2020-10-20

Os maus ainda estão aqui e são tão bons como nós

Quando o fotografei em Agosto, em Birkenau eram quase quatro da tarde e ele olhava zangado para a principal câmara de gás de execução do campo, onde muitas vezes metiam mais de três mil pessoas. Estava sozinho a olhar para o fosso. A cara de zangado ficou na fotografia, que não foi retocada. Ele estava à sombra e ficou à sombra. Pensei que os pais que levam um menino desta idade a um lugar destes não lhe vão mentir, mesmo piedosamente. Fazem bem. Via-se bem que ele estava zangado com o que lhe tinham contado. Ao contrário do que tinham dito, para quem investigou este lugar antes de lá ir, não foi tudo escondido pelos agressores. A câmara oblonga, gigante, está lá. E sabemos que lá estão milhões de nós, também. O meu filho não estava tão zangado como este menino, mas deixou-se ficar tanto tempo perante os lugares que escolheu para prestar a homenagem dele, a homenagem íntima, que eu sei que o meu dever está feito e a memória transmitida. Aliás, foi ele que me pediu isto. Em vez de eu ir embebedar-me para Espanha, consegues levar-me à Polónia com o mesmo orçamento - que era curto - ? Consegui.

 Esta foi a última fotografia que tirei em Buchenwald. Não leiam mais, se vos parecer insuportável. Dei a volta ao contrário, comecei no deserto de cascalho do lugar onde outrora funcionavam os barracões-dormitórios-cantina-enfermaria-lazareto e já não há barracões mas conseguimos vê-los e senti-los todos, um a um, as sombras, o frio, a espera, o medo, desespero, a mancha humana. Há pedras que foram postas por mãos em homenagens e nós sentimos o movimento sofrido da mão a depô-la. Depois damos a volta pelas florestas da infâmia, pelo lugar dos moribundos mais moribundos e das crianças, passamos a exposição da casa grande e terminamos no crematório. Aquelas chaminés ao alto, mesmo sem fumo ou cheiro, sempre me quebraram. Regresso ao berço, fico frágil como se ainda não falasse ou andasse, estou de volta à mãe, ao útero. Devem ter sido assim, estas mortes. O regresso ao útero num pânico gelado. Entramos pelas bancadas de matadouro forradas a azulejo branco onde os corpos eram desmembrados para caberem nos fornos e, precisamente à entrada da sala dos fornos, uma fotografia em tamanho natural da pilha de corpos que os americanos encontraram quando foram libertar o campo, no mesmo lugar em que os corpos estavam, dá-nos um murro. Vários murros. Entre os visitantes, uns abrandam, outros param, a maioria chora, não há olhos secos. Embora fotografar seja importante, muito importante, por agora chega. Não vou sequer falar da descida à cave onde guardavam os cadáveres. Saímos do campo de concentração e durante muito tempo não conseguimos lá voltar. Até estes dias, lentamente, pedra a pedra. A ferida ainda está aberta, ficará sempre uma fenda que sangrará nos dias bons, para me lembrar. Encontro num mercado de livros em segunda mão de Santo Tirso o livro "16 meses em Buchenwald e Dora", do padre Birkin. Está a dois euros e meio e nem sequer hesito. Leio, voraz, porque estes lugares se tornam nossos como aqueles em que nascemos e crescemos, percebo que não é só mais um livro sobre o holocausto e eu já li milhares de páginas de todas as perspectivas, romances, ensaios, testemunhos, as 10 horas do Shoah como se fosse um filme de suspense, e ali está o que ainda me faz parar e apelar à demência, aliviem por favor esta parte de mim que se importa com tudo e todos que passaram. O padre Birkin pede desculpa por contar o que vai contar, mas tem de contar porque viu com os seus olhos. Tem toda a lógica, claro, a frio. Vejo os homens nus por castigo a correr na neve, são poucos mais do que conjuntos de ossos, e o padre Birkin diz. Os mais desesperados iam aos restos de cadáveres que ficavam nos fornos para matar a fome. Em algum ponto da vida choraremos outra vez. Porque somos Homens. #Buchenwald #pgm


  O Guilherme enfrentando os seus irmãos

 
 Entre milhares e milhares de objectos, ao fixar um, apenas um, sente-se a presença de alguém num instante comum e, por momentos, em pleno campo de concentração de Auschwitz, fazemos uma pausa e aliviamo-nos de buscas infinitas dentro de nós próprios. Mesmo que seja ilusão, corpo e alma precisam disto.

 Durante muito tempo esta foto foi apenas uma espécie de sala onde eu me isolava a pensar até onde nós, homens e mulheres, podemos ir. Ou o que conseguimos suportar. Este verão estive com os pés em lugares inenarráveis que precisava de visitar antes de eu próprio sucumbir. Muitos lugares. Este foi o único lugar onde me correram pela cara lágrimas que eram pesadas e secas e duras como pedra e ao mesmo tempo afiadas como punhais. Não chamo a isso chorar. Não sei o que lhe chamo, mas não é chorar. Não quebramos nem soluçamos. Ficamos até mais fortes e disponíveis para o combate. Mas o meu testemunho é que estar aqui, só estar aqui, foi avassalador, mais até do que em qualquer recanto de Auschwitz, onde a solenidade dos lugares já se confunde com a ansiedade das massas que vão espreitar o lugar onde batemos todos no fundo. E eu senti que o meu torso passou a ter mais peso do que o meu corpo inteiro antes sequer de saber ou ler onde estava. Não foi pelo pensamento, pois, mas pelo sofrimento que ainda exala do chão, daquelas ervas que aqui vemos em segundo plano, porque o lugar era este mesmo. A foto na foto foi tirada no dia de libertação de Buchenwald. Este era o barracão da quarentena, mas no fim foi apenas o lugar dos restos, onde não havia latrinas nem espaço para dormir - sequer morrer - em paz. Não distinto este do peso que os lugares onde os nossos compatriotas têm morrido queimados passarão a ter. Há muito tempo que não distinto tipos de amor nem tipos de horror. Porque sei que o que nos eleva ou nos enterra é igual em todos. Em todos os indivíduos. Em todos os lugares. Em todos os tempos. Sei.
#Buchenwald
#pgm


2 comentários:

mujer imagen disse...

Hay cosas que no necesitan traducción, solo piel, solo lágrima y solo sangre. Tu Blog quema. porque muestra lo indesmentible de la bajeza humana.

Gran trabajo.

M.I.

mujer imagen disse...

ver siempre ver no es lo mismo que vivir... estremece tu trabajo cada vez que lo veo.
Te doy las gracias.