2014-11-23

serei a tua Moby Dick, cabra


Já não sei se é a instabilidade do meu corpo, das minhas ideias ou da própria cidade, que começa a ser sentida como um navio prestes a embater num icebergue (podia ter tentado dizer-lhe isto: serei a tua Moby Dick, cabra), mas, enquanto percorro a floresta em direcção à penthouse, cada árvore parece marcada para me deter.


PG-M 2014
fonte da foto

2014-10-15

Fernando Alves? "Amo-o"


Depois de uma velha eternidade em que, dia após dia, Fernando Alves me deixava assombrado, arrebatado, das madrugadas de rádio à beira do colapso, afastei-me e cortei os pulsos da escrita, e tenho de escrever para não me esvair em sangue, ou para me esvair, sim, devo escrever para me esvair em sangue, e deixei de ser capaz de parar de escrever ou de ler, apercebi-me de que me esperavam Camus, Kafka, Vergílio, Vieira, Torga, Saramago, Lobo Antunes, e deixei a rádio, aqueles febris dias de uma rádio que eu próprio fiz, e a rádio faz-se - nos idos de noventa.

Este é um motivo, provavelmente um motivo falso, uma explicação conveniente.

A verdade é que muito Fernando Alves pode matar, o corpo comove-se e o olhar ergue-se para brilhar insuportavelmente mais do que os astros, os que brilham ou reflectem a luz dos outros, e queremos estar com ele na caverna onde não existe nada que comunique com o exterior para lhe dar uma palmada nas costas, um gole de tinto que repousa num copo de três entre o polegar e o indicador, e dizer-lhe: "é isso, companheiro, é mesmo isso,"

ou, a sorrir, "esta vida é uma merda"
ou, a chorar, "uma merda maravilhosa".

Deixei-o por sobrevivência, pois, e agora encontro-o igual, sem tirar, nos mesmos Sinais, e, com a modernice das playlists em podcasts, pedalo por aí com um sinal atrás do outro, Fernando Alves não cansa, vai-se pelas ciclovias a rir e, às vezes, a chorar, abranda-se ali na marginal do Douro, logo depois de passar por baixo da Ponte da Arrábida, embargado. Tiro ali, precisamente e quase sempre, os auscultadores. Trata-se de ouvir um novo som do rio, uma nova cor veneziana, os rabelos crescem e multiplicam-se, agora têm motor e levam turistas, e fica um som que se reflecte nas escarpas que me recorda o que eu ouvia na cidade silenciosa de Veneza, só lá há passos e vozes e motores de barcos, e, em dias bons, com o norte pelas costas e a subir o rio connosco, é só o que se ouve: o sol a amarrar as pálpebras, vozes, passos e motores de barcos. Esse programa - emitido no meu dia de anos - contava a história do gasolineiro Manecas, de Vila Real, que tirava o número de sapatos só de olhar porque tinha tido várias sapatarias, e num passo, numa voz, num motor, dizia assim o Fernando

"Porque onde eu quero chegar, do pé para a mão, é ao momento em que, falando nós dos homens transmontanos, perguntei a Manecas pelo Torga, e Manuel Mourão (Manecas, como o conhecem em Vila Real), antes de responder, levou a mão ao boné e destapou a cabeça. Não vergou a cerviz: destapou simplesmente a cabeça. No dia seguinte, parei na Galafura a contemplar o poema geológico, a beleza absoluta de que falava o Torga. Fui ao carro buscar o Portugal do Torga, porque é justamente nesse texto, sobre trás-os-montes, que ele fala dos "homens de uma só peça, inteiriços, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (pausa funda - ou de Fernando Alves), e pensei, claro, em Manecas, o homem que sabe medir os pés alheios só com o olhar, muito chão firme terá ele pisado para viver as histórias que me contou, tão firme como o aperto de mão que trocámos. A minha mão, esta que escreve com caligrafia incerta, a dele, aquela que usou para destapar a cabeça quando respondeu à pergunta que lhe fiz (pausa de Fernando Alves) sobre o Torga"

sobre o Torga

Soube, desde esse dia, que tinha de erguer o pedestal que o Fernando nunca aceitará, apesar da merecida comenda, e nunca mais me cansei de ouvir e reouvir (eu que sou tão pobre releitor) os Sinais do Fernando, porque ele, como os grandes livros, diz uma coisa diferente a cada repetição, o do Manecas foram umas quatro ou cinco vezes, e de sentir, sempre de forma infantil, com uns quatro anitos e agarrado às calças dele, vontade de lhe dizer, cada vez que ele fala de um escritor, tal como sentia há mais de vinte anos, senhor Fernando! senhor Fernando!, eu agora também sou escritor, mas sou tão pequeno que o senhor Fernando, habituado aos grandes, como o Torga e o Manecas, não me consegue ver.

senhor Fernando! senhor Fernando!

Pensei, garoto,  imberbe, quando "O livro sem ninguém" foi "Livro do dia TSF" e eu cumpri o sonho de ouvir aquela voz comprida e encantada do Carlos Vaz Marques falar de um livro que me tinha nascido debaixo das mãos mas nunca houvera sido meu, como não é nenhum, que o Fernando, nesse dia, ia finalmente reparar ao que vinha aquele tipo que usa um hífen, o mesmo hífen que, em alguns dicionários, é um insuportável sinal burguês.

E, meses passados, cruzei-me com ele nos corredores da Escritaria da Lídia Jorge e pensei, caramba, ele está sozinho e gosta de abraços firmes, é desta!, esta é a oportunidade de me render ao meu ídolo, mas, tal como fiz cinco longos e tortuosos anos em Coimbra, naquele percurso do trólei três entre o Teatro Académico Gil Vicente e o cruzamento da Avenida Dias da Silva com a Luís de Camões, tive o Torga sentado à minha frente, cara fechada, meu deus, meu bicho, e nunca fui capaz de o incomodar ou de arriscar o que me garantiam: ele vai responder-te mal.

Eu não podia arriscar o desprezo do meu Torga.
Como não podia arriscar a indiferença do meu Fernando.
Mesmo sendo o pequenito de quatro anos agarrado às calças do senhor e seja justa a trapalhice do arrebatamento.

E depois tive este texto de homenagem em suspenso durante tanto tempo, nunca me senti merecedor de o assinar - porque ouvia o Fernando que, sendo dos homens, parece acima deles. Um dia ouvi-o num dos Sinais e tive uma ideia: vou pegar num texto de homenagem de dois amigos que lhe aquecem o coração (por mais banal que seja a expressão, é mesmo isto), e adaptá-lo a nós, com o devido respeito e distância no que a mim me toca. E então glosei:

"Não sei quando é que o Fernando chega aos setenta (nem quanto tempo sou mais novo - ou se até serei mais velho - do que ele). Portugal é capaz de produzir um Fernando Alves: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque tripeiro, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções - porque cada "sinal" é uma canção - impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Vieira, Torga, Pessoa, Saramago, Eusébio, Pavão, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado pelo Fernando e transformado em coloquialismo sem esforço. (...) A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Fernando está em tudo. Tudo está na dicção límpida do Fernando. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto Portugal. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos."

É só a declaração de amor do Caetano ao Chico, que deixei quase igual, e que, quando eu ouvi pela própria voz do Fernando, me fez pensar, caramba, é mais ou menos isto que te quero dizer. Basta-me, com supremo atrevimento, plagiar o génio do Caetano e colocar Fernando ao lado, não sobre, Chico, como se trauteássemos uma cantiga ao desafio como o meu pai fazia, nas noites da minha juventude, e depois o Fernando completava, e que até o Caetano um dia fez em conluio com o Almodóvar, mas não em Almodôvar, que era onde o Fernando o teria feito:

"Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando"

E assim foi.

Fernando Alves? Amo-o.


PG-M 2014

2014-05-01

Discurso brasileiro


Nota:
ainda antes de publicar uma crónica sobre a semana no Brasil, que termina a 3 de Maio, partilho convosco o discurso de ontem na grande e comovente noite que o grupo de portugueses aqui viveu. Eles e o espanhol Eric Fratini, um gran tío: tenho uma aposta com ele, e até gostava que, para lá dos comentários, cronometrassem ao minuto o tempo que levam a ler o texto, e depois me dissessem, vale? :)

"O Zezé, d”O meu pé de laranja lima” sabia que só podia chegar a poeta se usasse gravata de laço. Portanto, se eu hoje quisesse ser poeta, já não podia, porque esqueci a gravata de laço. Então, mesmo sem gravata de laço, vou tentar ter um comportamento decente, porque eu tenho a certeza de que não pareço um escritor. Hoje estive uma hora ao espelho para poder afirmar isto a vocês com toda a verdade. Há alguma coisa na parte da frente do meu cabelo, pelo menos, que não me deixa parecer escritor, e tenho um pescoço muito alto para gravata de laço. De facto, o meu próprio pé de laranja lima foi o livro do Mauro e o meu tronco era o Zezé, que me fazia companhia nos corredores escuros da escola. Escuros porque a escola não previa que os meninos quisessem ler na hora do recreio e apagava as luzes. E eu não reclamava, porque tinha vergonha de pedir luz, e também porque assim estava mais escondido. E são milhões os que lêem às escuras, por pobreza ou vergonha, ou então por pobreza com vergonha, porque havia eu de ser diferente? Na verdade, eu não era assim tão pobre. Pelo menos o meu pai tinha um carro lindo como o português do livro, o Manuel Valadares, que se chamava Valadares como a terra de onde venho, uma praia perto do Porto, no norte de Portugal, chamada Valadares. Isto anda tudo ligado, já dizia o outro.

Mal cheguei a Poços, pedi para falar com o velho mais sábio, o sábio mais velho, o jovem mais avisado e o avisado mais jovem. Como o tempo era curto, tive de inventar, e fiquei pelos velhos que hoje aqui vos vou contar: peguei no primeiro dentista de Poços e na minha avó de olho azul.

O primeiro é o velho preto Defonso, senhor Ildefonso de Souza, primeiro dentista de Poços de Caldas, nascido escravo e falecido há 82 anos, o que não é nada para uma história como esta. O Senhor Defonso foi carpinteiro e marceneiro até depois dos 40 anos, idade em que iniciou a instrução primária. Conseguiu a alforria, sua e da dona Zeza, a mulher e também escrava, e conseguiu-o pelos próprios meios.
Apenas doze anos depois das primeira letras, já com prática como protético e dentista, e para calar a boca dos críticos, prestou exame na Faculdade de Odontologia de São Paulo. Era o 16 de Abril de 1902. Passou com distinção e tornou-se dentista até à morte, procurado por gente famosa, e diz a História que foi pai de dois dentistas também brilhantes que, chegados aos Estados Unidos para se especializarem, foram mandados embora por saberem mais do que os mestres.

Claro que, se eu já me sentia pequenino quando cheguei, mais pequenino fiquei quando conheci o velho Defonso, porque esta história de vida esmaga qualquer pessoa que não usa gravata de laço, e algumas outras que usam. E foi com o velho preto Defonso que eu ontem passeei pela tarde e pelas praças de Poços.

Ele pediu para folhear os meus livros, eu dei-lhos, ele tomou o seu tempo e depois perguntou-me:
“Mas porque é que nunca desistiu de ser escritor?”
Reparem que pergunta mais bela. Não perguntou porque é que eu sou escritor.
Perguntou como é que eu aguento ser escritor.

Eu respondi que era culpa de um engano do meu pai, claro. Ou das malvadas das lágrimas. Nunca contei esta história em público. Mas agora, que atravessei o oceano e vocês estão aqui de propósito, vou contar.

Eu era pequenino e andava com “O meu pé de laranja lima” na mala da escola. Foi o meu primeiro livro a sério, de tirar o ar. Até aí eu lia “Os cinco famosos” com os olhos fechados só para ver o que ia acontecer, só para dobrar as esquinas. A partir do Mauro eu comecei a ler com os olhos abertos e às vezes molhados. Na verdade eu não choro na vida quando não vale a pena. Mas choro quase em todos os filmes, mesmo os maus, e nos livros bons, já cheguei a chorar quando os olhos azuis da minha avó Glória estavam perdidos do mundo, mas isso eu já explico. Na verdade eu nunca fui pequenino. Nem costumo ir a festivais literários e eu acho que é por ser grande e gordo e não caber nas cadeiras. O primeiro festival literário para que fui convidado em Portugal era de literatura fantástica e eu pensei: claro, é sobre monstros. Já nasci com quase sessenta centímetros e as pessoas a comentarem “olha o grande”. Sei bem que há maiores do que eu, salvo seja, mas a verdade é que toda a minha vida eu ouvi coisas como “não páras de crescer”, “tens tanto de grande como de burro”, “és grande, mas não és grande coisa” e aquela coisa que os malvados fazem com as mãos por causa do tamanho do sexo, que para o pequeno dotado era o indicador mas para mim era sempre polegar.

Portanto, eu nunca fui o pequenino que gostava de ter sido. Andava com O meu pé de laranja lima debaixo do braço quando o meu pai me fez ter a certeza de que eu seria escritor. Eu queria entrar num concurso literário do colégio, mas eles exigiam originais batidos à máquina. Na altura não havia computadores. Eu escrevi um texto lindo-lindo-lindo sobre o amor de um filho pelo pai, comparava o pai a um rio e o filho a uma folha que o rio levava ao mar, tinha doze anos e estava com alguma esperança porque o professor de português tirou o lenço do bolso depois de ler. Outra vez as lágrimas, pai enganado, lágrimas malvadas. Então perguntei ao meu pai se podia levar o texto para a empresa e pedir à secretária para bater à máquina. Ele pediu-me o texto para ler. Eu passei por baixo da porta e fiquei ansioso à espera. Tinha doze anos, lembram? Tinha medo que ele respondesse como o pai da Pamela Travers, a autora da Mary Poppins, quando ela lhe deu o primeiro poema a ler: “Hum, não é propriamente Yeats.” Era um medo injustificado, porque a resposta do meu pai foi apenas "isto está uma merda, não vale a pena passar à máquina". Recebi o texto de volta, por baixo da porta, e fiquei calado. Nos dias seguintes li uma, duas, cem vezes. E terminava sempre feliz depois de ler. Eu era o rio, o meu pai era a foz. No dia em que acabava o prazo da entrega eu já não li “O meu pé de laranja lima” no intervalo do almoço lá no colégio. Coloquei-o ao lado do meu texto sobre um banco de cimento, arranjei uma folha branca e uma régua. Pus-me de joelhos no chão empedrado e escrevi uma carta breve a explicar aos jurados o que tinha acontecido, que não tinha sido possível bater o texto à máquina por pobreza, apesar do carro lindo. Então comecei a copiar o meu texto para a folha branca tentando imitar a letra da máquina de escrever, direitinho, sobre a régua. As minhas lágrimas corriam pela cara enquanto copiava. Outra vez as lágrimas malvadas. Eu nunca quebrei nem tive pena de mim. Mas a alma chorou para fora e eu não pude fazer nada. Foi a primeira vez na minha vida que chorei sem ser por birra de menino, joelho esfolado ou briga de irmãos. Nesse ano eles não fizeram escalões, meninos de dez anos e de dezassete concorriam ao mesmo prémio. O Mauro, o Zezé e o Tio Edmundo ampararam-me desde o pé de laranja lima: “Chora, rapaz, chora que esse choro é justo.” Disseram que não era choro de menino, mas direito fundamental. No final, eu quase tinha perdido a esperança, porque aos doze anos um menino ainda ama o pai. Mas não tinha perdido a honra nem a vontade de lutar. Depois do final, afinal, deram-me o primeiro lugar e eu achei que se tinham enganado. Como eu? Eu só tenho doze. O pé de laranja lima estava lá, na minha mão, quando fui receber o prémio. O presidente do júri pegou no livro e disse “deixa ver isso, hum, meu pé de laranja lima, muito bem, foi por isso que você escreveu.” Foi por isso.

Depois vim vida fora sempre combatendo a descrença do pai, pior, a certeza do nada, que gera indiferença. Esse nada faz-me sempre lembrar o último olhar azul da minha avó Glória e nem deu choro nem literatura, só culpa, e está aqui porque um escritor tem de lembrar. Mesmo um que não parece um escritor por causa do cabelo na parte da frente da cabeça e do pescoço muito alto. Trago comigo a avó do olho azul porque são tantos os brasileiros que deixaram as suas em Portugal, mandaram o Mauro para fazer companhia e se há pais sem crença, nunca isso sucedeu com as avós. Pessoas das nossas vidas que entendam o que é para mim a literatura, e porque é que sempre me sentirei mais pequeno do que o leitor e do que todos os sábios ou velhos, porque toda a pessoa feliz tem estas perdas, toda a felicidade tem aquela tensão, aquela dor abaixo do ombro esquerdo, um pouco acima do coração, toda a perfeição tem um pequeno buraco por onde espreitam os imperfeitos como nós.

E enquanto eu falo, aqui em cima, a Avó do olho azul está aí em baixo, sentada mesmo ao lado do velho preto Defonso, que lhe conta que em Poços tem um Rio das Antas, e ela
“Ai sim? E nós tínhamos um Estádio das Antas no Porto, que era a casa do nosso grande, infinito (digo eu!) Futebol Clube do Porto!”
e o Defonso explica, “ali o seu neto me conheceu através do Luís Nassif, que é primo do Nacibe da Gabriela, sabia?” e a Avó do olho azul brilha, a Gabriela é uma novela que faz parte da ideia fundadora do Portugal moderno, foi o descobrimento de Portugal, mas enquanto o meu avô materno fazia toda a gente calar só com o olhar para ver a Gabriela – chegou a despedir uma empregada doméstica só por deixar cair um talher ao chão durante a novela, mas ela foi logo readmitida na cozinha pela avó – a avó do olho azul era muito mais doce a ver a Gabriela.
Via assim:

(fiz a posição de pé, ela com o braço direito a segurar o cotovelo esquerdo e a mão esquerda a segurar o queixo)

com o olho azul a receber de volta o brilho da Sónia Braga, e se alguém falava para ela, ela só dizia:
“Espera um bocadinho, miguinho, espera um bocadinho.”

A última coisa que publiquei em Portugal, chamada “Livro sem ninguém”, foi com essa culpa no peito e sobre a nossa marca nas coisas, nos objectos, a atenção aos detalhes do espaço. Que nos permitam levantar os olhos para os outros.

E com esta vontade de tocar e porque eu tantas vezes me lembro daquela fila infinita do Saramago, aqui mesmo no Brasil, e ele a pedir desculpa por não poder dedicar o livro, mas só assinar, para que os últimos da fila não esperassem dias para chegar até ele, tive uma ideia que trouxe para Poços, e que vou tentar aplicar mesmo que eu aqui tenha uma fila de duas pessoas:
ou um autógrafo ou um abraço. Eu fico a dever o autógrafo a quem escolher o abraço, e o abraço a quem escolher o autógrafo, o que significa que tenho de me encontrar duas vezes, pelo menos, com cada leitor.
Fico grato a todos, mesmo a todos, mas queria referir aqui quatro que não conheço mas ouvi dizer que vinham. Quatro rapazes e raparigas estudantes de uma pós-graduação em literatura na Universidade Federal de Goiás que conduziriam mais de dez horas desde Goiânia só para me dar um abraço. Para eles tenho uma oferta especial dois-em-um: se eles quiserem, levam abraço e autógrafo.
Olha, mudei de ideias, levam todos!
E vocês, todos vocês, por favor não me esqueçam nunca, que eu também não, tá?
Obrigado."

PG-M, 30 de Abril de 2014, Brasil (FLIPoços)

2014-01-22

LOST for all eternity


Desta vez, com a bênção do timewarp (um recurso tããão "Lost"), que nos permite analepses e prolepses, e com a grande ideia do canal MOV de ter retransmitido toda a série em HD, vi tudo. Tudo. Não perdi um minuto. Quase oitenta horas da melhor série de todos os tempos, digo mais, do melhor naco de arte em movimento alguma vez visto. Acaba amanhã, no episódio dezoito da sexta temporada, e desta vez tenho uma ideia muito diferente da primeira vez, estendida ao longo dos seis anos que demoraram a passar os cento e oito episódios e as seis temporadas. Ao ver praticamente um episódio por dia (foi o meu vício do último trimestre), sem perder pitada, tudo faz sentido, e nem sequer está confuso. E o que eu achei "cheesy" na crónica que escrevi em 2010, "O Lost não acabou (declaração fanática)", parece-me agora a única saída justa para os fãs, que aliás deviam ser todos os habitantes do planeta. Este final coloca a série acima do tempo, a vida que se recompõe no "flash sideways" - porque todos acabam por se tocar e lembrar do universo paralelo da ilha - ou a morte e chegada ao paraíso na história que nos é contada desde o início. Com efeito, desta vez ficou claro que este é o paraíso de Jack, o lugar onde todos se encontram à morte deste, e que os melhores amigos, vivos ou mortos, nunca abandonarão. É um lugar de memória ou de fé, como queiram, a que todos temos direito. Porque nem todos os que lá se encontram, no final, na igreja inundada de luz, estão mortos. Estão é presentes para o morto. Hurley torna-se o novo Jacob, com o improvável ajudante Ben, Jack morre, Sawyer, Kate, Miles, Claire, Lapidus, Miles e Desmond salvam-se. Mas estão todos presentes na morte de Jack, nesse lugar especial onde os amigos se encontram, estejam vivos ou mortos, e que para uns é a fé, outros a memória, outros as duas coisas. O "let go" é, no fundo, a paz. A paz eterna. Não a solidão. Não a ausência.

Há um momento que, se perdido, pode dificultar o entendimento do argumento, este arrebatador argumento: aquele em que Jacob explica que a ilha tem a função de um rolha num garrafão, e que o vinho dentro do garrafão é o mal. Sem rolha, o mal não é contido e o mundo fica coberto de trevas.

O que torna esta série notável é que não é propriamente fantasia.
Tomamos contacto com as perguntas que fazemos desde que temos consciência. O que estamos aqui a fazer? O que é isto? Existe vida além da morte? Há céu, inferno, purgatório? Deus? O que é deus?
O equilíbrio entre o bem e o mal percorre cada episódio. É o próprio Jacob que diz ao irmão, quando observam mais um barco a chegar à ilha e prevêem que os que náufragos seguirão o caminho de todos os anteriores: uma união inicial no desespero e na sorte, uma luta pela liderança, pelo poder, guerra, morte. Que é sempre assim, sempre igual, será sempre, até ao fim.

Mas os grandes desígnios não fariam esta série perfeita, como defendo que é: o que a faz perfeita é ter tudo, e se nem sempre isso quer dizer boa arte (muitas vezes há que tomar partido, fazer opções estéticas, não atirar tudo para dentro do caldeirão), a verdade é que os argumentistas usam com mestria as oitenta horas que lhes dão para contar esta história que, no fundo, é a história da humanidade.

Há grandes histórias de amor, que nunca se desgastam, que são profundamente complexas e raramente ficam claras. As excepções são as de Rose e Bernard, a de Charlie e Claire, a de Sayid e Shanon, a de Desmond e Penny, a de Daniel e Charlotte, a de Hurley e Libby. O triângulo Kate-Jack-Sawyer é tremendo e  muito bem cuidado por quem escreve.

Há grandes histórias de vida, sempre muito bem contadas, sem perda de interesse. Não é porque saímos da ilha e entramos na vida de uma das personagens que desmobilizamos: tudo é relevante, tudo é intenso, tudo é tenso.

Mas não quero terminar esta declaração de amor sem reforçar a escolha da personagem favorita:

Sawyer é das mais bem construídas personagens da história da televisão e do cinema. Tem tudo o que é possível ter, é a dualidade humana em carne viva, é simultaneamente uma coisa e o seu contrário, honesto e vigarista, egoísta e altruísta, justo e vingativo, duro e de coração mole, aparentemente estúpido, mas muito culto (é o que mais lê ao longo de toda a série, está sempre a ler, e a ler grandes livros), e a verdade é que usa a cultura de uma forma popular, terra-a-terra, como sempre me pareceu boa ideia. Tem a melhor escolha de perfume (Davidoff) e é o que, no triângulo com Kate e Jack, demonstra o seu amor por Kate por acções, não por omissões, como o atormentado Jack.

Em rigor, e com poucas excepções, todos os elementos de Lost têm esta dualidade, afinal a dualidade de que somos feitos.

O que custa a quem realmente se dedica a estas oitenta horas sublimes é deixá-las, é não ter mais, não ter para os anos todos que faltam viver. E é curioso como, tendo o casting sido perfeito e a direcção de actores do outro mundo, poucos são os actores de Lost que continuaram com trabalho e visibilidade. E são muitos os que sofrem de uma espécie de síndrome pós traumático. A forma como todos viveram os seis anos da série, mesmo os secundários, foi a forma como se deve viver toda a arte: visceral.

Mas isso tem sempre efeitos secundários. Quando se põem as vísceras nas coisas e as coisas acabam, fica o corpo vazio, os ossos, numa espécie de deserto.

Valha-nos a grande banda sonora e a hipótese de, de vez em quando, rever a série que nos marcou as memórias como se fizesse parte da nossa vida.

Na realidade (coisa engraçada de se dizer da ficção), fez.
Fará sempre.

PG-M 2014