Vai na sombra da noite para que Billie Eilish não faça tanto barulho nem brilhe tanto. Na noite em que choramos mortos ou exaltamos vivos. Olho sempre para cima, para os sábios. Procuro-os, nem sempre os encontro. Há cada vez menos, em absoluto e por cada cabeça vazia. Lembro-me, assim de repente, de Vitorino Nemésio ou Agostinho da Silva, entre os que ainda ouvi e pude admirar vivos. Tenho a certeza de que qualquer um deles, se lhe falassem de Billie Eilish, uma rapariga nascida no mesmo ano, mas já depois, da queda das torres gémeas em Nova Iorque, ouviria e tentaria perceber o que motiva esta crónica: porque é que eu acho genial o que ela nos apresenta que, no meu entender, não se compreende sem o génio musical do irmão Finneas, mas que passa, acima de tudo, pela verdade e pelo carácter de Eilish. O nome, forma gaélica do hebraico Isabel ou Elisabete, é logo uma espécie de testemunho dos pais ao seu deus. Eilish tem as afecções e tiques próprios da idade e do síndrome de Tourette que lhe foi diagnosticado aos 11 anos e com o qual ela vive com grande lucidez, provavelmente o que fez com que muita gente, eu incluído, formasse uma ideia preliminar dela sem tomar as coisas com mais profundidade. Eu não me tinha aproximado o suficiente para perceber que o que estava em causa era algo de extraordinário. Eilish trouxe, como nunca, a compreensão quase absoluta da sua geração. A todos, sem excepção. E de uma forma simples. Perante tal clarividência, se estivermos atentos e ouvirmos e observarmos a proposta, independentemente de nos tornarmos consumidores ou fãs da sua música (eu, na verdade, era fã do irmão Finneas, produtor e músico de excepção, não dela), acabamos por nos render. E, independentemente da desvalorização dos grandes prémios americanos, uma equipa que ganha, só desde 2020, 30 grammys e 2 óscares, tem de ser pelo menos observada e escutada. Não vou detalhar a mensagem, as letras, a música, a forma como foi educada em casa, sem escola, até porque tudo isso podia ter corrido mal. De algum modo, Eilish sempre teve na rectaguarda pessoas decentes, começando por pai e mãe actores e com experiência de ligação ao meio artístico, mas ainda assim podia ter corrido mal. O que mais me impressionou quando aprofundei o conhecimento sobre a Billie Eilish foi perceber imediatamente o temperamento artístico e aquilo a que eu costumo chamar “não dito”: não importa a idade, de onde vem e para onde vai: tudo aquilo sai das profundezas e soa a verdade e eu acho que é. Essa autenticidade e verdade são música para os meus ouvidos antes de Eilish tocar um só acorde. E eu próprio me reconheço mais depressa nela do que em muitos pares que pululam no éter cheios de certezas e criando artifícios para se venderem. Não foi há muito tempo que li dois escritores a definirem o que é a escrita para eles quase da mesma forma: a oportunidade de criar novos mundos. Não é mentira, mas é uma consequência. A consequência de não se poder ser e fazer outra coisa, como disse Rilke a um jovem poeta quando ele se quis definir. Ela sem a música dela, eu sem a ponta dos meus dedos e a seiva dentro do tronco do meu pensamento literário, morreríamos. E se não morrêssemos definhávamos. Daí que haja sempre negrume na arte: há uma cena do documentário que a honra (o magnífico “Billie Eilish: The World's a Little Blurry”) em que a mãe lhe diz, por causa de uma música que Eilish está a ultimar: “Não achas que dizeres que a vida só faz sentido se te atirares do telhado é negativo?”, e Eilish responde: “Fazer uma música em que me atiro do telhado é a forma de não me atirar”. Vitorino Nemésio e Agostinho da Silva não teriam sido mais brilhantes. Mas teriam entendido. Milhões de pessoas que a seguem também. Pais que não entendiam os seus filhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres que a ouvem e choram desalmadamente e depois está tudo bem. A vida não é fácil, não. Mas com génios como Eilish, mesmo génios negros e aparentemente sombrios (oh, é tão melhor o agridoce de Eilish do que a lamechice enjoativa e fraca da curta de animação que ganhou o óscar ao nosso João Gonzalez: apesar dos magníficos desenhos do Menino, da Toupeira, da Raposa e do Cavalo, da mensagem supostamente positiva, o texto é das coisinhas mais mentecaptas que já li e ainda foi ganhar a um brilhante Ice Merchants cujo argumento se desenvolve bem melhor e, curiosamente, sem palavras) tudo se torna leve, mesmo que pareça um contra-senso: a maior dor é não nos conseguirmos expressar e com Eilish todos nos expressamos, mesmo contra ela, como acontece normalmente com os sucessos planetários que, por excesso de escala, acossam toda a humanidade do ídolo. Não é fácil, Eilish, aguenta-te aí. Para vires de génio a sábia e não seguires o caminho de outros génios na música. E em todas as artes. Por favor. Ser poeta é mesmo ser mais alto e isso é uma merda.
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foto de Jamie Luca