Nota:
ainda antes de publicar uma crónica sobre a semana no Brasil, que termina a 3 de Maio, partilho convosco o discurso de ontem na grande e comovente noite que o grupo de portugueses aqui viveu. Eles e o espanhol Eric Fratini, um gran tío: tenho uma aposta com ele, e até gostava que, para lá dos comentários, cronometrassem ao minuto o tempo que levam a ler o texto, e depois me dissessem, vale? :)
"O Zezé, d”O meu pé de
laranja lima” sabia que só podia chegar a poeta se usasse gravata
de laço. Portanto, se eu hoje quisesse ser poeta, já não podia,
porque esqueci a gravata de laço. Então, mesmo sem gravata de laço,
vou tentar ter um comportamento decente, porque eu tenho a certeza de
que não pareço um escritor. Hoje estive uma hora ao espelho para
poder afirmar isto a vocês com toda a verdade. Há alguma coisa na
parte da frente do meu cabelo, pelo menos, que não me deixa parecer
escritor, e tenho um pescoço muito alto para gravata de laço. De
facto, o meu próprio pé de laranja lima foi o livro do Mauro e o
meu tronco era o Zezé, que me fazia companhia nos corredores escuros
da escola. Escuros porque a escola não previa que os meninos
quisessem ler na hora do recreio e apagava as luzes. E eu não
reclamava, porque tinha vergonha de pedir luz, e também porque assim
estava mais escondido. E são milhões os que lêem às escuras, por
pobreza ou vergonha, ou então por pobreza com vergonha, porque havia
eu de ser diferente? Na verdade, eu não era assim tão pobre. Pelo
menos o meu pai tinha um carro lindo como o português do livro, o
Manuel Valadares, que se chamava Valadares como a terra de onde
venho, uma praia perto do Porto, no norte de Portugal, chamada
Valadares. Isto anda tudo ligado, já dizia o outro.
Mal cheguei a Poços,
pedi para falar com o velho mais sábio, o sábio mais velho, o jovem
mais avisado e o avisado mais jovem. Como o tempo era curto, tive de
inventar, e fiquei pelos velhos que hoje aqui vos vou contar: peguei
no primeiro dentista de Poços e na minha avó de olho azul.
O primeiro é o velho
preto Defonso, senhor Ildefonso de Souza, primeiro dentista de Poços
de Caldas, nascido escravo e falecido há 82 anos, o que não é nada
para uma história como esta. O Senhor Defonso foi carpinteiro e
marceneiro até depois dos 40 anos, idade em que iniciou a instrução
primária. Conseguiu a alforria, sua e da dona Zeza, a mulher e
também escrava, e conseguiu-o pelos próprios meios.
Apenas doze anos depois
das primeira letras, já com prática como protético e dentista, e
para calar a boca dos críticos, prestou exame na Faculdade de
Odontologia de São Paulo. Era o 16 de Abril de 1902. Passou com
distinção e tornou-se dentista até à morte, procurado por gente
famosa, e diz a História que foi pai de dois dentistas também
brilhantes que, chegados aos Estados Unidos para se especializarem,
foram mandados embora por saberem mais do que os mestres.
Claro que, se eu já me
sentia pequenino quando cheguei, mais pequenino fiquei quando conheci
o velho Defonso, porque esta história de vida esmaga qualquer pessoa
que não usa gravata de laço, e algumas outras que usam. E foi com o
velho preto Defonso que eu ontem passeei pela tarde e pelas praças
de Poços.
Ele pediu para folhear
os meus livros, eu dei-lhos, ele tomou o seu tempo e depois
perguntou-me:
“Mas porque é que
nunca desistiu de ser escritor?”
Reparem que pergunta
mais bela. Não perguntou porque é que eu sou escritor.
Perguntou como é que eu
aguento ser escritor.
Eu respondi que era
culpa de um engano do meu pai, claro. Ou das malvadas das lágrimas. Nunca contei esta história em público. Mas agora, que
atravessei o oceano e vocês estão aqui de propósito, vou contar.
Eu era pequenino e
andava com “O meu pé de laranja lima” na mala da escola. Foi o
meu primeiro livro a sério, de tirar o ar. Até aí eu lia “Os
cinco famosos” com os olhos fechados só para ver o que ia
acontecer, só para dobrar as esquinas. A partir do Mauro eu comecei
a ler com os olhos abertos e às vezes molhados. Na verdade eu não
choro na vida quando não vale a pena. Mas choro quase em todos os
filmes, mesmo os maus, e nos livros bons, já cheguei a chorar quando
os olhos azuis da minha avó Glória estavam perdidos do mundo, mas
isso eu já explico. Na verdade eu nunca fui pequenino. Nem costumo
ir a festivais literários e eu acho que é por ser grande e gordo e
não caber nas cadeiras. O primeiro festival literário para que fui
convidado em Portugal era de literatura fantástica e eu pensei:
claro, é sobre monstros. Já nasci com quase sessenta centímetros e
as pessoas a comentarem “olha o grande”. Sei bem que há maiores
do que eu, salvo seja, mas a verdade é que toda a minha vida eu ouvi
coisas como “não páras de crescer”, “tens tanto de grande
como de burro”, “és grande, mas não és grande coisa” e
aquela coisa que os malvados fazem com as mãos por causa do tamanho
do sexo, que para o pequeno dotado era o indicador mas para mim era
sempre polegar.
Portanto, eu nunca fui o
pequenino que gostava de ter sido. Andava com O meu pé de laranja
lima debaixo do braço quando o meu pai me fez ter a certeza de que
eu seria escritor. Eu queria entrar num concurso literário do
colégio, mas eles exigiam originais batidos à máquina. Na altura
não havia computadores. Eu escrevi um texto lindo-lindo-lindo sobre
o amor de um filho pelo pai, comparava o pai a um rio e o filho a uma
folha que o rio levava ao mar, tinha doze anos e estava com alguma
esperança porque o professor de português tirou o lenço do bolso
depois de ler. Outra vez as lágrimas, pai enganado, lágrimas
malvadas. Então perguntei ao meu pai se podia levar o texto para a
empresa e pedir à secretária para bater à máquina. Ele pediu-me o texto para ler. Eu
passei por baixo da porta e fiquei ansioso à espera. Tinha doze
anos, lembram? Tinha medo que ele respondesse como o pai da Pamela
Travers, a autora da Mary Poppins, quando ela lhe deu o primeiro
poema a ler: “Hum, não é propriamente Yeats.” Era um medo
injustificado, porque a resposta do meu pai foi apenas "isto está uma merda, não vale a pena passar à máquina". Recebi o texto de volta,
por baixo da porta, e fiquei calado. Nos dias seguintes li uma, duas,
cem vezes. E terminava sempre feliz depois de ler. Eu era o rio, o
meu pai era a foz. No dia em que acabava o prazo da entrega eu já
não li “O meu pé de laranja lima” no intervalo do almoço lá
no colégio. Coloquei-o ao lado do meu texto sobre um banco de
cimento, arranjei uma folha branca e uma régua. Pus-me de joelhos no
chão empedrado e escrevi uma carta breve a explicar aos jurados o
que tinha acontecido, que não tinha sido possível bater o texto à
máquina por pobreza, apesar do carro lindo. Então comecei a copiar
o meu texto para a folha branca tentando imitar a letra da máquina
de escrever, direitinho, sobre a régua. As minhas lágrimas corriam
pela cara enquanto copiava. Outra vez as lágrimas malvadas. Eu nunca
quebrei nem tive pena de mim. Mas a alma chorou para fora e eu não
pude fazer nada. Foi a primeira vez na minha vida que chorei sem ser
por birra de menino, joelho esfolado ou briga de irmãos. Nesse ano
eles não fizeram escalões, meninos de dez anos e de dezassete
concorriam ao mesmo prémio. O Mauro, o Zezé e o Tio Edmundo
ampararam-me desde o pé de laranja lima: “Chora, rapaz, chora que
esse choro é justo.” Disseram que não era choro de menino, mas
direito fundamental. No final, eu quase tinha perdido a esperança,
porque aos doze anos um menino ainda ama o pai. Mas não tinha
perdido a honra nem a vontade de lutar. Depois do final, afinal,
deram-me o primeiro lugar e eu achei que se tinham enganado. Como eu?
Eu só tenho doze. O pé
de laranja lima estava lá, na minha mão, quando fui receber o
prémio. O presidente do júri pegou no livro e disse “deixa ver
isso, hum, meu pé de laranja lima, muito bem, foi por isso que você
escreveu.” Foi por isso.
Depois vim vida fora
sempre combatendo a descrença do pai, pior, a certeza do nada, que
gera indiferença. Esse nada faz-me sempre lembrar o último olhar
azul da minha avó Glória e nem deu choro nem literatura, só culpa,
e está aqui porque um escritor tem de lembrar. Mesmo um que não
parece um escritor por causa do cabelo na parte da frente da cabeça
e do pescoço muito alto. Trago comigo a avó do olho azul porque são
tantos os brasileiros que deixaram as suas em Portugal, mandaram o
Mauro para fazer companhia e se há pais sem crença, nunca isso
sucedeu com as avós. Pessoas das nossas vidas que entendam o que é
para mim a literatura, e porque é que sempre me sentirei mais
pequeno do que o leitor e do que todos os sábios ou velhos, porque
toda a pessoa feliz tem estas perdas, toda a felicidade tem aquela
tensão, aquela dor abaixo do ombro esquerdo, um pouco acima do
coração, toda a perfeição tem um pequeno buraco por onde
espreitam os imperfeitos como nós.
E enquanto eu falo, aqui
em cima, a Avó do olho azul está aí em baixo, sentada mesmo ao
lado do velho preto Defonso, que lhe conta que em Poços tem um Rio
das Antas, e ela
“Ai sim? E nós
tínhamos um Estádio das Antas no Porto, que era a casa do nosso
grande, infinito (digo eu!) Futebol Clube do Porto!”
e o Defonso explica,
“ali o seu neto me conheceu através do Luís Nassif, que é primo
do Nacibe da Gabriela, sabia?” e a Avó do olho azul brilha, a
Gabriela é uma novela que faz parte da ideia fundadora do Portugal
moderno, foi o descobrimento de Portugal, mas enquanto o meu avô
materno fazia toda a gente calar só com o olhar para ver a Gabriela
– chegou a despedir uma empregada doméstica só por deixar cair um
talher ao chão durante a novela, mas ela foi logo readmitida na
cozinha pela avó – a avó do olho azul era muito mais doce a ver a
Gabriela.
Via assim:
(fiz a posição de pé,
ela com o braço direito a segurar o cotovelo esquerdo e a mão
esquerda a segurar o queixo)
com o olho azul a
receber de volta o brilho da Sónia Braga, e se alguém falava para
ela, ela só dizia:
“Espera um bocadinho,
miguinho, espera um bocadinho.”
A última coisa que
publiquei em Portugal, chamada “Livro sem ninguém”, foi com essa
culpa no peito e sobre a nossa marca nas coisas, nos objectos, a
atenção aos detalhes do espaço. Que nos permitam levantar os olhos
para os outros.
E com esta vontade de
tocar e porque eu tantas vezes me lembro daquela fila infinita do
Saramago, aqui mesmo no Brasil, e ele a pedir desculpa por não poder
dedicar o livro, mas só assinar, para que os últimos da fila não
esperassem dias para chegar até ele, tive uma ideia que trouxe para
Poços, e que vou tentar aplicar mesmo que eu aqui tenha uma fila de
duas pessoas:
ou um autógrafo ou um
abraço. Eu fico a dever o autógrafo a quem escolher o abraço, e o
abraço a quem escolher o autógrafo, o que significa que tenho de me
encontrar duas vezes, pelo menos, com cada leitor.
Fico grato a todos,
mesmo a todos, mas queria referir aqui quatro que não conheço mas
ouvi dizer que vinham. Quatro rapazes e raparigas estudantes de uma
pós-graduação em literatura na Universidade Federal de Goiás que
conduziriam mais de dez horas desde Goiânia só para me dar um
abraço. Para eles tenho uma oferta especial dois-em-um: se eles
quiserem, levam abraço e autógrafo.
Olha, mudei de ideias,
levam todos!
E vocês, todos vocês,
por favor não me esqueçam nunca, que eu também não, tá?
Obrigado."
PG-M, 30 de Abril de 2014, Brasil (FLIPoços)