Outro dia, em plena leitura cúmplice, ia escrever "como é bonita Ana de
Amsterdam".
E depois de Thomas Bernhard senti-me enganado.
Aqui por casa
todos se riam quando eu dizia que nunca tinha lido ninguém tão
inconveviente, bruto e insensível para a sensibilidade média das cidades
e do mundo como o Thomas, e no entanto algo de luminoso sai de cada linha, a textura
das frases é fresca e redentora, e não é exactamente o que vi dito dele
na imprensa, com os graus superlativos e comparativos do costume, como
se o tempo já tivesse acabado ("Herberto cortou o século XX em dois",
vejam bem, e nem sequer foi incluído nos quinze anos que adentrou o
XXI). Do Bernhard há passagens perfeitamente loucas, que foram apenas o
exercício desse direito, de ser louco. Ana tem um timbre quente, às
vezes fervente, mesmo quando diz que está triste. Se Thomas tivesse dito
mal do Porto como, por exemplo, de Salzburgo, eu ia sorrir e aproveitar
a oportunidade para evoluir. Mas Thomas está morto e esse diálogo
faz-se de outra forma - quando vivo, poucos entre os visados
aproveitaram a oportunidade para evoluir, pelo contrário, cerraram as
fileiras da mediocridade. Já Ana está viva, bem viva, e é desconcertante
e estimulante. É um teste de hipocrisia que se podia comprar nas
farmácias como os testes de gravidez. E uma verdadeira páscoa.
PG-M 2015
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