Porque é que eu estive em Madrid no final de Maio de 2024 e porque é que o Readmagine se revelou um momento notável. Vou ser-vos sincero: ando triste como o estado da nação literária.
E novidades, há?
Quando falo do Quixote (para lá da editora que me publica), recomendo sempre o prefácio escrito pelo punho do próprio Cervantes. Não destoaria hoje. As queixas são muito parecidas.
Mas há um probleminha: todos os prefácios escritos até ao ano 2.000 (embora a tecnologia tivesse aparecido no início dos anos 70 do século XX) eram-no tendo em conta o mesmo modelo que herdámos do Pentateuco do algarvio Samuel Gacon, em 1487, e que foi pouco depois sistematizado e profissionalizado por Gutenberg. O papel, a tinta, o prelo. Um pouco antes da viragem para o terceiro milénio generalizou-se o ebook e rapidamente o (já) rei da distribuição tentou aprisioná-lo no Kindle para não serem esmagadas as suas margens na distribuição física, o que conseguiria durante mais três décadas, como ainda podemos ver e sentir.
O formato digital ficaria, pois, estagnado por razões de rentabilidade económica de alguns, o que não é assim tão diferente de algumas revoluções tecnológicas do passado que pareceram montanhas a parir ratos e muito menos diferente é dos tempos de hoje: cada livro precisa de chegar a todos em todos os formatos disponíveis, mas é muito mais rentável vendê-los em separado e é por isso que as grandes cadeias mundiais pouco têm feito para os agregar.
Ao olhar para os números é também surpreendente ver como as livrarias e o papel ainda têm uma fatia de leão na venda de livros, o livro digital tem uma quota ainda relativamente baixa e estabilizada e o áudio, apesar de representar uma percentagem mundial entre um e dois por cento, tem tido um crescimento exponencial, com tendência a acelerar, sendo obviamente o formato que mais vai crescer nos próximos anos. Portugal é, contudo, dos países mais atrasados neste domínio, como é perceptível para quem vive nele, no meio literário, ou para quem o tenta usar para ganhar a vida.
Recentemente um quadro de topo da casa mãe da Penguin Random House, Madeline McIntosh, despediu-se e criou a sua própria editora, Authors Equity, que promete pagar ao autor percentagens de venda do seu próprio livro que mais do que quadruplicam (serão 40 a 60%) a actual prática do mercado, que é pagar ao autor uma vergonhosa percentagem das vendas que anda entre os 8 e os 10% (ou nada. Na verdade há quem obrigue o autor a pagar), sendo que muitos não sabem que, no silêncio do contrato, a lei portuguesa obriga a que ao autor seja paga uma percentagem de 25% das vendas, o que seria mais consonante com o facto de não existir obra sem ele. Foi isso que a americana explicou na conferência que abriu o Readmagine 2024, e eu, enquanto a ouvia, comecei imediatamente a redigir uma pergunta que faria no final, mas não houve período para perguntas nessa primeira conferência, ainda que perpassasse por toda a conferência a ideia de que o autor devia voltar a ser o centro do mundo editorial (o novo “Writer-centric-mode”, como referia a Madeline): que boa ideia! Só que. A pergunta, que se queria bem humorada, ainda que assertiva, seria mais ou menos esta:
“Perdoem-me se eu, como autor, não me sinto o centro do mundo editorial. Geralmente sinto-me mais um chato ou aquela coisa a que chamam “de nicho”, e não vos vou insultar falando de toda a grande arte que não vendemos nas nossas vidas “de nicho”, a bem dizer isto já vem de Camões e Van Gogh e assim por diante. A questão é que precisamos de comer e alimentar as nossas famílias. E pensamos sempre que a culpa é nossa por não o conseguirmos fazer. Não quero ser dramático nem insensível e vou perguntar isto com algum humor.
A questão é simples:
e se não houver lucro? Morremos todos? 🙃"
Mas tudo isso se deveu, do meu lado, a um rapaz desafiante, humilde e de olhos brilhantes, dos poucos escritores, como eu, presentes no Readmagine, o neerlandês CEO da Immer (que pensa a forma de nos fazer ler com mais conforto nos telemóveis e está a fazer sucesso na ligação aos clubes de leitura, escolas e bibliotecas neerlandesas) Niels T’Hooft, que, conhecedor da minha abordagem crítica ao desinteresse pelo leitor e pelo escritor das empresas municiadoras dos grande conglomerados editoriais, me desafiou a partir pedra e a reflectir em Madrid e foi o que fizemos, percorrendo Madrid a pé enquanto tomávamos ideias no ar e no balão de cada um e as trazíamos para reflexão entre copas, claritas, cañas e cafés solos.
O Readmagine é, há quase vinte anos (!!! E não o conhecia, pois não?), a Semana de Inovação Digital em Leitura, Livros e Bibliotecas, organizada pela Fundação Germán Sánchez Ruipérez (FGSR) na sua sede de Madrid: Casa del Lector, o antigo Matadouro, hoje com deslumbrantes instalações. São conversas, workshops, conferências, encontros e outros formatos para a troca de ideias em torno do processo de transformação da leitura e dos livros.
Tem a (humilde. Repito: humilde) participação de profissionais dos cinco continentes e reúne o segmento mais inovador do mundo dos livros e da leitura. A cada ano, o Readmagine é organizado com um foco especial em torno de alguma questão, tendência ou desafio, e esse tema influencia a maioria dos diálogos e apresentações.
Tem como caras visíveis dois homens que aprendi a respeitar, dada a impressionante simplicidade, Luis González (Director at FGSR) e José Manuel Anta (Director at FANDE/IPDA).
Mas quem também lá estava e me espantou, já que a Feira do Livro de Madrid abria no dia seguinte, era a Eva Orúe (directora executiva da Feira), que foi explicando o que, de algum modo, foi surpreendente, e que acabou por acontecer no Porto por absoluta incompetência histórica da APEL e do Rui Rio na simples capacidade de entendimento, é que Madrid ainda é uma feira de livreiros locais, que, como ela diz, são os seus patrões e os donos da feira. Mas pediu para não dizer a ninguém.
Protagonistas por razões diferentes foram Searsha e Richard, uma pela inovação no modelo publicitário dos livros pela via da Inteligência Artificial, a britânica vestida de verde-esperança, da Shimmr, Searsha Sadek, outro pela sabedoria, Richard Charkin (fundador da Mensch Publishing).
Estando lado a lado durante com estes dois no cocktail dado durante as pausas para almoço, disse ao Richard “obrigado por ser tão sábio” e à Searsha “obrigado por ser tão inspiradora”. Com uma gargalhada, o Richard disse que ele tinha de ser, claro, despachado como o sábio, não como o inspirador, porque não tinha a beleza da Searsha. Respondi de imediato: “Obrigado por ser tão sábia” para ela e “obrigado por ser tão inspirador” para ele.
Rimo-nos e afastei-me, deixando claro, como o Romeiro do Frei Luís de Sousa de Garrett: “Eu não sou ninguém, sou apenas um escritor português”.
E o que é isso, “um escritor português”? É uma coisa “game changer”? Devia, mas não é.
A pergunta chegou mais tarde de outros quadrantes. Dois oradores aproximaram-se de mim e disseram e perguntaram: “Nós vamos a quatro ou cinco eventos anuais em todo o mundo que pensam o futuro da leitura. Porque é que nunca vemos portugueses nestes eventos?”
A minha resposta foi rápida, embora eu saiba que pelo menos os bibliotecários itinerantes já terão passado por um dos Readmagines do passado, mas isso não altera o facto de termos tido quase vinte edições e de os portugueses estarem essencialmente ausentes destes momentos a nível europeu e mundial. E a minha resposta foi, sem hesitar:
“Falta de humildade e complexo imperialista”
Acredito mesmo nisto.
Tem sido flagrante com a recente lista dos cem livros do século XXI (so far) para o New York Times. Tudo o que eu leio são opiniões - mesmo as mais respeitáveis de pessoas muito respeitáveis - que transmitem desprezo e a ideia de que nós é que sabemos.
Mas nós não sabemos nada.
Somos um mercado anémico e não sabemos nada.
E a única solução para isso é pensarmos em conjunto.
Não vamos lá pela mini mini mini masturbação colectiva nem lembrando que outrora fomos os donos do mundo e por isso sabemos tudo. E que de repente fazemos Expos 98 ou Europeus ou Mundiais. Porque esse é o problema: as mini masturbação e o joelho: assim de repente e em cima do joelho a gente vai lá. Mas não comandamos antes ou depois. Nada. Só lá vamos com Quixotes que de vez em quando, normalmente por mor do esforço pessoal, não do país, emergem.
E como eu gostava de ter companheiros e companheiras neste caminho, que decididamente farei até ao meu último suspiro: remar (ou velejar) em prol de uma grande causa colectiva que devolva a leitura ao seu esplendor.
(também a literatura, mas aqui o caminho é mais simples: os logros - quase todos - e o ruído são muito fáceis de identificar e ainda temos os grandes que vêm de há muitos séculos até ao dia de hoje para nos dar guarida; o grande problema é que alguns desses grandes misturam-se hoje com os medíocres - que ocupam todo o espaço - por conveniência económica ou influência ou, mais raro, mera inocência, que no leitor não informado é quase generalizada; o que fazer? O mundo não se muda só por denúncia nas redes sociais: é aí que aposto nos cavalos de tróia como o Festival Literário de Ovar, entre outros não indentificados, que espero se repliquem pelas próximas décadas até a qualidade voltar, a matéria, a essência, voltarem a ser dominantes: e que as gerações seguinte tomem as rédeas destes ataques que implodirão toda a mediocridade, hoje líder mundial)
Pensando e questionando sempre as minhas convicções.
Porque amo os livros até à exaustão.
Tenho dito. Readmaginado.
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