2012-11-05

pai, pater, padre, pare, papa, father, père, far, isä, otec, baba, tata, aita, athair

Não há uma só língua em que a palavra pai vague.
E todas têm um peso específico.
E nenhuma é leve.
Contudo, há pais que são desertos, silêncios, ausências. Meras deduções.
Ter de deduzir um pai a partir de uma qualquer operação lógica é, sempre foi, sempre será, um acto de violência gratuita sobre os filhos e sobre as mães que os amam com actos em consonância.

Mas, pai, talvez não tenha sentido usar contigo as mesmas palavras frias, os mesmos conceitos precisos, as lágrimas duras que fizeram de nós filhos de papel passado em vez de boleros.

E ainda assim eu sei que - sobre pais que nem um prosaico abraço concederam aos seus filhos pequeninos, nem cederam à tentação da beleza e da candura - nunca superarei o tom de manifesto. Mas se foi essa garantia de mediocridade que me impediu sempre de escrever o que era devido, hoje prosseguirei na lama:

Nós somos os filhos e as filhas nas costas.
É evidente que nos amas, pai.

Eu até sei porque te calas e não dizes nada

A verdade é que todos nós somos doentes incuráveis da mesma enfermidade.
Se o Cástor Perez, o pai de um rouxinol, essa Silvia, se senta num café com os velhos a fumar e jogar à sueca e tange a guitarra e a filha para a acompanhar  nos Veinte años, e cada passo da letra parece dirigido à dedução do nosso amor, e não a outro qualquer, nós, os filhos deduzidos, deixamos a todos, sem excepção, as tais lágrimas duras por tudo o que não podemos ter,
um pai cumprindo um simples gesto de amor,
que o teu por nós foi sempre sacado por arredondamento, nos teus silêncios ou nas tuas ausências, pai. Qué te importa que te ame/ si tu no me quieres ya?
El amor que ya pasado/ no se debe recordar./ Fui a ilusión de tu vida/ un día lejano ya/ Hoy represento el pasado, no me puedo conformar/ Com qué tristeza miramos un amor que se nos va

E es un pedazo del alma
que se arranca sin piedad

E pelo menos um desses filhos tem um pedaço de memória não incinerada em que o seu pai se acompanhava à guitarra cantando a Paloma, dicen que por las noches no más se iba en puro llorar, juran que el msimo cielo se extremecia al oir su llanto. Como sufria por ella, que hasta en su muerte la fue llamando, ai ai ai ai ai, cantaba, ai ai ai ai ai, gemia, de pasión mortal moria, que una paloma triste
nos és otra cosa mas que su alma

E só aí, depois de um vibrato, eu me rendia e os serões explodiam em palmas
e eu ia impodindo em mim - quanta injustiça que o mundo te visse transparente
e eu não
quanta injustiça que o mundo te visse de cara aberta
e eu nunca

E agora tudo nos faz chorar, pai, a nós, aos enfermos.
O pai de uma escritora que aparece em todas as fotografias que lhe foram tiradas numa certa tarde chuvosa de feira do livro de Lisboa. Ridículo, pai.
E no entanto faz-nos  chorar.
Todos os pais destes filhos enfermos se fundaram na própria ideia de egoísmo transformada em rigor.
Todos os pais destes filhos enfermos decidiram, num certo ponto da viagem, que há sentimentos que não merecem protecção, porque provindos da alta deformação da auto-piedade - mas todos os filhos enfermos, para sobreviverem, tiveram de gostar de si próprios.
Todos os pais destes filhos enfermos consideraram que o amor deve ser doseado.
Todos os pais destes filhos enfermos advogam a alta instância do inquebrantável "não" como condição na dinâmica evolutiva da espécie humana.

Todos os pais destes filhos enfermos guardam para eles palavras de chumbo amoladas em rebolo de betão.

Todos os pais destes filhos enfermos usam como máxima que a porta-da-rua-é-serventia-da-casa e
Todos os pais destes filhos enfermos os põem na rua;
Todos os pais destes filhos enfermos os traem
Todos os pais destes filhos enfermos terminam

e nenhum pai de um filho enfermo lhe foi doce,
bem chorasse nos filmes,
e nenhum pai de um filho enfermo deixou de dizer uma vez em todas as suas vidas
tu desculpa sabes que te amo sou teu pai
ou por ele ou por uma mãe
desesperada

e num fim óbvio de solidão auto-piedosa, esses pais, todos os pais destes filhos enfermos, se servem deles como seus cuidadores e ficam frágeis como fios de cabelo e denunciam, com propriedade, os abraços não implementados
pelos mesmos filhos enfermos.

alguns têm amantes, outros só a sombra
no olhar

Todos os pais destes filhos enfermos os vendem
Todos os pais destes filhos enfermos os perdem.

Mas todos os filhos enfermos se curaram para servir os que lhes sucederam
e dão outros erros, não os erros perfeitos dos que os antecederam,
dão erros cândidos
dão excessos, abraços,
beijos,
tens de parar com isso, pai

Com qué tristeza miramos un amor que se nos va

E es un pedazo del alma
que se arranca sin piedad



PG-M 2012



2012-02-11

Abrazos (variações em lá maior)

não lhe chames infelicidade
é antes uma incerteza nas caras
sempre melhor do que a forma como te desfazes na boca
em cubos de alcaçuz com óleo de anis
demasiado doces demasiado outros
para subitamente dizeres larga-me
tenho de ir
- porque é que as fotografias deles estão sempre bem
e as nossas não?
- serão felizes mesmo?
lá estás tu do pedestal
é terrível a forma como sobes todas as
noites
só porque te dirijo aquela frase sem advérbio de modo 
és bonita de qualquer maneira
e tu sobes protestando
que um cavalheiro diria especialmente
especialmente qualquercoisa
- e depois estão sempre em todos os lados do
mundo,
é estranho, marido, que só naqueles sábados
fechados em casa
por um estar doente ou não haver o que gastar
a pressentir o teu sorriso à vista do meu corpo nu
completo e imperfeito
eu chegue ao pico da forma?
que a minha plenitude seja a tua mão
de manhã?
a cama do teu vulto no prelúdio
do meu?
estão sempre a sorrir nas revistas
a dançar nas televisões
a brilhar nas rádios
gargalhadas sinfonias rímel base cheiro pele
e tu que és bonita de qualquer maneira
não lhe chames
infelicidade
é antes uma incerteza nas caras
sobe em vez de ao pedestal
comigo neste abraço
até roçarmos as nucas
no tecto
as costas dobradas sobre o caule do outro
macanudo ao largo com o lápis de despir
bajamos que tengo que ir a trabajar
sí, you también
después nos vemos?
dale.


PG-M 2012
exercício sobre desenho de Macanudo