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2015-02-25

O doloroso sorriso de Matilde

Como era doloroso o sorriso de Matilde. Estávamos no auditório do Colégio da Bonança, em Gaia, e eu explicava ao Bruno a sobre-humanidade do amor. Havia um sorriso a pontuar as minhas intervenções que se sobrepunha a tudo o resto - um sorriso que abria o riso em momentos diferentes das aberturas do resto da sala. Depois falei ao Bruno do amor paternal e da forma como magoa, como transcende as forças e é assombrado pelo medo da perda. Como é doloroso o sorriso de Matilde. Há nela uma transparência, uma luz, um peso específico que é peso nenhum. Leveza. Fomos ainda às paixões, ao banal como segredo de uma certa felicidade, aos romances, à minha actividade de arrumador de carros na Praça dos Poveiros. Como era doloroso o sorriso de Matilde. E tudo começara na implicação da assistência. O João espirrou e as amigas riram-se. Pedi-lhe para descer da plateia até à mesa. Sentou-se ao meu lado. Ele garante que não, mas sempre achei que o espirro do João era ficção. O João tem olhos claros e francos e veio a jogo. Leu o primeiro parágrafo da intervenção, que já anunciava mais ficções, as supergémeas Patrícia e Catarina e o Pedro, filho de uma Estrela. E Matilde rutilante, sobre tudo, sobre todos.
Eu tinha planeado uma conspiração.
Os alunos todos no centro, como heróis da história, eu na plateia. Eles seriam contos, eu leitor. Queria ter inventado, mas não inventei, duas colegas para eles. Tinham de ser gémeas. Punha-as em turmas diferentes.
Ou então inventava um Pedro como eu,
mas filho de uma Estrela. Impossível. As gémeas, por exemplo, seriam as novas supermulheres, uma conduzida pelo olhar, outra pelo sorriso. Uma seria uma espécie de sancho pança da tia Agatha Christie. Teria o nome de Katniss Marques. E salvaria um tal de Roger Ackroyd. A outra seria uma feiticeira em cidades de papel. Ambas augustas, como o seu herói.
E mais uma coisita: a ajudante de uma delas tinha de se chamar irmã Lurdinhas.
A outra inventaria para si um clube azul e branco para reinar sobre o mundo.
Por fim, o Pedro teria uma Estrela de carne e osso.
Mas eles não existem.
Elas e ele tinham todos de existir para eu escrever a partir dos respectivos corpos. 

Como era doloroso, doloroso, doloroso, o sorriso de Matilde.

A professora Luísa estava de castigo. Não cumprira as regras militares mínimas para que a conspiração funcionasse. No Colégio dos Carvalhos, havia um professor que nos punha de joelhos no estrado, de costas para a turma, com as mãos debaixo dos joelhos. Dispensámos a professora das mãos e dos joelhos. Sentou-se entre os alunos, debateu comigo a gramática estruturalista, o complemento oblíquo. Como eu desejo a perversão deste ensino e a inversão desta pirâmide. Comecemos pelos livros, só os livros, os bons livros, contaminemos estes nossos parceiros de mundo com os melhores livros.

Como era doloroso, Matilde, o teu sorriso - pelas mais belas razões, como te vou explicar.

A Mariana apresentou-me e contou-me. Contou-me bem. Não por dentro, como Abigail, mas fez-me a casa de escrita pelos anos todos. Deixou que eu contasse o meu Torga. E os meus filhos. A Mariana tinha uma responsabidade. Mas quando for por ti, Mariana, só por ti, como vai ser a tua literatura, a tal que entra pelas veias e sai pelas teclas? Fala-me disso. Não demores, não demores, porque eu estou quase a explicar as boas dores.

Depois os Ruis, o filho do João Paulo (desculpa não te tratar pelo nome, mas há um arrepio do tempo inexorável quando, em vez do teu amigo, encontras o filho com a idade que te lembras de ter quando o pai fumava contigo nos intervalos), e um rapaz de que não me lembro o nome, tinha óculos e estava presente no fim. Dinis, és tu? Não  me lembro do nome, mas não me esqueço dele. Também não me lembro do nome das professoras de História, Filosofia e Economia, mas não me esqueço delas. Vou descrevê-las: uma tinha cabelo bordô, outra azul marinho, outra laranja - creio que ainda fui apresentado a uma azul celeste, à saída. Devia haver índigos e vermelhas, verdes e e lilases, pelos corredores, não sei, não sei. Todos, mesmo sem nome, têm uma refracção de luz própria e estão aqui.

Mas devo a explicação à Matilde.

Tinha-me esquecido apenas do Daniel Defoe, o do Robinson Crusoe, que escreveu a mais estranha teoria económica, mas, pensando alto, já estávamos no fim e no fim das escolas fico sempre em carne viva. Talvez não sobrevivesse todos os dias perante esta nitidez. O coração explode. Sai-se fragilizado dos circuitos essenciais da condição humana: todas as escolas têm esta substância. E, quando ela nos transcende, é duro.

Tão duro como o sorriso de Matilde.

No fim, a Inês passou ao largo sem assinaturas, sem palavras, só a empatia vista do lado dela, a representar todas as empatias que se perdem como velas a apagar, primeiro no espaço, depois no tempo, e o combate de saber delas, empatias, simpatias, e as recuperar a todo o custo, porque a carência urbana é sempre de afecto, não de alimento, ou de afecto como alimento.

As supergémeas estavam como se já me conhecessem há muito - há um novo elemento na família. É bom que falte o ar no fim das sessões das escolas, que nos sintamos todos no corpo uns dos outros. Como a Matilde, que me comoveu as horas todas. Há uma altura em que pergunto ao João, o meu assistente, como era possivel aquele sorriso, aquele riso, aquele espanto. No fim, a Matilde responde com um abraço, encaixa-se no meu torso e deixa-se ficar.

Doce, nívea, límpida, diáfana.

Podia ter ficado a tarde inteira.
Ali, debaixo de mim, dos meus dois metros por dois, o abraço de Matilde sente-se e não se sente, porque não há uma clivagem física, uma estranheza, é como se ela já fizesse parte de nós, é uma espécie de fé.

O sorriso de Matilde dói como o sorriso de um filho para um pai na cidade dos homens:

o amor é sobre-urbano
o amor é sobre-humano

O sorriso de Matilde dói porque não tem fim - e nós temos.
O sorriso de Matilde dói por causa da nossa imperfeição.
O sorriso de Matilde, que lhe encontra o rosto todo, que lhe luciluz nos olhos até deflagrar no mundo,

é perfeito. 


PG-M 2015
foto da Matilde com publicação devidamente autorizada



2014-10-15

Fernando Alves? "Amo-o"


Depois de uma velha eternidade em que, dia após dia, Fernando Alves me deixava assombrado, arrebatado, das madrugadas de rádio à beira do colapso, afastei-me e cortei os pulsos da escrita, e tenho de escrever para não me esvair em sangue, ou para me esvair, sim, devo escrever para me esvair em sangue, e deixei de ser capaz de parar de escrever ou de ler, apercebi-me de que me esperavam Camus, Kafka, Vergílio, Vieira, Torga, Saramago, Lobo Antunes, e deixei a rádio, aqueles febris dias de uma rádio que eu próprio fiz, e a rádio faz-se - nos idos de noventa.

Este é um motivo, provavelmente um motivo falso, uma explicação conveniente.

A verdade é que muito Fernando Alves pode matar, o corpo comove-se e o olhar ergue-se para brilhar insuportavelmente mais do que os astros, os que brilham ou reflectem a luz dos outros, e queremos estar com ele na caverna onde não existe nada que comunique com o exterior para lhe dar uma palmada nas costas, um gole de tinto que repousa num copo de três entre o polegar e o indicador, e dizer-lhe: "é isso, companheiro, é mesmo isso,"

ou, a sorrir, "esta vida é uma merda"
ou, a chorar, "uma merda maravilhosa".

Deixei-o por sobrevivência, pois, e agora encontro-o igual, sem tirar, nos mesmos Sinais, e, com a modernice das playlists em podcasts, pedalo por aí com um sinal atrás do outro, Fernando Alves não cansa, vai-se pelas ciclovias a rir e, às vezes, a chorar, abranda-se ali na marginal do Douro, logo depois de passar por baixo da Ponte da Arrábida, embargado. Tiro ali, precisamente e quase sempre, os auscultadores. Trata-se de ouvir um novo som do rio, uma nova cor veneziana, os rabelos crescem e multiplicam-se, agora têm motor e levam turistas, e fica um som que se reflecte nas escarpas que me recorda o que eu ouvia na cidade silenciosa de Veneza, só lá há passos e vozes e motores de barcos, e, em dias bons, com o norte pelas costas e a subir o rio connosco, é só o que se ouve: o sol a amarrar as pálpebras, vozes, passos e motores de barcos. Esse programa - emitido no meu dia de anos - contava a história do gasolineiro Manecas, de Vila Real, que tirava o número de sapatos só de olhar porque tinha tido várias sapatarias, e num passo, numa voz, num motor, dizia assim o Fernando

"Porque onde eu quero chegar, do pé para a mão, é ao momento em que, falando nós dos homens transmontanos, perguntei a Manecas pelo Torga, e Manuel Mourão (Manecas, como o conhecem em Vila Real), antes de responder, levou a mão ao boné e destapou a cabeça. Não vergou a cerviz: destapou simplesmente a cabeça. No dia seguinte, parei na Galafura a contemplar o poema geológico, a beleza absoluta de que falava o Torga. Fui ao carro buscar o Portugal do Torga, porque é justamente nesse texto, sobre trás-os-montes, que ele fala dos "homens de uma só peça, inteiriços, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (pausa funda - ou de Fernando Alves), e pensei, claro, em Manecas, o homem que sabe medir os pés alheios só com o olhar, muito chão firme terá ele pisado para viver as histórias que me contou, tão firme como o aperto de mão que trocámos. A minha mão, esta que escreve com caligrafia incerta, a dele, aquela que usou para destapar a cabeça quando respondeu à pergunta que lhe fiz (pausa de Fernando Alves) sobre o Torga"

sobre o Torga

Soube, desde esse dia, que tinha de erguer o pedestal que o Fernando nunca aceitará, apesar da merecida comenda, e nunca mais me cansei de ouvir e reouvir (eu que sou tão pobre releitor) os Sinais do Fernando, porque ele, como os grandes livros, diz uma coisa diferente a cada repetição, o do Manecas foram umas quatro ou cinco vezes, e de sentir, sempre de forma infantil, com uns quatro anitos e agarrado às calças dele, vontade de lhe dizer, cada vez que ele fala de um escritor, tal como sentia há mais de vinte anos, senhor Fernando! senhor Fernando!, eu agora também sou escritor, mas sou tão pequeno que o senhor Fernando, habituado aos grandes, como o Torga e o Manecas, não me consegue ver.

senhor Fernando! senhor Fernando!

Pensei, garoto,  imberbe, quando "O livro sem ninguém" foi "Livro do dia TSF" e eu cumpri o sonho de ouvir aquela voz comprida e encantada do Carlos Vaz Marques falar de um livro que me tinha nascido debaixo das mãos mas nunca houvera sido meu, como não é nenhum, que o Fernando, nesse dia, ia finalmente reparar ao que vinha aquele tipo que usa um hífen, o mesmo hífen que, em alguns dicionários, é um insuportável sinal burguês.

E, meses passados, cruzei-me com ele nos corredores da Escritaria da Lídia Jorge e pensei, caramba, ele está sozinho e gosta de abraços firmes, é desta!, esta é a oportunidade de me render ao meu ídolo, mas, tal como fiz cinco longos e tortuosos anos em Coimbra, naquele percurso do trólei três entre o Teatro Académico Gil Vicente e o cruzamento da Avenida Dias da Silva com a Luís de Camões, tive o Torga sentado à minha frente, cara fechada, meu deus, meu bicho, e nunca fui capaz de o incomodar ou de arriscar o que me garantiam: ele vai responder-te mal.

Eu não podia arriscar o desprezo do meu Torga.
Como não podia arriscar a indiferença do meu Fernando.
Mesmo sendo o pequenito de quatro anos agarrado às calças do senhor e seja justa a trapalhice do arrebatamento.

E depois tive este texto de homenagem em suspenso durante tanto tempo, nunca me senti merecedor de o assinar - porque ouvia o Fernando que, sendo dos homens, parece acima deles. Um dia ouvi-o num dos Sinais e tive uma ideia: vou pegar num texto de homenagem de dois amigos que lhe aquecem o coração (por mais banal que seja a expressão, é mesmo isto), e adaptá-lo a nós, com o devido respeito e distância no que a mim me toca. E então glosei:

"Não sei quando é que o Fernando chega aos setenta (nem quanto tempo sou mais novo - ou se até serei mais velho - do que ele). Portugal é capaz de produzir um Fernando Alves: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque tripeiro, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções - porque cada "sinal" é uma canção - impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Vieira, Torga, Pessoa, Saramago, Eusébio, Pavão, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado pelo Fernando e transformado em coloquialismo sem esforço. (...) A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Fernando está em tudo. Tudo está na dicção límpida do Fernando. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto Portugal. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos."

É só a declaração de amor do Caetano ao Chico, que deixei quase igual, e que, quando eu ouvi pela própria voz do Fernando, me fez pensar, caramba, é mais ou menos isto que te quero dizer. Basta-me, com supremo atrevimento, plagiar o génio do Caetano e colocar Fernando ao lado, não sobre, Chico, como se trauteássemos uma cantiga ao desafio como o meu pai fazia, nas noites da minha juventude, e depois o Fernando completava, e que até o Caetano um dia fez em conluio com o Almodóvar, mas não em Almodôvar, que era onde o Fernando o teria feito:

"Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando"

E assim foi.

Fernando Alves? Amo-o.


PG-M 2014