2021-05-21

Fernando Rocha e o Princípio e o fim do mundo


Jim Carrey, Fernando Rocha, Lobo Antunes, Rodrigo Amarante, Eduardo Lourenço, George Steiner, Shakespeare, Cervantes, Saramago, Robin Williams, vida e morte, panteão, palhaços, gritaria em rede social, depressão, suicídio, grande e pequena arte, existência ou inexistência da literatura, limites do humor, Irene, milagre seria não ver no amor essa flor perene.
Tenho o privilégio de ser chamado a escolas e a comunidades de leitores para justificar o meu direito a abrir a boca na contemporaneidade, onde só uma ficção benevolente pode atribuir-nos mérito e demérito artístico. Na verdade, nenhum artista - está visto que eu vejo os escritores como artistas - ou julgador de artistas pode realmente saber se é importante ou não. Nem para o seu tempo, nem para o fim ou princípio dos tempos. Todos, claro, aspiram a isso.

 Não o Rocha.
O Rocha trabalha, é um homem bom que até estima e promove quem não o estima a ele, é um dos pioneiros da moda do stand up muito antes de ser moda e arrasa plateias desde o tempo em que os senhores importantes do humor eram os meninos. Na verdade, à beira do Rocha serão sempre uns meninos.

Confessso que andava há anos para escrever isto, mas não lhe encontrava o ângulo certo. Até perceber que o ângulo certo era homenagear e reconhecer este grande humorista que é o Fernando Rocha sem relativizar o que quer que fosse. Eu não sou humorista. Se fosse, gostava de ser o que ele é. Abri este post como abri o post do meu ídolo Jim Carrey. Isso diz tudo. Mas eu vou dizer um pouco mais:

Há muitos pontos de contacto entre o Jim Carrey e o Fernando Rocha, mas, no final, o nosso tuga está mais próximo de nós, mesmo que seja uma estrela mais planetária do que as pessoas pensam. Ambos foram, durante muitos anos, olhados de lado pelos seus pares, mas sempre foi para o lado em que dormiram melhor. Ambos, ainda hoje, são colados a uma imagem frívola e simplificada: a do Jim é a do cómico de filmes light, o que é perfeitamente disparatado e ignorante, a do Fernando Rocha é a do broeiro brejeiro do Porto que só lá chega à custa de muitas caralhadas, o que é perfeitamente disparatado e ignorante.

Eu até admito que alguém que não tenha alma nortenha tenha dificuldade em perceber a pureza dos tipos retratados pelo Fernando. Não tem é o direito de o julgar  por isso. O Fernando foi suporte e chão de muitos humoristas e muitos programas que não tinham onde assentar e se socorreram dele. O Fernando é seguro e sólido, mas, ao mesmo tempo, é genial e trabalhador. Observa, reflecte e adapta o seu material e é, juntamente com o Herman José e o Ricardo Araújo Pereira, um dos grandes do nosso tempo - tomara o Herman conseguir ter a elevação, a humildade e a cultura que o Fernando Rocha tem. Tem-nas, mas nunca antes de si mesmo. Talvez o Ricardo Araújo Pereira seja genuinamente um tipo simples como o Fernando. Não na sua persona pública, isso ele não consegue senão pela celebrada técnica da auto-depreciação e do apoucamento, mas pela forma como busca, estuda e trabalha o conhecimento sobre humor e o partilha connosco. E o faz, claro. O Herman nunca teve esta capacidade: é actual, observador e tem história, mas não necessariamente humilde, até porque acha que já não tem de o ser. Já o Fernando agrega tudo o que ambos têm de bom. Claro que, em alguns círculos, qualquer elogio ao Fernando será sempre um exagero. Mas o Fernando aguenta-se na excelência perante qualquer microfone e qualquer entrevistador ou anfitrião que se ache muito inteligente e sofisticado. O bom do Unas, que é outro puro mas não consegue esconder a sua quequice, caiu de quatro várias vezes quando o entrevistou para o Maluco Beleza. O que distingue o Fernando é que entra sempre, em qualquer lado, da mesma forma que entrou no primeiro minuto da sua carreira. E isso é raro e ímpar

As elites podem não perdoar ao electricista de Gondomar o facto de ele ser melhor do que elas, mas, na verdade, ele é melhor do que elas.

No final, o Fernando comove-me com o seu sotaque largo e a sua forma tripeira de ser. É tão nosso em cada detalhe, na postura, nos tempos, na forma como mexe a boca, nos silêncios. Espero que o Porto não tarde em prestar-lhe a homenagem devida, mesmo que o país se esteja nas tintas, hoje e, provavelmente, sempre. Não devia, mas está. Mas o Fernando Rocha não é menor porque nasceu num país pequeno.

Eu venho desse lugar bafiento que se chama intelectualidade e, se há pessoa que me inspira a ter sempre os pés assentes no chão e o espírito elevado, é o nosso Fernando Rocha. E como é bom, nestas mesas sofisticadas onde põem os escritores, ter a largueza de alma para se ser broeiro, brejeiro e tripeiro e eternizar muitos sorrisos em muitas caras. Mesmo não sendo humorista, mas bebendo dos maiores como o Fernando, que são feitos da mesma massa.

Esse maior é o Fernando Rocha, feito desta massa dos deuses que, no fim de contas, é ser do Porto. E ser o melhor possível do Porto e do Mundo.

Obrigado, Fernando.

@pedroguilhermemoreira 2018


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