2014-11-23

serei a tua Moby Dick, cabra


Já não sei se é a instabilidade do meu corpo, das minhas ideias ou da própria cidade, que começa a ser sentida como um navio prestes a embater num icebergue (podia ter tentado dizer-lhe isto: serei a tua Moby Dick, cabra), mas, enquanto percorro a floresta em direcção à penthouse, cada árvore parece marcada para me deter.


PG-M 2014
fonte da foto

2014-10-15

Fernando Alves? "Amo-o"


Depois de uma velha eternidade em que, dia após dia, Fernando Alves me deixava assombrado, arrebatado, das madrugadas de rádio à beira do colapso, afastei-me e cortei os pulsos da escrita, e tenho de escrever para não me esvair em sangue, ou para me esvair, sim, devo escrever para me esvair em sangue, e deixei de ser capaz de parar de escrever ou de ler, apercebi-me de que me esperavam Camus, Kafka, Vergílio, Vieira, Torga, Saramago, Lobo Antunes, e deixei a rádio, aqueles febris dias de uma rádio que eu próprio fiz, e a rádio faz-se - nos idos de noventa.

Este é um motivo, provavelmente um motivo falso, uma explicação conveniente.

A verdade é que muito Fernando Alves pode matar, o corpo comove-se e o olhar ergue-se para brilhar insuportavelmente mais do que os astros, os que brilham ou reflectem a luz dos outros, e queremos estar com ele na caverna onde não existe nada que comunique com o exterior para lhe dar uma palmada nas costas, um gole de tinto que repousa num copo de três entre o polegar e o indicador, e dizer-lhe: "é isso, companheiro, é mesmo isso,"

ou, a sorrir, "esta vida é uma merda"
ou, a chorar, "uma merda maravilhosa".

Deixei-o por sobrevivência, pois, e agora encontro-o igual, sem tirar, nos mesmos Sinais, e, com a modernice das playlists em podcasts, pedalo por aí com um sinal atrás do outro, Fernando Alves não cansa, vai-se pelas ciclovias a rir e, às vezes, a chorar, abranda-se ali na marginal do Douro, logo depois de passar por baixo da Ponte da Arrábida, embargado. Tiro ali, precisamente e quase sempre, os auscultadores. Trata-se de ouvir um novo som do rio, uma nova cor veneziana, os rabelos crescem e multiplicam-se, agora têm motor e levam turistas, e fica um som que se reflecte nas escarpas que me recorda o que eu ouvia na cidade silenciosa de Veneza, só lá há passos e vozes e motores de barcos, e, em dias bons, com o norte pelas costas e a subir o rio connosco, é só o que se ouve: o sol a amarrar as pálpebras, vozes, passos e motores de barcos. Esse programa - emitido no meu dia de anos - contava a história do gasolineiro Manecas, de Vila Real, que tirava o número de sapatos só de olhar porque tinha tido várias sapatarias, e num passo, numa voz, num motor, dizia assim o Fernando

"Porque onde eu quero chegar, do pé para a mão, é ao momento em que, falando nós dos homens transmontanos, perguntei a Manecas pelo Torga, e Manuel Mourão (Manecas, como o conhecem em Vila Real), antes de responder, levou a mão ao boné e destapou a cabeça. Não vergou a cerviz: destapou simplesmente a cabeça. No dia seguinte, parei na Galafura a contemplar o poema geológico, a beleza absoluta de que falava o Torga. Fui ao carro buscar o Portugal do Torga, porque é justamente nesse texto, sobre trás-os-montes, que ele fala dos "homens de uma só peça, inteiriços, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (pausa funda - ou de Fernando Alves), e pensei, claro, em Manecas, o homem que sabe medir os pés alheios só com o olhar, muito chão firme terá ele pisado para viver as histórias que me contou, tão firme como o aperto de mão que trocámos. A minha mão, esta que escreve com caligrafia incerta, a dele, aquela que usou para destapar a cabeça quando respondeu à pergunta que lhe fiz (pausa de Fernando Alves) sobre o Torga"

sobre o Torga

Soube, desde esse dia, que tinha de erguer o pedestal que o Fernando nunca aceitará, apesar da merecida comenda, e nunca mais me cansei de ouvir e reouvir (eu que sou tão pobre releitor) os Sinais do Fernando, porque ele, como os grandes livros, diz uma coisa diferente a cada repetição, o do Manecas foram umas quatro ou cinco vezes, e de sentir, sempre de forma infantil, com uns quatro anitos e agarrado às calças dele, vontade de lhe dizer, cada vez que ele fala de um escritor, tal como sentia há mais de vinte anos, senhor Fernando! senhor Fernando!, eu agora também sou escritor, mas sou tão pequeno que o senhor Fernando, habituado aos grandes, como o Torga e o Manecas, não me consegue ver.

senhor Fernando! senhor Fernando!

Pensei, garoto,  imberbe, quando "O livro sem ninguém" foi "Livro do dia TSF" e eu cumpri o sonho de ouvir aquela voz comprida e encantada do Carlos Vaz Marques falar de um livro que me tinha nascido debaixo das mãos mas nunca houvera sido meu, como não é nenhum, que o Fernando, nesse dia, ia finalmente reparar ao que vinha aquele tipo que usa um hífen, o mesmo hífen que, em alguns dicionários, é um insuportável sinal burguês.

E, meses passados, cruzei-me com ele nos corredores da Escritaria da Lídia Jorge e pensei, caramba, ele está sozinho e gosta de abraços firmes, é desta!, esta é a oportunidade de me render ao meu ídolo, mas, tal como fiz cinco longos e tortuosos anos em Coimbra, naquele percurso do trólei três entre o Teatro Académico Gil Vicente e o cruzamento da Avenida Dias da Silva com a Luís de Camões, tive o Torga sentado à minha frente, cara fechada, meu deus, meu bicho, e nunca fui capaz de o incomodar ou de arriscar o que me garantiam: ele vai responder-te mal.

Eu não podia arriscar o desprezo do meu Torga.
Como não podia arriscar a indiferença do meu Fernando.
Mesmo sendo o pequenito de quatro anos agarrado às calças do senhor e seja justa a trapalhice do arrebatamento.

E depois tive este texto de homenagem em suspenso durante tanto tempo, nunca me senti merecedor de o assinar - porque ouvia o Fernando que, sendo dos homens, parece acima deles. Um dia ouvi-o num dos Sinais e tive uma ideia: vou pegar num texto de homenagem de dois amigos que lhe aquecem o coração (por mais banal que seja a expressão, é mesmo isto), e adaptá-lo a nós, com o devido respeito e distância no que a mim me toca. E então glosei:

"Não sei quando é que o Fernando chega aos setenta (nem quanto tempo sou mais novo - ou se até serei mais velho - do que ele). Portugal é capaz de produzir um Fernando Alves: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque tripeiro, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções - porque cada "sinal" é uma canção - impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Vieira, Torga, Pessoa, Saramago, Eusébio, Pavão, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado pelo Fernando e transformado em coloquialismo sem esforço. (...) A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Fernando está em tudo. Tudo está na dicção límpida do Fernando. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto Portugal. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos."

É só a declaração de amor do Caetano ao Chico, que deixei quase igual, e que, quando eu ouvi pela própria voz do Fernando, me fez pensar, caramba, é mais ou menos isto que te quero dizer. Basta-me, com supremo atrevimento, plagiar o génio do Caetano e colocar Fernando ao lado, não sobre, Chico, como se trauteássemos uma cantiga ao desafio como o meu pai fazia, nas noites da minha juventude, e depois o Fernando completava, e que até o Caetano um dia fez em conluio com o Almodóvar, mas não em Almodôvar, que era onde o Fernando o teria feito:

"Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando"

E assim foi.

Fernando Alves? Amo-o.


PG-M 2014

2014-06-25

Victoire et l'Immortalité


Victoire, escuta,

as vísceras são água

olha para mim

tenho a boca fechada e o queixo
imóvel, isto no mundo não são
lágrimas

um homem não chora
os olhos dos cães vagabundos de Paris também não.

ficam à tua espera, Victoire,
para serem lidos

como não choram os cisnes
do bosque de Bolonha
ficam à tua espera, Victoire,
para se dobrarem

como o Orfeu debaixo das minhas mãos,
cuja dor eu moldo surda e seca,
os cães vagabundos de Paris e os cisnes
do bosque de Bolonha são só

movimento

(c'est à toi, Victoire, l'immortalité)

e o cão olha-te
enquanto te dobras para o alimentar
e o cisne dobra-se
enquanto o olhas para te alimentar

e, como eles,
o homem não chora,
Victoire,
o homem

move-se 


PG-M 2014
foto do Orfeu, do escultor Alves de Sousa, não exposto, mas doendo naturalmente à entrada de um pavilhão da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Como bisneto, gosto muito que ele lá esteja, assim, como está. Victoire foi a mulher que ele amou.
Nota Importante datada de 9 de Janeiro de 2016: Chamo por ti, Germaine Victorine. Chamo baixinho, mas com um profunda comoção - que só eu sei! Depois de cerca de 75 anos de buscas familiares infrutíferas - os meus avós chegaram a viajar para França, procurando na zona da Normandia sinais da família francesa, sem sucesso, e uns dez anos de buscas como investigador do meu bisavô, como artista, e da minha bisavó francesa e todo o ramo francês de onde provenho, consegui obter hoje, 9 de Janeiro de 2016, por buscas em arquivos digitais, entretanto carregados para a rede, departamento a departamento, comuna a comuna, aldeia a aldeia, da província da Normandia, a certidão de nascimento da minha bisavó. A família cria, e ainda crê, que ela se chamava Germaine Victoire, e daí o título deste poema, "Victoire et l'immortalité" que será também o título do livro sobre a história de amor e de arte destes dois. Na verdade, a minha bisavó francesa chamava-se Germaine Victorine. Decidi que o erro, por ter quase um século, por ser convicção do meu próprio avô Caius, seu filho, que até chamou Vítória a uma das sua filhas, vai incorporar o título do livro, que pretendia jogar com o termo "Vitória" e "Imortalidade", por ser, precisamente, sobre a vitória do meu bisavô escultor sobre a mortalidade, e mesmo do amor de ambos, já que os dois morreram muito novos, ela em 1919 - dizem que de gripe espanhola, mas ainda falta confirmar isso factualmente, e não está fácil arranjar o "Acte de Decés", que não está averbado no nascimento -, com 31 anos, ele em 1922, com 38. Portanto, chamo por ti Germaine Victorine, e chamo por ti comovido, mas devolver-te-ei à vida num livro em que serás Victoire et l'immortalité. Assim, como o poema.


2014-06-20

os autos de interdição de maria

Excelentíssimo senhor juiz de direito:
não alcançado o poema,
ofereço o merecimento dos autos
de interdição de maria
legitimando o abraço
tão alto e
tanto,
tão alto e
tanto, tanto, tanto,

do seu marido
carlos

(podem ser lágrimas ou um momento
na sombra, o carlos
a limpar a boca
a maria,
o seu amor,
a afagar-lhe o cabelo ralo
e branco,
a falar do que ela foi
ao senhor professor perito
e ela ali, ausente,
com o olhar nas
faias,
digo-lhe adeus, espreito
o fundo das pupilas,
ela nas faias subindo
até mim,
a mão a assomar da
estola
está quente na minha
faço-lhe festas suaves e sei
que amarei o meu amor como o carlos o seu
maria foi decretada nada e está toda
na minha mão
na copa
das faias

choro

o carlos diz poesia na entrada de psiquiatria e a afilhada
catedrática de histologia
ainda se deslumbra

não redigirei o relatório
da diligência

quando a poesia é tão alta
e tanta, tão alta
e tanta,
tão alta e
tanta, tanta, tanta,

toca o silêncio
e não se diz

PG-M 2014
fonte da foto

2014-05-13

Braszil


Esperei. Esperei uma semana e fiquei à espera de que o Brasil me saísse do corpo.
Os cheiros, os sabores, os fusos, os medos, as expectativas. Queria escrever em estado de consciência, e, em certa medida, o animal de alma cheia é um animal inconsciente, ou pelo menos subconsciente. Cedo percebi que nada mudava. A única diferença do terreno que deixara no fim de Abril fora o medo e o respeito pelo gigantismo e pelo perigo de São Paulo, onde, apesar de tudo, não passei da porta - a nobre Avenida Paulista em dia de Parada Gay. Porque em Minas Gerais a sensação mais estranha e inesperada de todas foi sentir que estava perto de casa. Não sei se a arquitectura, se o perfil das ruas, a cor das casas, o peso do ar, o sol - por ser inverno e estarmos a mil e duzentos metros de altitude o tropicalismo esbate-se -, mas a verdade é que só o imenso oceano agride esta certeza de sermos um só povo, uma só cultura, uma só pátria.
O Brasil é longe por causa do mar.
É mais longe de Portugal do que o pólo norte.
De avião, é tão longe de Portugal como Tóquio de Frankfurt.
Não se tem essa noção até se ter passado dez horas num avião, dois terços delas apenas sobre o mar. E isso é injusto e violento, para o tanto que podíamos fazer lado a lado, e que, por obra e graça de músicos, pintores, escritores, vamos fazendo, não por esforço de governos ou editoras, tampouco da CPLP ou de acordos ortográficos anquilosados, essa raça de gente que continua a brincar às uniões e às irmandades mas não é capaz de fazer uma coisa tão simples como permitir uma ponte de livros duty free com portes subsidiados entre os dois países, pelo menos para intercâmbio entre eventos culturais. Não. É quase impossível e incomportável enviar livros para o Brasil. Já pessoas não.
E nós fomos.


Deixem-me também dizer-vos, para afastar isto do sistema, já que, sinceramente, as saudades do grupo e da sua dinâmica são mais que muitas: para o Brasil partiram cinco indivíduos que escrevem, regressaram seis irmãos. Pode parecer "cheesy" dizê-lo assim, mas houve um trabalho activo de adaptação de cada um aos outros, foi encontrado um ponto médio onde o grupo funcionava perfeitamente, foi deixado o espaço individual - mais do que isso, respeitado e protegido o espaço e as opções de cada um -, encontradas também as caricaturas, o momento em que cada um era o artista e os outros ouviam, e, nas palestras, todos estiveram presentes para todos.


Depois foram as rotinas, que se podem ver no vídeo que resume a nossa presença no Brasil para quem nos recebeu e para quem nos viu partir: o nosso "Ponto" (onde tomávamos o primeiro café da manhã, um "expresso puro"), na esquina das ruas Minas Gerais e Rio de Janeiro, servido sempre com um "copito de três" de águas gaseificadas e, quase sempre, pão de queijo; o caminho para o Teatro da Urca, onde decorre o FLIPoços, passando pelo magnífico jardim do Parque José Afonso Junqueira, projectado pelo arquitecto Eduardo Pederneiras em 1928, e que conta hoje com 1123 espécies de árvores, rodeadas de belíssimos jardins ornamentais, onde dancei com a Lívia e com a Sylvia Plath (Caroline Nunes) e esta disse a "Tabacaria" de um fôlego, para a Lívia ouvir com uma candura e atenção que nunca se viram no público de um poema :). Pela metade, as bebidas no charme do Palace de Poços. No final desse percurso, já em frente ao teatro, a nossa passadeira "Abby Road", atravessando a Avenida João Pinheiro. Depois ruas de esquadria com comércio autêntico, uma perdição porta sim-porta sim, porque Poços de Caldas protege-o: nas feiras de artesanato, por exemplo, só são permitidos artesãos locais.

Para bem comer, o Bepi, cujo dono aparece no vídeo a dançar a chula, e pela noite o Boteco Dom Pedro, onde fomos recebidos como reis por uma portuguesa, aliás tripeira, a Dulce - era consensual que se tinha comido aqui uma picanha uruguaia suprema, acompanhada de cerveja Brama ou Skol.

Pelas ruas da cidade, dia e noite, falou-se de tudo, desde o dia contra-tudo-e-contra-todos ao dia de sermos-positivos, ao dia filosófico-religoso, ao dia politicamente centrado, ao dia da literatura e da edição e dos livreiros, uma comunicação total que transvazou nas palestras, que as meninas mais atentas e críticas disseram terem sido as melhores, individualmente e em grupo, do festival nos últimos três anos.

E tudo  culmina nesse espírito omnipresente a que chamámos Serápio, e que o Luís Miguel Rocha descreveu, à chegada, melhor do que ninguém:

"Há uma personagem que sobressai na aventura brasileira: o seu nome é Serápio. Inventado pelos seis na manhã do primeiro dia, tornou-se omnipresente em todas as conversas. A sua omnipotência demonstrava-se através de palavras curtas em frases longas e toques no ombro a que se seguia a evocação dos nossos nomes próprios e uma pausa de alguns segundos como se não se lembrasse por que nos tocara. O Serápio não existe, a não ser nas mentes conturbadas de seis escritores, mas foi o nosso companheiro de viagem, sempre leal, sem nunca faltar, até à nossa extenuação. Um grande abraço, Serápio. Onde quer que estejas, deixa-te estar."

Fomos bem reais, contudo, na consideração, na estima uns pelos outros. Claro que a classe do Miguel Roza (uma surpresa absoluta, a caminho dos 84 anos) e a experiência e génio do Eric Frattini se destacaram, mas soubemos escutá-los, soubemos aprender, quisemos activamente aprender, e pode ser que, um dia, fiquemos parecidos com eles. Do Eric trouxe uma quantidade deliciosa de expressões ibéricas, sendo que a que mais se destacou foi "acojonante", já alvo de uma inesquecível tese de doutoramento de Arturo Pérez-Reverte sobre "cojones". Do Roza o símbolo, pela música, dos serões pessoanos, em "Un soir a Lima".

E reais foram a segurança Milene, a directora Gisele, o médico Rodrigo Falconi, as leitoras e actrizes e diseuses Caroline Nunes e Lívia d'Ângelo, Aidê, a livreira Cristina, a Dulce, a empregada do "Ponto" e tantos outros que não esqueceremos.

 E uma instituição: o abraço brasileiro. Uma brasileira - pelo menos uma mineira -, ao cumprimentar-nos, dá um beijo na cara e depois abre os braços e cinge-nos o corpo num abraço forte e prolongado. Este abracinho é tanto mais notável quanto é a moeda de troca mais escassa no mundo civilizado: não sei se aplaca a solidão, mas ajuda muito. O corpo ressente-se quando está longe de casa e não os tem. Mas em Minas deram-nos a toda a hora. E como foi bom.


O vídeo, no final, foi comunicação pura, sem poluição de tiques ou certezas.
É, não parecendo, literatura em estado puro.

O Joel Neto disse às meninas, com assinalável dureza e realismo, que é irrepetível - não voltes ao lugar onde foste feliz :) - mas, como ficou dito acima (agora com toda a certeza) o animal de alma cheia é sempre inconsciente.  Sempre.

Obrigado, Brasil. Ou Brazil. Ou, afinal de contas, nosso 

Braszil.

2014-05-07

Tabacaria dito por uma adolescente brasileira

Foi assim. A Carol e a Lívia gostaram da conferência dos portugueses Joel, Roza, Rocha e -Moreira e do espanhol Frattini, e manifestaram-no. No outro dia eu e o Eric saímos da notável palestra do sobrinho de Pessoa para um café, e a Carol mostrou os cadernos. O Eric ficou espantado com a tristeza e o pessimismo, eu fiquei ligado a algo que reconhecia. Nenhum de nós duvidou da qualidade do que ali estava, e faltava apenas cumprir uma vontade da Carol: ouvir os seus poemas ditos com sotaque do português europeu. Quando isso se concretizou, já no esplendoroso jardim de Poços de Caldas, em frente ao teatro da Urca, a Carol foi desafiada a dizer ela um poema: sabia a Tabacaria. Toda? Praticamente, sim. Pressentindo que fosse verdade, pedi para gravar. Eis. Quando cheguei ao hotel rolei o vídeo só para mim e pensei: como é possível isto, a oito mil quilómetros de casa? Como é possível ter tanta sorte? Magníficas Carol e Lívia.

2014-05-01

Discurso brasileiro


Nota:
ainda antes de publicar uma crónica sobre a semana no Brasil, que termina a 3 de Maio, partilho convosco o discurso de ontem na grande e comovente noite que o grupo de portugueses aqui viveu. Eles e o espanhol Eric Fratini, um gran tío: tenho uma aposta com ele, e até gostava que, para lá dos comentários, cronometrassem ao minuto o tempo que levam a ler o texto, e depois me dissessem, vale? :)

"O Zezé, d”O meu pé de laranja lima” sabia que só podia chegar a poeta se usasse gravata de laço. Portanto, se eu hoje quisesse ser poeta, já não podia, porque esqueci a gravata de laço. Então, mesmo sem gravata de laço, vou tentar ter um comportamento decente, porque eu tenho a certeza de que não pareço um escritor. Hoje estive uma hora ao espelho para poder afirmar isto a vocês com toda a verdade. Há alguma coisa na parte da frente do meu cabelo, pelo menos, que não me deixa parecer escritor, e tenho um pescoço muito alto para gravata de laço. De facto, o meu próprio pé de laranja lima foi o livro do Mauro e o meu tronco era o Zezé, que me fazia companhia nos corredores escuros da escola. Escuros porque a escola não previa que os meninos quisessem ler na hora do recreio e apagava as luzes. E eu não reclamava, porque tinha vergonha de pedir luz, e também porque assim estava mais escondido. E são milhões os que lêem às escuras, por pobreza ou vergonha, ou então por pobreza com vergonha, porque havia eu de ser diferente? Na verdade, eu não era assim tão pobre. Pelo menos o meu pai tinha um carro lindo como o português do livro, o Manuel Valadares, que se chamava Valadares como a terra de onde venho, uma praia perto do Porto, no norte de Portugal, chamada Valadares. Isto anda tudo ligado, já dizia o outro.

Mal cheguei a Poços, pedi para falar com o velho mais sábio, o sábio mais velho, o jovem mais avisado e o avisado mais jovem. Como o tempo era curto, tive de inventar, e fiquei pelos velhos que hoje aqui vos vou contar: peguei no primeiro dentista de Poços e na minha avó de olho azul.

O primeiro é o velho preto Defonso, senhor Ildefonso de Souza, primeiro dentista de Poços de Caldas, nascido escravo e falecido há 82 anos, o que não é nada para uma história como esta. O Senhor Defonso foi carpinteiro e marceneiro até depois dos 40 anos, idade em que iniciou a instrução primária. Conseguiu a alforria, sua e da dona Zeza, a mulher e também escrava, e conseguiu-o pelos próprios meios.
Apenas doze anos depois das primeira letras, já com prática como protético e dentista, e para calar a boca dos críticos, prestou exame na Faculdade de Odontologia de São Paulo. Era o 16 de Abril de 1902. Passou com distinção e tornou-se dentista até à morte, procurado por gente famosa, e diz a História que foi pai de dois dentistas também brilhantes que, chegados aos Estados Unidos para se especializarem, foram mandados embora por saberem mais do que os mestres.

Claro que, se eu já me sentia pequenino quando cheguei, mais pequenino fiquei quando conheci o velho Defonso, porque esta história de vida esmaga qualquer pessoa que não usa gravata de laço, e algumas outras que usam. E foi com o velho preto Defonso que eu ontem passeei pela tarde e pelas praças de Poços.

Ele pediu para folhear os meus livros, eu dei-lhos, ele tomou o seu tempo e depois perguntou-me:
“Mas porque é que nunca desistiu de ser escritor?”
Reparem que pergunta mais bela. Não perguntou porque é que eu sou escritor.
Perguntou como é que eu aguento ser escritor.

Eu respondi que era culpa de um engano do meu pai, claro. Ou das malvadas das lágrimas. Nunca contei esta história em público. Mas agora, que atravessei o oceano e vocês estão aqui de propósito, vou contar.

Eu era pequenino e andava com “O meu pé de laranja lima” na mala da escola. Foi o meu primeiro livro a sério, de tirar o ar. Até aí eu lia “Os cinco famosos” com os olhos fechados só para ver o que ia acontecer, só para dobrar as esquinas. A partir do Mauro eu comecei a ler com os olhos abertos e às vezes molhados. Na verdade eu não choro na vida quando não vale a pena. Mas choro quase em todos os filmes, mesmo os maus, e nos livros bons, já cheguei a chorar quando os olhos azuis da minha avó Glória estavam perdidos do mundo, mas isso eu já explico. Na verdade eu nunca fui pequenino. Nem costumo ir a festivais literários e eu acho que é por ser grande e gordo e não caber nas cadeiras. O primeiro festival literário para que fui convidado em Portugal era de literatura fantástica e eu pensei: claro, é sobre monstros. Já nasci com quase sessenta centímetros e as pessoas a comentarem “olha o grande”. Sei bem que há maiores do que eu, salvo seja, mas a verdade é que toda a minha vida eu ouvi coisas como “não páras de crescer”, “tens tanto de grande como de burro”, “és grande, mas não és grande coisa” e aquela coisa que os malvados fazem com as mãos por causa do tamanho do sexo, que para o pequeno dotado era o indicador mas para mim era sempre polegar.

Portanto, eu nunca fui o pequenino que gostava de ter sido. Andava com O meu pé de laranja lima debaixo do braço quando o meu pai me fez ter a certeza de que eu seria escritor. Eu queria entrar num concurso literário do colégio, mas eles exigiam originais batidos à máquina. Na altura não havia computadores. Eu escrevi um texto lindo-lindo-lindo sobre o amor de um filho pelo pai, comparava o pai a um rio e o filho a uma folha que o rio levava ao mar, tinha doze anos e estava com alguma esperança porque o professor de português tirou o lenço do bolso depois de ler. Outra vez as lágrimas, pai enganado, lágrimas malvadas. Então perguntei ao meu pai se podia levar o texto para a empresa e pedir à secretária para bater à máquina. Ele pediu-me o texto para ler. Eu passei por baixo da porta e fiquei ansioso à espera. Tinha doze anos, lembram? Tinha medo que ele respondesse como o pai da Pamela Travers, a autora da Mary Poppins, quando ela lhe deu o primeiro poema a ler: “Hum, não é propriamente Yeats.” Era um medo injustificado, porque a resposta do meu pai foi apenas "isto está uma merda, não vale a pena passar à máquina". Recebi o texto de volta, por baixo da porta, e fiquei calado. Nos dias seguintes li uma, duas, cem vezes. E terminava sempre feliz depois de ler. Eu era o rio, o meu pai era a foz. No dia em que acabava o prazo da entrega eu já não li “O meu pé de laranja lima” no intervalo do almoço lá no colégio. Coloquei-o ao lado do meu texto sobre um banco de cimento, arranjei uma folha branca e uma régua. Pus-me de joelhos no chão empedrado e escrevi uma carta breve a explicar aos jurados o que tinha acontecido, que não tinha sido possível bater o texto à máquina por pobreza, apesar do carro lindo. Então comecei a copiar o meu texto para a folha branca tentando imitar a letra da máquina de escrever, direitinho, sobre a régua. As minhas lágrimas corriam pela cara enquanto copiava. Outra vez as lágrimas malvadas. Eu nunca quebrei nem tive pena de mim. Mas a alma chorou para fora e eu não pude fazer nada. Foi a primeira vez na minha vida que chorei sem ser por birra de menino, joelho esfolado ou briga de irmãos. Nesse ano eles não fizeram escalões, meninos de dez anos e de dezassete concorriam ao mesmo prémio. O Mauro, o Zezé e o Tio Edmundo ampararam-me desde o pé de laranja lima: “Chora, rapaz, chora que esse choro é justo.” Disseram que não era choro de menino, mas direito fundamental. No final, eu quase tinha perdido a esperança, porque aos doze anos um menino ainda ama o pai. Mas não tinha perdido a honra nem a vontade de lutar. Depois do final, afinal, deram-me o primeiro lugar e eu achei que se tinham enganado. Como eu? Eu só tenho doze. O pé de laranja lima estava lá, na minha mão, quando fui receber o prémio. O presidente do júri pegou no livro e disse “deixa ver isso, hum, meu pé de laranja lima, muito bem, foi por isso que você escreveu.” Foi por isso.

Depois vim vida fora sempre combatendo a descrença do pai, pior, a certeza do nada, que gera indiferença. Esse nada faz-me sempre lembrar o último olhar azul da minha avó Glória e nem deu choro nem literatura, só culpa, e está aqui porque um escritor tem de lembrar. Mesmo um que não parece um escritor por causa do cabelo na parte da frente da cabeça e do pescoço muito alto. Trago comigo a avó do olho azul porque são tantos os brasileiros que deixaram as suas em Portugal, mandaram o Mauro para fazer companhia e se há pais sem crença, nunca isso sucedeu com as avós. Pessoas das nossas vidas que entendam o que é para mim a literatura, e porque é que sempre me sentirei mais pequeno do que o leitor e do que todos os sábios ou velhos, porque toda a pessoa feliz tem estas perdas, toda a felicidade tem aquela tensão, aquela dor abaixo do ombro esquerdo, um pouco acima do coração, toda a perfeição tem um pequeno buraco por onde espreitam os imperfeitos como nós.

E enquanto eu falo, aqui em cima, a Avó do olho azul está aí em baixo, sentada mesmo ao lado do velho preto Defonso, que lhe conta que em Poços tem um Rio das Antas, e ela
“Ai sim? E nós tínhamos um Estádio das Antas no Porto, que era a casa do nosso grande, infinito (digo eu!) Futebol Clube do Porto!”
e o Defonso explica, “ali o seu neto me conheceu através do Luís Nassif, que é primo do Nacibe da Gabriela, sabia?” e a Avó do olho azul brilha, a Gabriela é uma novela que faz parte da ideia fundadora do Portugal moderno, foi o descobrimento de Portugal, mas enquanto o meu avô materno fazia toda a gente calar só com o olhar para ver a Gabriela – chegou a despedir uma empregada doméstica só por deixar cair um talher ao chão durante a novela, mas ela foi logo readmitida na cozinha pela avó – a avó do olho azul era muito mais doce a ver a Gabriela.
Via assim:

(fiz a posição de pé, ela com o braço direito a segurar o cotovelo esquerdo e a mão esquerda a segurar o queixo)

com o olho azul a receber de volta o brilho da Sónia Braga, e se alguém falava para ela, ela só dizia:
“Espera um bocadinho, miguinho, espera um bocadinho.”

A última coisa que publiquei em Portugal, chamada “Livro sem ninguém”, foi com essa culpa no peito e sobre a nossa marca nas coisas, nos objectos, a atenção aos detalhes do espaço. Que nos permitam levantar os olhos para os outros.

E com esta vontade de tocar e porque eu tantas vezes me lembro daquela fila infinita do Saramago, aqui mesmo no Brasil, e ele a pedir desculpa por não poder dedicar o livro, mas só assinar, para que os últimos da fila não esperassem dias para chegar até ele, tive uma ideia que trouxe para Poços, e que vou tentar aplicar mesmo que eu aqui tenha uma fila de duas pessoas:
ou um autógrafo ou um abraço. Eu fico a dever o autógrafo a quem escolher o abraço, e o abraço a quem escolher o autógrafo, o que significa que tenho de me encontrar duas vezes, pelo menos, com cada leitor.
Fico grato a todos, mesmo a todos, mas queria referir aqui quatro que não conheço mas ouvi dizer que vinham. Quatro rapazes e raparigas estudantes de uma pós-graduação em literatura na Universidade Federal de Goiás que conduziriam mais de dez horas desde Goiânia só para me dar um abraço. Para eles tenho uma oferta especial dois-em-um: se eles quiserem, levam abraço e autógrafo.
Olha, mudei de ideias, levam todos!
E vocês, todos vocês, por favor não me esqueçam nunca, que eu também não, tá?
Obrigado."

PG-M, 30 de Abril de 2014, Brasil (FLIPoços)

2014-04-09

apartamento


estou triste
disse ela
e passou o ferro na camisa
com vinco na evidência
a consequência
do tempo é o passado
(o vapor foi projectado)
e o problema do passado
é ter a mesma medida
do futuro

(o botão, que é duro,
partiu)

é infinito

ah, não,
respondi
(estava de costas e na mão
o esfregão
de aço)
o passado só é infinito
se acreditares em deus

não necessariamente
treplicou

estou triste,
a minha única forma de vida
é a morte
(mudou a peça na tábua
era uma blusa
transparente)

isso não é razão de tristeza
a morte ao lado facilita
(aquele tacho era o último,
estava limpo)

e pode não haver explicação para a tristeza

(limpei as mãos, virei-me,
ela estava de costas,
estendi os braços junto ao pescoço
dela,
tapei-lhe os olhos

o tronco dos meus dedos ficou
salgado

ela soluçou
colocou o ferro ao alto no suporte
a blusa deslizou para o chão
fiz menção de a apanhar
não deixou
rodou
no meu abraço
beijou-me
encostámo-nos ao parapeito
da janela do apartamento

bastou o ar quente de junho
e os táxis amarelos de nova iorque
a passar na sétima avenida
e eu a passar a caneca de café
nas bocas
e a tristeza,

não a morte,

partiu)

coloquei a pastilha na máquina
arranquei-a nos cinquenta
graus
ela voltou a forçar o vapor
na pressão máxima e disse
vão dizer que agora fazes poemas
banais


deixámo-nos rir algum tempo
o ar quente varreu a sala de estar
em oito
o cabelo dela livre
apaguei a luz branca da cozinha
ela o candeeiro
de pé

a roupa ficou numa pilha mais pequena

tratámos das solidões
em cantos opostos
da casa
eram três da manhã
eu encaixei o meu corpo
e ela, fetal,
dormiu

PG-M 2014
fonte da foto


2014-02-01

O Salinger nunca me deu tesão

 
Eles vão dizer, mal descubram quem escreveu um título absurdo como este, que eu sou uma escritora americana menor. Reparem: não uma menor escritora como a própria Joyce ao tempo que o JD a viu ser parida pela imprensa e não conteve as erecções - tema do dia - sucessivas que o artigo lhe provocou, a Joyce estava bem na fotografia e varreu a América, ainda hoje é uma mulher atraente mas quem varre a América - o mundo, aliás - é o JD e está morto. Ou não. Eu serei apenas uma escritora menor, aparecerei numa coluna do New York Times como titular de um ódio de estimação pelo gigante. Que sou conterrânea de morte, que terei vendido um milhar de exemplares do segundo livro na mesma editora do mito, que fora já caridade, certamente proporcionada por alguns amigos da cena literária décadas atrás, por eu ter um palimnho de cara, que caí para umas centenas no terceiro, e do quarto já ninguém falou. Que sou uma pessoa não existente, que mereço o tratamento que me deram os meus pares depois desse livro falhado. E a coluna concluirá assim: "Já nem as saias mínimas que passou a levar aos lançamentos de livros dos seus pares nos anos sessenta ou o consentimento das mãos dos escritores consagrados na sua exemplar cintura de pin-up adiantou. O tesão de Salinger passa bem sem esta senhora."

Um título para atrair todos os pérfidos, que aparecem sempre unidos, plenos de energia, e qualquer mulher que se atreva é enterrada nisto: uma puta.

Agora também estou com a mão estendida, a secar o verniz das minhas unhas afiadas, no terraço da penthouse de um hotel de praia em San Diego, eu também tenho um roupão branco aberto para o sol e mais nada além do azul do céu. E eu também tenho um marido deitado sobre uma toalha na primeira linha de água, lá longe, na praia dos albatrozes, que a esta hora está cheia e vibrante. E eu também tenho do outro lado do ecrã do computador portátil que me ferve nas coxas um escritor de dezanove anos que, provavelmente, me dá mais tesão com uma frase do que nove histórias do Salinger que podem ser tudo o que qualquer homem livre quiser, e normalmente quer. O homem livre quer odiar o sucesso e questionar o mito. Não há uma página escrita neste planeta que não tenha do recensor medíocre o tratamento dos humores, dos arrepios, das constipações. Porque do Proust se dispensam madalenas de dez páginas. Porque o Joyce não conhecia a beleza linear. Porque o Sherwood Anderson é escandalosamente etiológico, como se o país estivesse órfão de um novo modelo - e os simbolistas, esses pecadores? Porque o Saramago veio a ser uma espécie de adamastor que despegou da rocha e foi cantar grandiloquência, deixando o narrador omnisciente a falar sem parar, e que isso se pegou aos discípulos, porque o Lobo Antunes faz um mapa-múndi de cada pastelaria e não resolve o pai. E a própria voz banal do narrador do "Centeio" do Salinger pode ser dizimada. Porque os pares estão todos doentes de cosmopolitismo. Eu posso ser só isto, o meu putativo amante escreve que tenho bons genes, que sou a sessentona mais sensual de New Hampshire a passar férias na Califórnia, eu limito-me a comer uma banana, a comer não, a chupar, deixo que se desfaça na boca, gosto do sabor, não aspiro à evidência do fálico, à violência da linguagem, ligo a webcam durante us segundos, observo de fora as minhas próprias fraquezas. Estou há tanto tempo online, sou tão primitiva, tão pioneira, que sinto que a minha sexualidade já se liga por ventosas à rede. Basta uma frase que possa transportar segundos sentidos e eu incedeio. Mas o meu putativo amante-escritor de dezanove anos nunca sobre edifícios, leva-me sempre ao extremo no primeiro sentido de quase tudo. Nele basta o alinhamento das frases, as ideias que mais ninguém tem, os nossos sintagmas em fusão, como se o corpo fosse irrelevante, como se o que somos se solvesse ao mesmo tempo e no mesmo copo de água e já não fosse preciso fazer amor, porque está feito. Não digo que o Jerome David não me dê tesão. De facto, o título que dei a esta carta não é a minha verdade, mas já lá vamos. Cinjo o roupão porque passam aviões publicitários, depois penso melhor e volto a desatá-lo, deixo a púbis exposta, sorrio, tenho uma tez fixada na tentação, limpo os lábios dos restos de banana, bebo da palha o resto do batido e tiro do ecrã tudo o que sobrava, deixo a mão escorregar.

Só porque estamos a discutir o que é ou o que pode ser sublime na escrita de diálogos, ele diz-me que os grandes (o que são os grandes?) nunca deixaram de usar o "disse". "disse o homem", "disse a mãe", "disse o pescador", ou,

como o JD Salinger naquele conto maldito,

"disse a rapariga"
disse a rapariga, disse a rapariga, disse a rapariga, disse a rapariga

- Isso é bonito, Howard? (o meu miúdo chama-se Howard)
- Provavelmente não, mas o Bloom dir-te-ia que os melhores não inventam.

E, aí sim, fico para morrer de prazer. Os dedos dos pés em descontrolo, os joelhos a avançarem um para o outro, primeiro, depois a afastarem-se outra vez, a linha franca das pernas, deixo a mão chegar, as pernas fecham, atiro a cabeça para trás.

- E este desejo que surge das ideias, como é que se resolve? - perguntei eu.
- Resolve-se como tudo. A sós. - disse o Howard, acrescentando o sinal gráfico de um sorriso.
- E se um dia, num café, no fim de uma conversa em que as palavras andem livres, cheias, intensas, os nossos olhares sem sair de dentro um do outro, eu te pedisse um beijo seco, simples, um beijo que seria uma espécie de ponto final porque qualquer palavra estaria a mais, tu davas-mo? - perguntei eu.

O meu marido apareceu de mansinho por trás, fechou-me o ecrã, o meu coração saltou do eixo, teria ele lido alguma coisa?, não, não leu de certeza, está a beijar-me, a beijar-me profundamente, a puxar-me para o chão, a deitar-me sobre o peito, a dispensar o meu roupão, as unhas já estão secas, cravo-as nos ombros dele, começamos aquele cê basculante da penetração, ele senta-se e encosta-se ao muro do terraço, eu sento-me sobre ele, como os cavalos livres em supinação. Começo a sentir-me culpada por escrever um conto que não filtra o sexo e pode ser lido pelos miúdos das escolas que eu visito quase todos os meses, eu, a escritora menor de New Hampshire, mas sei o que eles vão escrever à margem, no final deste pensamento de ângulo recto. WTF? Várias vezes WTF. Não estás no movimento basculanwte da penetração, o que te deu para pensares nisto? Imediatamente antes do orgasmo, o meu marido afasta o livro do Salinger e aperta-me a mão que estava sobre ele - o livro.

O conto do peixe-banana do Jerome David Salinger sempre me atormentou. Não aceitava aquela mãe pérfida a afastar o marido da filha. Esse marido, o Seymour, eu teria amado. Bom, não sei bem se amado. Ele precisava de salvamento, não da pequena Sybil. E como eu tinha ciúmes da pequena Sybil, como eu cheguei a odiá-la como ela nunca odiou a concorrente do colo do "see more", a Sharon Lipschutz, de três anos e meio, que tinha mais liberdade no hotel à noite e podia saltar para cima do "see more" que, não só via mais, como lhe achava o nome erótico. Sharon Lipschutz. Sharon Lipschutz. Como eu quis o fato-de-banho amarelo da Sybil, como desprezei que não precisasse da parte de cima por tantos anos. A tormenta era ainda maior quando lia as críticas e recensões, perfeito, genial, JD escreve como se a realidade se desenvolvesse sempre em dois ou mais planos. E não desenvole?
O meu marido estava a fumar nu, eu ainda suspirava na cadeira articulada do lado, quando ele fez aquela pergunta retórica:
- Então agora pedes beijos a miúdos de dezanove anos?
Eu devo ter fica lívida, branca, e não me saíam palavras, provavelmente não havia.
- Não te preocupes - disse ele - A sério, não te preocupes. - Sorriu e pegou no livro do Salinger - Percebo essa curiosidade toda. E ficava muito mais preocupado se andasses desvairada com este gajo, como a outra que se perdeu aos dezoito anos e resolveu contar a história quando já estava mais morta do que ele.

A lucidez do meu marido não era uma atitude que tivesse cabimento num conto sobre uma família americana sem estrutura, um marido nunca poderia achar natural a intimidade com uma rapaz inteligente de dezanove anos. Pensei perguntar-lhe, quase orgulhosa, se ele tinha lido a resposta do miúdo, de lhe contar as virtudes do rapaz, mas era tudo, evidentemente, disparatado. Profundamente disparatado.
Por isso menti e disse aquilo, e disse-o da forma mais americana que consegui:

- O Salinger nunca me deu tesão.

Ele sorriu, tirou mais uma passa e serviu-se do bourbon.

PG-M 2014

2014-01-31

Da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa


1884.
1884 é da minha vida porque é o ano de nascimento deste meu bisavô.
1884 é da minha vida porque é a data de fundação e o nome do livro com que dezenas de alunos me comoveram na Xico d'Holanda.
1884 é o ano de fundação do Estabelecimento Prisional de Coimbra, onde hoje estive eu e agora está outro Pessoa, que já teria chegado a este parágrafo montado em números cabalísticos.
1884 é da minha vida porque também é a data da fundação da Escola Secundária de Avelar Brotero, em Coimbra - Félix de Avelar Brotero, o grande botânico português cuja primeira publicação, em 1793, é o curioso "Princípios de Agricultura Filosófica" -,  escola onde, no dia 30 de Janeiro do ano da graça de 2014, recebi a luz coada pelas vidraças da bilblioteca e pelo sorriso e empenho das professoras Carla e Isabel e pelo entusiasmo controlado, mas eficiente, de duas corajosas turmas.

À chegada tinha a Ucrânia, a Rússia e o Uzbeqistão corporizados por três belas meninas chamadas, respectivamente, Oleksandra, Ksenia e Sasha (Shahrobonu), que, tendo Portugal como casa, estão a tentar reforçar o seu português. Eu é que aprendi. Aprendi que o agá, em uzbeque, se lê como em hebraico, com o céu da boca, e mostrei a capa d'"A manhã do mundo" em Macedónio, pelo menos para que todas pudessem reconhecer o seu alfabeto, o cirílico, porque o meu nome, Педро Гиљерме-Мореира, escreve-se da mesma forma em todos os lados do cirílico.
Nesta altura já a responsabilidade da luz deixara de ser apenas das vidraças para se virar para as pessoas. Foram as primeiras três dedicatórias.
Havia uma exposição muito bonita sobre "A manhã do mundo" - excertos em fotografias, alguns pedaços de prosa de que me esquecera. Um sobre a beleza da morte, a morte azul. Vieram as turmas e a Rafaela começou por aí. Eu não me poupei aos detalhes e aos passos que me levaram lá. Voltei a entrar nas torres imortais. O Bruno, coitado, tinha a cabeça tapada pelo projector, com o Ângelo voltámos à morte azul, a Joana leu a primeira parte da senda que leva Teresa a quase descobrir o corpo em queda, a Ana falou do momento da morte dos saltadores, o André trouxe-me de volta o meu amigo o Solomon.
Nessa altura perguntei o nome à Margarida. Margarida, ela disse. A ideia era explicar aqui que há sempre um centro, uma cara a receber a maior parte das nossas resposta no público, e ela teve hoje esse papel, o centro do público para o qual eu falava. Minutos depois percebi que talvez houvesse um fundamento: a Meggy fora o 1º prémo do concurso de leitura. O André, que me trouxera o Solomon e tinha um ar-de-deixa-me-estar-quieto-no-meu-canto, foi o 2º, a Telma o 3º. Ainda vieram a inês, a Rita - com a segunda parte da "Criação e Adão" -  e um André-espantado com a expressão mais deliciosa da plateia. A inês era vibrante e fez-nos sorrir várias vezes, porque, sentindo a sessão a esvair-se, saltava na cadeira para que percebêssemos que não se ia dali sem dizer ao que viera. E não foi, e disse, e fez aliás parte da turma que ficou para lá da ordem do dia, e eu deixei a mesa e fui-me sentar no meio deles.

A Micaela - o caso especial. O tipo de caso que eu não perderia por nada, que eu temo tantas vezes poder ficar nas cordas, não dar o passo em frente por timidez, por pudor, por sentir que não pertence ou não tem lugar. O livro marcado de forma meticulosa, o livro lido, passagens que marcaram, despedidas. A primeira que a Micaela leu - a da mãe que se despede do filho pequenino - pareceu comovê-la particularmente, mas tudo na Micaela, o mapa gestual, o sorriso humilde, a candura, essa vergonha bonita de se expôr, gritava leitora exemplar. Escritora exemplar. Por baixo d'"A manhã do mundo" tinha (posso dizer, Micaela?) "O Boneco de Neve", de Jo Nesbo, que algumas vezes nos serviu de refúgio durante a conversa.

E no ar aquele perturbante sentido do "Dream on girl" para o drama de Alice no livro.

Vem o almoço nas mesas corridas da escola, bacalhau à gomes de sá, o café e é hora de, tantos anos depois, eu passar para dentro dos mais altos muros da prisão de Coimbra, muros que rondei durante anos enquanto cursava direito, da dias da silva para baixo, da universidade para cima, pelo jardim da sereia ou por outro lado qualquer, ainda mandei encadernar muitos livros na cadeia, mas isso acabou. O EP de Coimbra é imponente, arquitectonicamente belíssimo, a biblioteca difícil de explicar, porque é sumptuosa, algo que não se espera ali. Como esse poeta Mário Pessoa, que estava sempre a voar dali para fora, fosse das páginas d'"A manhã do mundo", fosse do seu próprio peito. Ele leu o meu "Dominó", que a Isabel trouxe e eu lhe ofereci, eu abri a absoluta excepção das leituras públicas para ler - quase me obrigava a cantar - o "convento do vitral" dele, que ele me ofereceu e eu tenho aqui entre as páginas de um projecto de poesia que me impressinou profundamente pela qualidade: o Zé Eduardo vem de fora, da liberdade, como nós, para lhes dar ferramentas para construir poemas, e conseguiu chegar a um compromisso estratosférico. Não vale a pena fazer revistas, eles, pela mão do Zé Eduardo, saem dali. Maravilhoso. E fica o sorriso desarmante do Lelo, cigano bonito, do riquíssimo Pessoa, do incisivo Roberto, do doce Bruno, do Silva, do Oliveira, do Nogueira - somos quase um pomar -, do Marques e de tantos que estão sempre desassombrados e de coração aberto: nunca há mentira numa conversa sobre literatura de atrás de grades. Há uma dignidade inquebrantável para lá dos ferros, uma sensação de verticalidade, não de engano, que nos inunda. É quase irónico que cá fora se sinta mais volatilidade do que lá dentro, mas é assim, e essa liberdade áspera, dura, faz bem à alma.

E descemos e subimos Coimbra por tantos lados que eu subia e descia há vinte anos.

Minutos depois estou no comboio de regresso ao Porto, eléctrico, entrecortado, suado, difuso, tusso, a menina no bar ofercece-me dois rebuçados, eu peço-lhe o penúltimo café do dia e, da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa, a vida mais alta, tão interior e intensa em cada um dos sujeitos do dia que sim, mais alta, maior do que os homens, do tamanho dos poemas que deixamos por dizer ou, maior ainda, do silêncio da Micaela e da agricultura filosófica, mais do que de um Brotero, do Pessoa.

PG-M 2014

2014-01-22

LOST for all eternity


Desta vez, com a bênção do timewarp (um recurso tããão "Lost"), que nos permite analepses e prolepses, e com a grande ideia do canal MOV de ter retransmitido toda a série em HD, vi tudo. Tudo. Não perdi um minuto. Quase oitenta horas da melhor série de todos os tempos, digo mais, do melhor naco de arte em movimento alguma vez visto. Acaba amanhã, no episódio dezoito da sexta temporada, e desta vez tenho uma ideia muito diferente da primeira vez, estendida ao longo dos seis anos que demoraram a passar os cento e oito episódios e as seis temporadas. Ao ver praticamente um episódio por dia (foi o meu vício do último trimestre), sem perder pitada, tudo faz sentido, e nem sequer está confuso. E o que eu achei "cheesy" na crónica que escrevi em 2010, "O Lost não acabou (declaração fanática)", parece-me agora a única saída justa para os fãs, que aliás deviam ser todos os habitantes do planeta. Este final coloca a série acima do tempo, a vida que se recompõe no "flash sideways" - porque todos acabam por se tocar e lembrar do universo paralelo da ilha - ou a morte e chegada ao paraíso na história que nos é contada desde o início. Com efeito, desta vez ficou claro que este é o paraíso de Jack, o lugar onde todos se encontram à morte deste, e que os melhores amigos, vivos ou mortos, nunca abandonarão. É um lugar de memória ou de fé, como queiram, a que todos temos direito. Porque nem todos os que lá se encontram, no final, na igreja inundada de luz, estão mortos. Estão é presentes para o morto. Hurley torna-se o novo Jacob, com o improvável ajudante Ben, Jack morre, Sawyer, Kate, Miles, Claire, Lapidus, Miles e Desmond salvam-se. Mas estão todos presentes na morte de Jack, nesse lugar especial onde os amigos se encontram, estejam vivos ou mortos, e que para uns é a fé, outros a memória, outros as duas coisas. O "let go" é, no fundo, a paz. A paz eterna. Não a solidão. Não a ausência.

Há um momento que, se perdido, pode dificultar o entendimento do argumento, este arrebatador argumento: aquele em que Jacob explica que a ilha tem a função de um rolha num garrafão, e que o vinho dentro do garrafão é o mal. Sem rolha, o mal não é contido e o mundo fica coberto de trevas.

O que torna esta série notável é que não é propriamente fantasia.
Tomamos contacto com as perguntas que fazemos desde que temos consciência. O que estamos aqui a fazer? O que é isto? Existe vida além da morte? Há céu, inferno, purgatório? Deus? O que é deus?
O equilíbrio entre o bem e o mal percorre cada episódio. É o próprio Jacob que diz ao irmão, quando observam mais um barco a chegar à ilha e prevêem que os que náufragos seguirão o caminho de todos os anteriores: uma união inicial no desespero e na sorte, uma luta pela liderança, pelo poder, guerra, morte. Que é sempre assim, sempre igual, será sempre, até ao fim.

Mas os grandes desígnios não fariam esta série perfeita, como defendo que é: o que a faz perfeita é ter tudo, e se nem sempre isso quer dizer boa arte (muitas vezes há que tomar partido, fazer opções estéticas, não atirar tudo para dentro do caldeirão), a verdade é que os argumentistas usam com mestria as oitenta horas que lhes dão para contar esta história que, no fundo, é a história da humanidade.

Há grandes histórias de amor, que nunca se desgastam, que são profundamente complexas e raramente ficam claras. As excepções são as de Rose e Bernard, a de Charlie e Claire, a de Sayid e Shanon, a de Desmond e Penny, a de Daniel e Charlotte, a de Hurley e Libby. O triângulo Kate-Jack-Sawyer é tremendo e  muito bem cuidado por quem escreve.

Há grandes histórias de vida, sempre muito bem contadas, sem perda de interesse. Não é porque saímos da ilha e entramos na vida de uma das personagens que desmobilizamos: tudo é relevante, tudo é intenso, tudo é tenso.

Mas não quero terminar esta declaração de amor sem reforçar a escolha da personagem favorita:

Sawyer é das mais bem construídas personagens da história da televisão e do cinema. Tem tudo o que é possível ter, é a dualidade humana em carne viva, é simultaneamente uma coisa e o seu contrário, honesto e vigarista, egoísta e altruísta, justo e vingativo, duro e de coração mole, aparentemente estúpido, mas muito culto (é o que mais lê ao longo de toda a série, está sempre a ler, e a ler grandes livros), e a verdade é que usa a cultura de uma forma popular, terra-a-terra, como sempre me pareceu boa ideia. Tem a melhor escolha de perfume (Davidoff) e é o que, no triângulo com Kate e Jack, demonstra o seu amor por Kate por acções, não por omissões, como o atormentado Jack.

Em rigor, e com poucas excepções, todos os elementos de Lost têm esta dualidade, afinal a dualidade de que somos feitos.

O que custa a quem realmente se dedica a estas oitenta horas sublimes é deixá-las, é não ter mais, não ter para os anos todos que faltam viver. E é curioso como, tendo o casting sido perfeito e a direcção de actores do outro mundo, poucos são os actores de Lost que continuaram com trabalho e visibilidade. E são muitos os que sofrem de uma espécie de síndrome pós traumático. A forma como todos viveram os seis anos da série, mesmo os secundários, foi a forma como se deve viver toda a arte: visceral.

Mas isso tem sempre efeitos secundários. Quando se põem as vísceras nas coisas e as coisas acabam, fica o corpo vazio, os ossos, numa espécie de deserto.

Valha-nos a grande banda sonora e a hipótese de, de vez em quando, rever a série que nos marcou as memórias como se fizesse parte da nossa vida.

Na realidade (coisa engraçada de se dizer da ficção), fez.
Fará sempre.

PG-M 2014

2014-01-16

alerta à vaga maior


Do ponto de vista cósmico, não somos nada para ti.
Pelo menos não somos mais do que uma trave de madeira que se desprendeu dos passadiços de praia. Que antes se desprendera de uma linha de comboio.
Somos menos do que ela, menos do que o melhor de nós.

Não somos os únicos que te respeitamos, mas somos os únicos que te pensamos, os únicos que te completamos com velas e cascos.
Os únicos que, apesar de tudo, te olhamos de frente.

Batalhamos dentro de ti, vivemos na tua espuma, temos a literatura a cortar-te as vagas, baleias gigantes, espadartes, poetas com poemas que fundam países.
Ouvimos o teu protesto subir nas noites de tempestade.

E os que entre nós fazem de ti vida ficam duros, de peles curtidas

(mulheres sofridas)

E os que entre nós se habitam de ti, seja inverno ou verão, não toleram alertas amarelos e afastamentos. Ficam e esperam, temem os que se riem na tua cara quando já nem cara tens, quando te misturas com terra e vento e espuma e  sobes vigorosamente à cidade.

Apesar da morte nas tuas faldas parecer estúpida, e a morte dentro de ti heróica, só um pai de pescador pode estar preparado para perder um filho para as ondas - mesmo que nenhuma perda seja consentida, esperada, tolerada. Ninguém pensa na vaga que nos pode levar. Mesmo aqui, contigo aos pés, a escrever, como é sempre meu pecado, seja inverno seja verão.

Já as frases que vieram por estes dias são salvamentos.

Quando Hércules engoliu a Foz do Douro, "estás bem?", "pensei logo em ti". A gente fica grata por, na cabeça dos amigos, ser das pedras da Sé e do mar da Foz. Por todos os dias em que se passa, e quase sempre se fica, em mesas a metros do mar do senhor da pedra, mesas que têm esperado outras horas para flutuar com as ondas. Para que se possa voltar e fingir que o mar se contém.

Não nós.

E tantos foram os anos em que te dei corridas junto às ondas - e só por uma vez me trocaste as voltas e me encostaste às dunas e me terias levado se eu não tivesse recusado. Deve ter sido por isso. Lembro-me de que me ri com a emoção e o medo. Ao longo dos anos tenho visto muitos a rir com emoção e com nervos, alguns deles a morrer. Contamos já trinta e sete anos de uma aliança estranha entre miúdo-e-homem-de-praia. Primeiro miúdo dentro de ti, a conhecer-te os baixios, o mapa das rochas e as correntes, agora homem que te teme por não te dispensar.

Não nos tires mais miúdos, não os tires dos pais deles, pescadores ou não pescadores, nem me engulas os promontórios e as dunas de onde te estudo.

Tens razão: de onde me estudo.

E hoje, entre todos os alertas, e já que é teu o ano de vires comprido, plano, forte, entra com medida por nós adentro.

Se puderes, leva só as traves de madeira.

PG-M 2014