2024-08-15

Eilish: grandeza e a sabedoria onde os que se têm por tal nada vêem

Vai na sombra da noite para que Billie Eilish não faça tanto barulho nem brilhe tanto. Na noite em que choramos mortos ou exaltamos vivos. Olho sempre para cima, para os sábios. Procuro-os, nem sempre os encontro. Há cada vez menos, em absoluto e por cada cabeça vazia. Lembro-me, assim de repente, de Vitorino Nemésio ou Agostinho da Silva, entre os que ainda ouvi e pude admirar vivos. Tenho a certeza de que qualquer um deles, se lhe falassem de Billie Eilish, uma rapariga nascida no mesmo ano, mas já depois, da queda das torres gémeas em Nova Iorque, ouviria e tentaria perceber o que motiva esta crónica: porque é que eu acho genial o que ela nos apresenta que, no meu entender, não se compreende sem o génio musical do irmão Finneas, mas que passa, acima de tudo, pela verdade e pelo carácter de Eilish. O nome, forma gaélica do hebraico Isabel ou Elisabete, é logo uma espécie de testemunho dos pais ao seu deus. Eilish tem as afecções e tiques próprios da idade e do síndrome de Tourette que lhe foi diagnosticado aos 11 anos e com o qual ela vive com grande lucidez, provavelmente o que fez com que muita gente, eu incluído, formasse uma ideia preliminar dela sem tomar as coisas com mais profundidade. Eu não me tinha aproximado o suficiente para perceber que o que estava em causa era algo de extraordinário. Eilish trouxe, como nunca, a compreensão quase absoluta da sua geração. A todos, sem excepção. E de uma forma simples. Perante tal clarividência, se estivermos atentos e ouvirmos e observarmos a proposta, independentemente de nos tornarmos consumidores ou fãs da sua música (eu, na verdade, era fã do irmão Finneas, produtor e músico de excepção, não dela), acabamos por nos render. E, independentemente da desvalorização dos grandes prémios americanos, uma equipa que ganha, só desde 2020, 30 grammys e 2 óscares, tem de ser pelo menos observada e escutada. Não vou detalhar a mensagem, as letras, a música, a forma como foi educada em casa, sem escola, até porque tudo isso podia ter corrido mal. De algum modo, Eilish sempre teve na rectaguarda pessoas decentes, começando por pai e mãe actores e com experiência de ligação ao meio artístico, mas ainda assim podia ter corrido mal. O que mais me impressionou quando aprofundei o conhecimento sobre a Billie Eilish foi perceber imediatamente o temperamento artístico e aquilo a que eu costumo chamar “não dito”: não importa a idade, de onde vem e para onde vai: tudo aquilo sai das profundezas e soa a verdade e eu acho que é. Essa autenticidade e verdade são música para os meus ouvidos antes de Eilish tocar um só acorde. E eu próprio me reconheço mais depressa nela do que em muitos pares que pululam no éter cheios de certezas e criando artifícios para se venderem. Não foi há muito tempo que li dois escritores a definirem o que é a escrita para eles quase da mesma forma: a oportunidade de criar novos mundos. Não é mentira, mas é uma consequência. A consequência de não se poder ser e fazer outra coisa, como disse Rilke a um jovem poeta quando ele se quis definir. Ela sem a música dela, eu sem a ponta dos meus dedos e a seiva dentro do tronco do meu pensamento literário, morreríamos. E se não morrêssemos definhávamos. Daí que haja sempre negrume na arte: há uma cena do documentário que a honra (o magnífico “Billie Eilish: The World's a Little Blurry”) em que a mãe lhe diz, por causa de uma música que Eilish está a ultimar: “Não achas que dizeres que a vida só faz sentido se te atirares do telhado é negativo?”, e Eilish responde: “Fazer uma música em que me atiro do telhado é a forma de não me atirar”. Vitorino Nemésio e Agostinho da Silva não teriam sido mais brilhantes. Mas teriam entendido. Milhões de pessoas que a seguem também. Pais que não entendiam os seus filhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres que a ouvem e choram desalmadamente e depois está tudo bem. A vida não é fácil, não. Mas com génios como Eilish, mesmo génios negros e aparentemente sombrios (oh, é tão melhor o agridoce de Eilish do que a lamechice enjoativa e fraca da curta de animação que ganhou o óscar ao nosso João Gonzalez: apesar dos magníficos desenhos do Menino, da Toupeira, da Raposa e do Cavalo, da mensagem supostamente positiva, o texto é das coisinhas mais mentecaptas que já li e ainda foi ganhar a um brilhante Ice Merchants cujo argumento se desenvolve bem melhor e, curiosamente, sem palavras) tudo se torna leve, mesmo que pareça um contra-senso: a maior dor é não nos conseguirmos expressar e com Eilish todos nos expressamos, mesmo contra ela, como acontece normalmente com os sucessos planetários que, por excesso de escala, acossam toda a humanidade do ídolo. Não é fácil, Eilish, aguenta-te aí. Para vires de génio a sábia e não seguires o caminho de outros génios na música. E em todas as artes. Por favor. Ser poeta é mesmo ser mais alto e isso é uma merda.


#pedroguilhermemoreira

#eilish #billieeilish #finneas

foto de Jamie Luca

2024-07-23

Biblioteca Saramago de Madrid e Livrarias Sin Tarima e Pequeños Seres

Consta que é a primeira vez em Espanha. Que uma biblioteca espanhola se especializa em livros em português. Os livros não chegam lá por apoio público, é importante os autores portugueses passarem pela Biblioteca Saramago de Madrid: fica a dica. Que se ajude quem merece e trata de nós, escritores, como ninguém.

A mim honraram-me recebendo-me de forma magnífica e dando um grande destaque aos meus três éditos, sendo que o terceiro entre eles é precisamente o livro que faz de Saramago o Quixote que sobe às estrelas (mesmo que não quisesse, em princípio, disse-lho e provei-lho em todo um livro que os seus leitores precisavam que integrasse a colectividade das estrelas que brilham sobre eles, assim como lhe dei - com a Pilar - os quinze dias em Paris que se haviam prometido e não tido. Pois que os tiveram no Saramaguíada).


Mais importante seria promover encontros com leitores madrilenos (de qualquer nacionalidade, mas que tenham curiosidade no português, até para lhes dizer que já há uma biblioteca espanhola com o nosso perfume) à margem de um evento como o Readmagine e aproveitando a oportunidade de lá estar uns dias, com a Feira do livro de Madrid a borbulhar bem perto.


E foi possível fazer de tudo um pouco, desde as “citas” espontâneas na Sin Tarima, graças à abnegação e paixão por livros de uma livreira bem portuguesa em Madrid, a inspiradora Sofia de Castro Pereira, que cuida dos leitores da Sin Tarima e que bonito foi passar um fim de tarde com leitores madrilenos a sair e a entrar e perceber que o português “está de moda”, vê-los levar os meus livros para casa e até debater longamente o Ulysses do Joyce com um galego chamado José Pedreira, aficcionado do livro, e ficar até ao fecho, a que eu desajudei (derrubando alguns livros) mais do que ajudei, e ficar de balanço a copas.


Na magnífica Pequeños Seres a hora era de apoiar o livreiro Leo, que estava a montar a sua casa na Feira do Livro de Madrid. Na livraria ficou o Fran, que me ajudou a perceber em que livros a Pequeños Seres tinha margem maior e a adquirir-lhe esses.



A noite da véspera da partida foi a mais íntima: com uma anfitriã magnífica (remeto para o texto “Belén Caccia”) e sendo um especial adepto e já relativamente conhecedor de Madrid, foi com um livro de uma escritora intrigante e grande conhecedora de livros chamada Beatriz Alvarez que percorri as ruas de Madrid parando para a ler em dezenas de cantos, entre cafés e claritas e charlas. Lavapiés, Tirso Molina, Sol, Plaza Santana para o encontro habitual com o Lorca.


Não poderia deixar Madrid sem visitar o Quixote original na Biblioteca Nacional de Espanha, que tem uma pequena, gratuita mas muito relevante exposição permanente que percorre várias cronologias ligadas aos livros.


Já porque é que um escritor português sozinho à solta em Madrid pode trazer-nos lições de sapiossexualidade fica para outras calendas, ou, como diz o gentil Joel Cleto, outros caminhos da História 🙂.


Obrigado, Madrid!


#pedroguilhermemoreira #sofiacastropereira

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2024-07-22

Readmagine: visão, cálculo, humanidade, criatividade

 Este é um artigo de fundo, por isso detenha-se já se não gosta de perder o pé 🙂.

Porque é que eu estive em Madrid no final de Maio de 2024 e porque é que o Readmagine se revelou um momento notável. Vou ser-vos sincero: ando triste como o estado da nação literária.

E novidades, há?

Quando falo do Quixote (para lá da editora que me publica), recomendo sempre o prefácio escrito pelo punho do próprio Cervantes. Não destoaria hoje. As queixas são muito parecidas.

Mas há um probleminha: todos os prefácios escritos até ao ano 2.000 (embora a tecnologia tivesse aparecido no início dos anos 70 do século XX) eram-no tendo em conta o mesmo modelo que herdámos do Pentateuco do algarvio Samuel Gacon, em 1487, e que foi pouco depois sistematizado e profissionalizado por Gutenberg. O papel, a tinta, o prelo. Um pouco antes da viragem para o terceiro milénio generalizou-se o ebook e rapidamente o (já) rei da distribuição tentou aprisioná-lo no Kindle para não serem esmagadas as suas margens na distribuição física, o que conseguiria durante mais três décadas, como ainda podemos ver e sentir.

O formato digital ficaria, pois, estagnado por razões de rentabilidade económica de alguns, o que não é assim tão diferente de algumas revoluções tecnológicas do passado que pareceram montanhas a parir ratos e muito menos diferente é dos tempos de hoje: cada livro precisa de chegar a todos em todos os formatos disponíveis, mas é muito mais rentável vendê-los em separado e é por isso que as grandes cadeias mundiais pouco têm feito para os agregar.

Ao olhar para os números é também surpreendente ver como as livrarias e o papel ainda têm uma fatia de leão na venda de livros, o livro digital tem uma quota ainda relativamente baixa e estabilizada e o áudio, apesar de representar uma percentagem mundial entre um e dois por cento, tem tido um crescimento exponencial, com tendência a acelerar, sendo obviamente o formato que mais vai crescer nos próximos anos. Portugal é, contudo, dos países mais atrasados neste domínio, como é perceptível para quem vive nele, no meio literário, ou para quem o tenta usar para ganhar a vida.


Recentemente um quadro de topo da casa mãe da Penguin Random House, Madeline McIntosh, despediu-se e criou a sua própria editora, Authors Equity, que promete pagar ao autor percentagens de venda do seu próprio livro que mais do que quadruplicam (serão 40 a 60%) a actual prática do mercado, que é pagar ao autor uma vergonhosa percentagem das vendas que anda entre os 8 e os 10% (ou nada. Na verdade há quem obrigue o autor a pagar), sendo que muitos não sabem que, no silêncio do contrato, a lei portuguesa obriga a que ao autor seja paga uma percentagem de 25% das vendas, o que seria mais consonante com o facto de não existir obra sem ele. Foi isso que a americana explicou na conferência que abriu o Readmagine 2024, e eu, enquanto a ouvia, comecei imediatamente a redigir uma pergunta que faria no final, mas não houve período para perguntas nessa primeira conferência, ainda que perpassasse por toda a conferência a ideia de que o autor devia voltar a ser o centro do mundo editorial (o novo “Writer-centric-mode”, como referia a Madeline): que boa ideia! Só que. A pergunta, que se queria bem humorada, ainda que assertiva, seria mais ou menos esta:

“Perdoem-me se eu, como autor, não me sinto o centro do mundo editorial. Geralmente sinto-me mais um chato ou aquela coisa a que chamam “de nicho”, e não vos vou insultar falando de toda a grande arte que não vendemos nas nossas vidas “de nicho”, a bem dizer isto já vem de Camões e Van Gogh e assim por diante. A questão é que precisamos de comer e alimentar as nossas famílias. E pensamos sempre que a culpa é nossa por não o conseguirmos fazer. Não quero ser dramático nem insensível e vou perguntar isto com algum humor.

A questão é simples:

e se não houver lucro? Morremos todos? 🙃"

Mas tudo isso se deveu, do meu lado, a um rapaz desafiante, humilde e de olhos brilhantes, dos poucos escritores, como eu, presentes no Readmagine, o neerlandês CEO da Immer (que pensa a forma de nos fazer ler com mais conforto nos telemóveis e está a fazer sucesso na ligação aos clubes de leitura, escolas e bibliotecas neerlandesas) Niels T’Hooft, que, conhecedor da minha abordagem crítica ao desinteresse pelo leitor e pelo escritor das empresas municiadoras dos grande conglomerados editoriais, me desafiou a partir pedra e a reflectir em Madrid e foi o que fizemos, percorrendo Madrid a pé enquanto tomávamos ideias no ar e no balão de cada um e as trazíamos para reflexão entre copas, claritas, cañas e cafés solos.

O Readmagine é, há quase vinte anos (!!! E não o conhecia, pois não?), a Semana de Inovação Digital em Leitura, Livros e Bibliotecas, organizada pela Fundação Germán Sánchez Ruipérez (FGSR) na sua sede de Madrid: Casa del Lector, o antigo Matadouro, hoje com deslumbrantes instalações. São conversas, workshops, conferências, encontros e outros formatos para a troca de ideias em torno do processo de transformação da leitura e dos livros.

Tem a (humilde. Repito: humilde) participação de profissionais dos cinco continentes e reúne o segmento mais inovador do mundo dos livros e da leitura. A cada ano, o Readmagine é organizado com um foco especial em torno de alguma questão, tendência ou desafio, e esse tema influencia a maioria dos diálogos e apresentações.

Tem como caras visíveis dois homens que aprendi a respeitar, dada a impressionante simplicidade, Luis González (Director at FGSR) e José Manuel Anta (Director at FANDE/IPDA).

Mas quem também lá estava e me espantou, já que a Feira do Livro de Madrid abria no dia seguinte, era a Eva Orúe (directora executiva da Feira), que foi explicando o que, de algum modo, foi surpreendente, e que acabou por acontecer no Porto por absoluta incompetência histórica da APEL e do Rui Rio na simples capacidade de entendimento, é que Madrid ainda é uma feira de livreiros locais, que, como ela diz, são os seus patrões e os donos da feira. Mas pediu para não dizer a ninguém.

Protagonistas por razões diferentes foram Searsha e Richard, uma pela inovação no modelo publicitário dos livros pela via da Inteligência Artificial, a britânica vestida de verde-esperança, da Shimmr, Searsha Sadek, outro pela sabedoria, Richard Charkin (fundador da Mensch Publishing).

Estando lado a lado durante com estes dois no cocktail dado durante as pausas para almoço, disse ao Richard “obrigado por ser tão sábio” e à Searsha “obrigado por ser tão inspiradora”. Com uma gargalhada, o Richard disse que ele tinha de ser, claro, despachado como o sábio, não como o inspirador, porque não tinha a beleza da Searsha. Respondi de imediato: “Obrigado por ser tão sábia” para ela e “obrigado por ser tão inspirador” para ele.

Rimo-nos e afastei-me, deixando claro, como o Romeiro do Frei Luís de Sousa de Garrett: “Eu não sou ninguém, sou apenas um escritor português”.

E o que é isso, “um escritor português”? É uma coisa “game changer”? Devia, mas não é.

A pergunta chegou mais tarde de outros quadrantes. Dois oradores aproximaram-se de mim e disseram e perguntaram: “Nós vamos a quatro ou cinco eventos anuais em todo o mundo que pensam o futuro da leitura. Porque é que nunca vemos portugueses nestes eventos?”

A minha resposta foi rápida, embora eu saiba que pelo menos os bibliotecários itinerantes já terão passado por um dos Readmagines do passado, mas isso não altera o facto de termos tido quase vinte edições e de os portugueses estarem essencialmente ausentes destes momentos a nível europeu e mundial. E a minha resposta foi, sem hesitar:

“Falta de humildade e complexo imperialista”

Acredito mesmo nisto.

Tem sido flagrante com a recente lista dos cem livros do século XXI (so far) para o New York Times. Tudo o que eu leio são opiniões - mesmo as mais respeitáveis de pessoas muito respeitáveis - que transmitem desprezo e a ideia de que nós é que sabemos.

Mas nós não sabemos nada. 

Somos um mercado anémico e não sabemos nada.

E a única solução para isso é pensarmos em conjunto.

Não vamos lá pela mini mini mini masturbação colectiva nem lembrando que outrora fomos os donos do mundo e por isso sabemos tudo. E que de repente fazemos Expos 98 ou Europeus ou Mundiais. Porque esse é o problema: as mini masturbação e o joelho: assim de repente e em cima do joelho a gente vai lá. Mas não comandamos antes ou depois. Nada. Só lá vamos com Quixotes que de vez em quando, normalmente por mor do esforço pessoal, não do país, emergem.

E como eu gostava de ter companheiros e companheiras neste caminho, que decididamente farei até ao meu último suspiro: remar (ou velejar) em prol de uma grande causa colectiva que devolva a leitura ao seu esplendor.

(também a literatura, mas aqui o caminho é mais simples: os logros - quase todos - e o ruído são muito fáceis de identificar e ainda temos os grandes que vêm de há muitos séculos até ao dia de hoje para nos dar guarida; o grande problema é que alguns desses grandes misturam-se hoje com os medíocres - que ocupam todo o espaço - por conveniência económica ou influência ou, mais raro, mera inocência, que no leitor não informado é quase generalizada; o que fazer? O mundo não se muda só por denúncia nas redes sociais: é aí que aposto nos cavalos de tróia como o Festival Literário de Ovar, entre outros não indentificados, que espero se repliquem pelas próximas décadas até a qualidade voltar, a matéria, a essência, voltarem a ser dominantes: e que as gerações seguinte tomem as rédeas destes ataques que implodirão toda a mediocridade, hoje líder mundial)

Pensando e questionando sempre as minhas convicções.

Porque amo os livros até à exaustão.

Tenho dito. Readmaginado.

#pedroguilhermemoreira

#readmagine

#madrid #livros #futuro

#literatura



2024-07-18

Belén Caccia

Belén Caccia. Quem é? Esta é uma crónica sobre espanto em tempo de desencanto, sobre elevação no centro do abuso de aspecto triste e pequenino, mas que mói tanto como o que parece grade e arrasador. Quem é? Estes são os tempos em que fazemos sempre esta pergunta e queremos responder sem ajuda e sem critério. E a maior parte de nós não quer realmente saber a resposta: não quer saber quem é a pessoa, apenas de que forma pode servir os seus próprios interesses ou ser tolerável no momento em que se cruzar com ela. Assume que é o capuchinho vermelho e só se quer certificar que do outro lado não está o lobo mau pronto a roubar-nos o almoço e a comer-nos a avó. Não conheço muita gente que faça uma utilização cívica e social da informação que obtém. Já conheço muita gente que pura e simplesmente não quer saber. Em eventos públicos como festivais literários isso é flagrante e agora sim, vou armar-me em carapau: eu nunca fui a um evento em que tivesse um ou mais interlocutores ou companheiros de mesa sem saber o possível quem eram e o que pensavam e, sendo artistas, o que faziam ou tinham escrito (lendo) ou pintado ou cantado ou tocado. Muitas vezes cheguei às mesas a saber mais deles do que de mim. E tive sempre o cuidado de lhes dar o protagonismo, subtraindo ao meu. A verdade: fi-lo nos primeiros tempos (na literatura) porque não sabia tê-lo (ao protagonismo) e nos seguintes porque realmente me interessa sair de um lugar diferente do que nele entrei e a diferença não sou eu, são os outros, os que conheço de novo.

Quando fui a Madrid no fim de Maio - nos próximos dias levantarei o véu sobre este dois dias e meio magníficos - sabia que a minha anfitriã seria Belén Caccia. E obviamente a pergunta foi:

Quem é Belén Caccia?

Quem está a ler isto vai querer saber e a primeira via é o Google, por estes dias, como noutros foram as páginas amarelas. Normalmente inconsequente ou incompleta (se me pesquisarem, por exemplo, não há forma de aquele “advogado” se me descolar do corpo porque o Google não quer, mesmo que eu preferisse ser só escritor quando fosse pesquisado, ainda que um dia, em São Pedro do Corval, Alentejo, dito o maior centro oleiro do país, depois de ter dito ao rapaz que nos serviu a refeição de um restaurante local que era escritor - decidi nesse dia que me intitularia isso antes de qualquer outra coisa, que no fundo é o que sinto - e ele ter respondido “está bem”e ter voltado um minuto depois e perguntado: “Agora a sério, o que é que faz mesmo?”).

Quando pesquisei Belén Caccia os resultados do google foram avassaladores.

Aliás, basta consultar o curriculum da Belén  no seu pórpio sítio para ficar de queixo caído. E eu que pensava que ia ser recebido por uma anfitriã institucional simpática e cordata, percebo que quem me espera é um par das Artes e mais, é alguém com um vasto curriculum que merece atenção, que merece que me importe com ela: precisamente o que eu sinto não acontecer em meios que deviam ter sempre o propósito colectivo acima de qualquer propósito individual.

Tão vasto que decido suspender as leituras e as séries e os filmes durante pelo menos dois dias para absorver tudo o que me fosse possível de uma mulher com mais de trinta anos de carreira sempre ao mais alto nível e que é dramaturga, actriz e encenadora (de Shakespeare, entre muitos outros) e professora de teatro. Ou seja, esperava-me uma pessoa valorosa. Fiquei feliz e fiz uma vénia ao destino antes de a fazer à Belén. A carreira brilhante da Belén precede-a e está espelhada no seu portal profissional. Ainda que impressione, o que mais me impressionou foram outra coisas e delas quero dar testemunho.

A Belén tem um “problema”. É uma mulher deslumbrante, “ainda que” (o sublinhado não é inocente) esteja já perto dos cinquenta. Foi mãe aos 40 e disso fez gala, com grande coragem. Foi uma grávida belíssima. Tem um filho mágico (por mérito próprio) chamado Oliver. E ela própria disse em entrevistas que sabe tirar melhor partido do corpo na idade actual do que quando era mais nova.

Do vasto material que fui absorvendo durante esses dois dias fechado a tudo o resto, vi sempre talento, mesmo no papel mais difícil, que tem dominado muito os dias de Belén Caccia desde que veio do seu país natal, Argentina, onde fez praticamente toda a sua carreira, para Madrid, onde começou do zero (quanta coragem!): stand up comedian.

Ri-me muito, mas também fiquei em sentido. Na verdade fiquei deslumbrado.

Deixem-me acelerar o relato até ao ponto em que também fiquei envergonhado, embora não me espante no mundo de hoje e principalmente no mundo dos homens de hoje que não se sabem conter no seu pequeno poder digital e preferem o ridículo, que nos envergonha a todos:

No seu instagram a Belém tem uma secção chamada “bloqueaditos”. Quase todos homens, pois claro, como também  são quase todos homens os violadores e os abusadores. E estes não contribuem para uma pacificação para que seja possível voltar a dar colo às crianças e haja espaço para os homens bons. Porque o erotismo e a sexualidade são coisas que exigem lucidez, despoluição mental, classe, tento e respeito, não diabolização. Foi confrangedor ver como se comportam os homens só porque a mulher é bonita: não lhes importa se é valorosa. O ridículo em que tantas vezes caímos sem termos noção. Confrangedor e enriquecedor.

Não foi surpresa para mim que a maioria dos trogloditas achem que uma mulher bonita que se mostra deslumbrante não pode valer muito. E não valendo muito eles sintam que lhe têm acesso fácil só porque está ali no instagram e podem dizer a primeira coisa que lhes vem à cabeça. E ainda achem que ela lhes vai cair nos braços.

Repetem-se quase como se fossem invariáveis e invevitáveis  os clichês do “princesa”, “rainha”, “deusa”, os convites ostensivos para sair ou para serem recebidos por ela em casa. Às vezes são explícitos e deram-me a verdadeira medida do atraso masculino quie ainda persiste e que ainda é do tamanho de Júpiter.

A Belén enfrenta tudo com coragem e determinação. E classe e beleza. E inteligência. E humor. É um grande exemplo de força para qualquer pessoa, mais ainda do que para qualquer mulher. 

Veio de um continente e de um país, o seu, onde era sobejamente conhecida e figura pública para um meio e um país, o do nascimento da sua língua, quase sem rede. É o verdadeiro esplendor, mas pouco conhecida à escala espanhola e obviamente ainda menos portuguesa e europeia. E depois? precisamos que seja “conhecida” e “socialite” falada em todos os meios de comunicação para lhe darmos valor? Esse é o ponto. O combate de décadas pela dignidade e superioridade da mulher nunca esmoreceu, fosse ou não reconhecido pelos poderes e pela imprensa. 

E o que faz a maioria das pessoas (homens acima de tudo e infelizmente)? Pergunta quem é e que projecção tem. Responde de forma frívola e simplista logo a seguir. Muitas vezes com menoscabo. 

Pois eu, quando tive a mínima noção da pessoa que ia conhecer, fiz traduzir e ajudei o mais que pude a Cristina Vicente a rever a tradução da única peça que escrevi, “Ekaterina com as mulheres sobre tudo”, até hoje só representada parcialmente, levei-a pronta e dediquei-lha dizendo, como só direi a alguém que respeite muito: “Gostava que fosses a primeira pessoa em Espanha a encenar a minha peça”. 

Não farei muito mais para vos convencer que ao acompanhar a Belén Caccia estamos garantidamente a acompanhar uma grande e, seguramente, uma das maiores.

E que não importa que isso tenha apoio em currículos vazios e produzidos para o efeito. Não. É mais justo vê-la, acompanhá-la, rimo-nos com ela.

Dos projectos correntes, além de podcasts e entrevistas, e ela nunca pára, todos tive pena de não ter visto senão extractos, como MILF (“Mujer inteligente, libre y felíz”), que está a ser um grande sucesso sempre que tem uma representação, qualquer encenação do Shakespeare, mas também qualquer noite de Belén ao vivo como stand up comedian, sendo certo que, como ela própria diz e é inteligente e sábio, ainda não se mete em política espanhola, como fazia na Argentina.

É uma mulher que trabalha tanto e pega de frente todos os problemas e não há um minuto perdido em todos os que lhe dediquei e dedico. E é linda e isso não pode ser um problema.

Quem é Belén Caccia?

É simplesmente uma artista maior.

Maior ainda do que isso.

O que percebi é que, além da sorte (minha) de a ter como anfitriã, o espírito de combate da Belén é tal, a tarimba para a luta e os projectos múltiplos, que ela própria não pára um segundo para ouvir elogios e em princípio não acredita mesmo que é já uma das maiores do seu tempo. Não é na Argentina. É em todo lado.

E eu com isso. E nós com isso.

Os sábios são sempre assim: por mais brilhantes ou belos,

têm sempre o pescoço curvado em vénia.

Em princípio não nos deve interessar quem não se apresentar em vénia. Ela faz isso. E temo-la aqui, do outro lado do ecrã.

Aproveitemos a excelência enquanto aí está.

Obrigado, Belén!

#Belencaccia #madrid #argentina

#pedroguilhermemoreira

PS: não consegui descobrir quem creditar a belíssima composição fotográfica. Quando souber, prometo que o faço.