou-me uma praia vazia. Parámos, saímos, ela perguntou se eu tinha uma toalha, disse que sim, que a levasse. A praia era toda seixos cinzentos, Francesca deslizou até à primeira linha de mar, tirou o vestido canário pela cabeça, ficou em soutien e cuecas cor de pele, uma tez muito escura, quase árabe.
- È questo il tuo sobremare?
Sorri. Estúpidos somos nós, não elas. Nadou a trinta graus, eu fiquei estático sobre os seixos, uma sensação de impossibilidade encrespou-me, Francesca saiu lentamente verificando o próprio corpo, escorreu o cabelo e parou a um metro de mim:
- Sono fidanzata. Si può guardare, sentire l'odore, abbracciare, ma non baciare.
Não fiquei desiludido - prepara-me o arrepio da impossibilidade. Fiquei até grato: Francesca veio ao mar jónico dar-me, gentilmente, uma memória. Para a tatuar, perguntei:
- E dançar, pode-se?
Ballare se può. Pegámos nos respectivos telemóveis ao mesmo tempo, mas eu disse:
- Não, Neffa não, por favor não.
Francesca riu, depois dobrou o riso, despois desdobrou o riso.
Esta sim. Não uma clássica a compor um quadro perfeito e anódino. Se não se pode beijar
Let’s Marvin Gaye and get it on
You got the healing that I want
Just like they say it in the song
Until the dawn, let’s Marvin Gaye and get it on
(Marvin Gaye, Charlie Puth)
Há um toque de cha-cha-cha, o vento de levante, o cheiro a lírios-brancos e maçã, os lábios verde escuro, a fonte quente de Francesca, a mão melíflua a cingir-me, as ancas a marcar o ritmo e os pés a varrer os seixos.
Não a beijarei. Não já. Os pica-paus pretos e as águias azuis continuarão nas montanhas de Aspromonte e eu não a beijarei. Levarei, contudo, esta tatuagem, este final de manhã, princípio de tarde, para a nossa escala em Veneza. Descobrirei a ponte mais discreta e bonita do mundo para descrever uma paixão impossível. Não a Calatrava, não a Rialto, nenhuma do Canalasso, mas a ponte Giustinian, sobre a qual construirei mitos maiores do que os destes doze atletas exemplares e da minha Francesca.
E um dia, despois de nos rirmos muito das memórias da Calábria, de comermos tramezzini em rolo e bebermos san benedetto limone, beijá-la-ei no centro do arco da ponte.
E escreverei em grafitti contra as leis
Se può baciare. Per sempre.
Amanhã regressarei por ti all'estremo sud, para rematar todas as lendas.
(continua no volume 8 e último)
também pode ler Volume 1, Volume 2, Volume 3 ,Volume 4 ,Volume 5 e Volume 6
PG-M 2015

(Volume 6) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


VI   (volume anterior aqui)

Bernardi ficou consumido com o poema. A poesia pode ter esse efeito: sintetizar todos os sentidos do universo com a palma da mão que se abre para nela pousar o mundo ou outra mão, que é o mesmo. Foi por isso que Bernardi me passou a mim, Dez-cartas, a responsabilidade de escrever a crónica final em jeito de comentário desportivo. Os nossos meninos começaram e continuaram a perder, mas, a cada "Portuguesa", sentia-se incólume a alma lusitana que planava sobre as montanhas de Aspromonte. A forma mais dura e eficaz de aprender em qualquer nível de desporto é perdendo, com a vantagem de baixar a guarda dos adversários. Na verdade, tinham ganho em Dezembro à Espanha, que viria a ser segunda classificada numa final com negra a 16-14. A Itália tinha, realmente, um nível superior a todas as outras selecções, mas às vezes também se ganha com o coração. E ganham-se corações. Começar a perder e acabar a ganhar fez da equipa portuguesa a mais simpática de todas, com claque italiana nos últimos jogos. Giusy Bonini foi a intérprete e tradutora da selecção portuguesa, mas, além disso, trouxe para o Palazetto sport de Cinquefrondi uma cintilância que fez dela e de Gianluca, o rapaz das finanças do bar, as luminárias nativas das quinas que eu e Bernardi íamos polindo nas águas quentes do Mediterrâneo todos os dias. Vou contar-vos uma coisa extraordinária. No final do primeiro jogo, não sabíamos bem que direcção seguir para sair de Cinquefrondi. Então abordámos um casal maduro muito bonito, ele mais de dois metros, ela quase um e noventa, aquele tipo de loira italiana sobre a qual desceu toda a classe: "Prego, per Nicotera?", e ela, simpática, "oh, no lo so, ci stiamo arrivando da Bologna", e logo eu, "e noi da portogallo!"; ficou um sorriso também no marido gigante, mas o Bernardi não avançou. Quando olhei para ele estava com a boca aberta, em suspenso. Dez-cartas, disse-me, eu esperava tudo, garanto-te, mesmo tudo, menos encontrar aqui, em carne e osso, um ídolo da minha selecção de sempre, um dos seis, nunca. Quem, aquele gigante? Aquele gigante era o Gardini, o central que alternava com o Lucchetta. Não me digas. Digo. Queres ir pedir-lhe um...? Ah, não, não. E a semana continuou. Toto, o velho tiffosi teórico do clube local, o Jolly Cinquefrondi, falou das tácticas e das direcções ideais que il portogallo devia dar ao seu jogo, do que estava a falhar e do que o allenatore Guerra devia fazer, e Bernardi só lhe dizia: o que está a falhar é a cabeça, e é isso que neles vai crescer, mas dentro do crânio e de forma imaterial, que aqui não curamos dos grandes avanços da neurologia. Toto ouvia, mas não acreditava, que aqueles meninos eram muito mais do que estava à vista e então chegava a compará-los à célebre geração dos fenómenos italianos, que tinham vindo do nada, e estava sempre a apontar para Gardini, para Gardini, para Gardini, e a falar das jogadas do mundial de 1990, o que para Bernardi era música. Toto não ficou muito espantado quando Bernardi lhe explicou que lhe chamavam Bernardi precisamente por causa disso, pela sua obsessão pela mesmíssima equipa, que tinha como uma espécie de ídolo colectivo, mas essa ausência de espanto é muito típica, não dos calabreses, mas de todos os italianos, que foram uma eternidade, e ainda sentem que são o centro do mundo. Foi esse centro do mundo intumescido, ensoberbecido, do italiano Toto, que quase deu a primeira e única desinteligência da semana. Depois do primeiro set do Portugal - Itália, Toto passa junto ao court e faz gestos para a bancada, na direcção de Bernardi, que se tornara seu companheiro de conversa e intervalos. Estendeu as duas mãos abertas e depois fez um dois com os dedos, "dodici punti", disse, voltou a estender as duas mãos abertas, depois mais uma e outro dois com os dedos, "diciassiette minuti", e seguiu caminho na direcção do bar de Gianluca. Bernardi desceu calmamente da banca, o peito ebulia, chegou-se ao mesmo bar, cheio de italianos, e disse, em italiano escorreito: "Non ho bisogno che mi ricordi i punti o i minuti". E, imediatamente, funcionou a generosidade italiana. Perceberam que não estavam num refrega regional, mas numa disputa internacional que era de crescimento para todos: eram crianças a virar homens, senhores. "Hai ragione, Bernardi, hai ragione", disseram Gianluca e Nicola. Toto tomou as mãos de Bernardi, olhou-o nos olhos e ainda disse "Scusa" e pagou-lhe tudo o que ele precisou do bar naquela noite. Repetiu esse "Scusa, Bernardi" mais umas vinte vezes. Bernardi, olímpico, ainda declarou, para todos ouvirem: "per me, questi ragazzi sono tutti della stessa squadra". Até serem seniores, precisou. Mas mesmo depois, porque é natural que muitos joguem no estrangeiro, na mesma equipa. Gardini, sempre a uma distância higiénica, como convém a qualquer ídolo, tinha vindo ver o filho jogar numa jovem selecção italiana onde também evoluía o filho de outro ídolo da selecção de 1990: Cantagalli. Gardini ouviu o protesto límpido do português, ele e Aldo Bonini, eminência local. Aldo estendeu a mão a Bernardi e disse: "Grazie per la civilitá". Gardini, gigante, cingiu Bernardi pelo ombro e tomou-lhe um cachecol dos "Portugal Young Braves". "Posso?", perguntou Gardini. Bernardi, de todas as cores, deixou que Gardini levantasse o cachecol e o fizesse pousar sobre uns ombros imensos. Disse "obrigado", mesmo assim, "obrigado" em português bem explicado, mudou o braço do ombro de Bernardi para o ombro da mulher, a loira que distribuía classe, e afastou-se na noite de Cinquefrondi. Bernardi, que depois do poema só expressava as coisas por lágrimas, expressou-as uma vez mais. Gardini, o seu ídolo, tinha os ombros universais forrados do futuro dos meninos: "Portugal Young Braves". No dia seguinte, sem ninguém o esperar, Portugal U17 reconheceu-se finalmente ao espelho na manhã calabresa, foi imperial e venceu a Holanda por 3-0. Não que perder fosse mau, mas ganhar é outro tipo de identidade e talvez a poesia e a literatura não cheguem. Gardini sim, chegou e sobrou.

(continua no Volume 7)

também pode ler Volume 1, Volume 2, Volume 3 ,Volume 4 e Volume 5
Dez-cartas 2015