2024-07-18

Belén Caccia

Belén Caccia. Quem é? Esta é uma crónica sobre espanto em tempo de desencanto, sobre elevação no centro do abuso de aspecto triste e pequenino, mas que mói tanto como o que parece grade e arrasador. Quem é? Estes são os tempos em que fazemos sempre esta pergunta e queremos responder sem ajuda e sem critério. E a maior parte de nós não quer realmente saber a resposta: não quer saber quem é a pessoa, apenas de que forma pode servir os seus próprios interesses ou ser tolerável no momento em que se cruzar com ela. Assume que é o capuchinho vermelho e só se quer certificar que do outro lado não está o lobo mau pronto a roubar-nos o almoço e a comer-nos a avó. Não conheço muita gente que faça uma utilização cívica e social da informação que obtém. Já conheço muita gente que pura e simplesmente não quer saber. Em eventos públicos como festivais literários isso é flagrante e agora sim, vou armar-me em carapau: eu nunca fui a um evento em que tivesse um ou mais interlocutores ou companheiros de mesa sem saber o possível quem eram e o que pensavam e, sendo artistas, o que faziam ou tinham escrito (lendo) ou pintado ou cantado ou tocado. Muitas vezes cheguei às mesas a saber mais deles do que de mim. E tive sempre o cuidado de lhes dar o protagonismo, subtraindo ao meu. A verdade: fi-lo nos primeiros tempos (na literatura) porque não sabia tê-lo (ao protagonismo) e nos seguintes porque realmente me interessa sair de um lugar diferente do que nele entrei e a diferença não sou eu, são os outros, os que conheço de novo.

Quando fui a Madrid no fim de Maio - nos próximos dias levantarei o véu sobre este dois dias e meio magníficos - sabia que a minha anfitriã seria Belén Caccia. E obviamente a pergunta foi:

Quem é Belén Caccia?

Quem está a ler isto vai querer saber e a primeira via é o Google, por estes dias, como noutros foram as páginas amarelas. Normalmente inconsequente ou incompleta (se me pesquisarem, por exemplo, não há forma de aquele “advogado” se me descolar do corpo porque o Google não quer, mesmo que eu preferisse ser só escritor quando fosse pesquisado, ainda que um dia, em São Pedro do Corval, Alentejo, dito o maior centro oleiro do país, depois de ter dito ao rapaz que nos serviu a refeição de um restaurante local que era escritor - decidi nesse dia que me intitularia isso antes de qualquer outra coisa, que no fundo é o que sinto - e ele ter respondido “está bem”e ter voltado um minuto depois e perguntado: “Agora a sério, o que é que faz mesmo?”).

Quando pesquisei Belén Caccia os resultados do google foram avassaladores.

Aliás, basta consultar o curriculum da Belén  no seu pórpio sítio para ficar de queixo caído. E eu que pensava que ia ser recebido por uma anfitriã institucional simpática e cordata, percebo que quem me espera é um par das Artes e mais, é alguém com um vasto curriculum que merece atenção, que merece que me importe com ela: precisamente o que eu sinto não acontecer em meios que deviam ter sempre o propósito colectivo acima de qualquer propósito individual.

Tão vasto que decido suspender as leituras e as séries e os filmes durante pelo menos dois dias para absorver tudo o que me fosse possível de uma mulher com mais de trinta anos de carreira sempre ao mais alto nível e que é dramaturga, actriz e encenadora (de Shakespeare, entre muitos outros) e professora de teatro. Ou seja, esperava-me uma pessoa valorosa. Fiquei feliz e fiz uma vénia ao destino antes de a fazer à Belén. A carreira brilhante da Belén precede-a e está espelhada no seu portal profissional. Ainda que impressione, o que mais me impressionou foram outra coisas e delas quero dar testemunho.

A Belén tem um “problema”. É uma mulher deslumbrante, “ainda que” (o sublinhado não é inocente) esteja já perto dos cinquenta. Foi mãe aos 40 e disso fez gala, com grande coragem. Foi uma grávida belíssima. Tem um filho mágico (por mérito próprio) chamado Oliver. E ela própria disse em entrevistas que sabe tirar melhor partido do corpo na idade actual do que quando era mais nova.

Do vasto material que fui absorvendo durante esses dois dias fechado a tudo o resto, vi sempre talento, mesmo no papel mais difícil, que tem dominado muito os dias de Belén Caccia desde que veio do seu país natal, Argentina, onde fez praticamente toda a sua carreira, para Madrid, onde começou do zero (quanta coragem!): stand up comedian.

Ri-me muito, mas também fiquei em sentido. Na verdade fiquei deslumbrado.

Deixem-me acelerar o relato até ao ponto em que também fiquei envergonhado, embora não me espante no mundo de hoje e principalmente no mundo dos homens de hoje que não se sabem conter no seu pequeno poder digital e preferem o ridículo, que nos envergonha a todos:

No seu instagram a Belém tem uma secção chamada “bloqueaditos”. Quase todos homens, pois claro, como também  são quase todos homens os violadores e os abusadores. E estes não contribuem para uma pacificação para que seja possível voltar a dar colo às crianças e haja espaço para os homens bons. Porque o erotismo e a sexualidade são coisas que exigem lucidez, despoluição mental, classe, tento e respeito, não diabolização. Foi confrangedor ver como se comportam os homens só porque a mulher é bonita: não lhes importa se é valorosa. O ridículo em que tantas vezes caímos sem termos noção. Confrangedor e enriquecedor.

Não foi surpresa para mim que a maioria dos trogloditas achem que uma mulher bonita que se mostra deslumbrante não pode valer muito. E não valendo muito eles sintam que lhe têm acesso fácil só porque está ali no instagram e podem dizer a primeira coisa que lhes vem à cabeça. E ainda achem que ela lhes vai cair nos braços.

Repetem-se quase como se fossem invariáveis e invevitáveis  os clichês do “princesa”, “rainha”, “deusa”, os convites ostensivos para sair ou para serem recebidos por ela em casa. Às vezes são explícitos e deram-me a verdadeira medida do atraso masculino quie ainda persiste e que ainda é do tamanho de Júpiter.

A Belén enfrenta tudo com coragem e determinação. E classe e beleza. E inteligência. E humor. É um grande exemplo de força para qualquer pessoa, mais ainda do que para qualquer mulher. 

Veio de um continente e de um país, o seu, onde era sobejamente conhecida e figura pública para um meio e um país, o do nascimento da sua língua, quase sem rede. É o verdadeiro esplendor, mas pouco conhecida à escala espanhola e obviamente ainda menos portuguesa e europeia. E depois? precisamos que seja “conhecida” e “socialite” falada em todos os meios de comunicação para lhe darmos valor? Esse é o ponto. O combate de décadas pela dignidade e superioridade da mulher nunca esmoreceu, fosse ou não reconhecido pelos poderes e pela imprensa. 

E o que faz a maioria das pessoas (homens acima de tudo e infelizmente)? Pergunta quem é e que projecção tem. Responde de forma frívola e simplista logo a seguir. Muitas vezes com menoscabo. 

Pois eu, quando tive a mínima noção da pessoa que ia conhecer, fiz traduzir e ajudei o mais que pude a Cristina Vicente a rever a tradução da única peça que escrevi, “Ekaterina com as mulheres sobre tudo”, até hoje só representada parcialmente, levei-a pronta e dediquei-lha dizendo, como só direi a alguém que respeite muito: “Gostava que fosses a primeira pessoa em Espanha a encenar a minha peça”. 

Não farei muito mais para vos convencer que ao acompanhar a Belén Caccia estamos garantidamente a acompanhar uma grande e, seguramente, uma das maiores.

E que não importa que isso tenha apoio em currículos vazios e produzidos para o efeito. Não. É mais justo vê-la, acompanhá-la, rimo-nos com ela.

Dos projectos correntes, além de podcasts e entrevistas, e ela nunca pára, todos tive pena de não ter visto senão extractos, como MILF (“Mujer inteligente, libre y felíz”), que está a ser um grande sucesso sempre que tem uma representação, qualquer encenação do Shakespeare, mas também qualquer noite de Belén ao vivo como stand up comedian, sendo certo que, como ela própria diz e é inteligente e sábio, ainda não se mete em política espanhola, como fazia na Argentina.

É uma mulher que trabalha tanto e pega de frente todos os problemas e não há um minuto perdido em todos os que lhe dediquei e dedico. E é linda e isso não pode ser um problema.

Quem é Belén Caccia?

É simplesmente uma artista maior.

Maior ainda do que isso.

O que percebi é que, além da sorte (minha) de a ter como anfitriã, o espírito de combate da Belén é tal, a tarimba para a luta e os projectos múltiplos, que ela própria não pára um segundo para ouvir elogios e em princípio não acredita mesmo que é já uma das maiores do seu tempo. Não é na Argentina. É em todo lado.

E eu com isso. E nós com isso.

Os sábios são sempre assim: por mais brilhantes ou belos,

têm sempre o pescoço curvado em vénia.

Em princípio não nos deve interessar quem não se apresentar em vénia. Ela faz isso. E temo-la aqui, do outro lado do ecrã.

Aproveitemos a excelência enquanto aí está.

Obrigado, Belén!

#Belencaccia #madrid #argentina

#pedroguilhermemoreira

PS: não consegui descobrir quem creditar a belíssima composição fotográfica. Quando souber, prometo que o faço.


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