2012-12-30

Senhor Burke e o sexo em Coimbra


Don't you feel like cry-cry-cry-cry-cry-cry-cry.

Dias (noites) instruídos por Solomon Burke.
Noites de desaforo com o senhor Burke no ouvido, ninguém por perto.
E que ninguém se chegue.
Sempre a cena recorrente. Sempre o mesmo problema das músicas de dois minutos e tal:
coitus interruptus.
Sempre o repeat.
repeat  repeat  repeat  repeat  repeat  repeat  repeat  repeat
Droga não, caraças. Como é que se sente o Solomon literal com droga?
Como é que eram as gravações, senhor Burke?
O estúdio tinha de ser mais ou menos como a cena recorrente:
nove metros quadrados, luz baixa e azulada, muito fumo, o senhor na mesa do canto, nunca pronto.
O senhor na mesa do canto, nunca pronto.
Fumava, Mr Burke?
O seu bigode curto como o meu, os seus lábios grossos como os meus, o cabelo em carapinha como o meu dos melhores dias. Tínhamos todos vinte anos, mais ou menos coisa.
Eu a ficar preto, como o senhor, e os filhos da puta dos skins a cercarem-me entre a camões e a dias da silva e eu judas:
"Eu não sou preto, sou só moreno", raio de judas da dias da silva,
a brandir fotografias de nerd pálido e a triste condição de caucasiano quase a implorar, vão perguntar ao Torga, que vive ali em baixo e vem no trólei três comigo, se eu não sou branco.
As miúdas a milhas, senhor Burke, e nós com o tempo, e nós com o espaço, todo do mundo e sem saber o que fazer.
Convenhamos:
na altura o senhor andava numa cassete de crómio cuja fita (também preta, linda) tinha de ser reengolida a voltas de caneta e começou a ficar quebradiça precisamente no "Just out of reach", e, que raio, o "Just out of reach" não é grande amostra sua, pois não?
Ainda não havia a moda dos "headset", senhor Burke, mas espere lá, vamos voltar atrás:
o senhor, acha, senhor Burke, que eu tinha multiplicado o sexo se o tivesse replicado pelas monumentais, enquanto subia no encalço das miúdas de psicologia?
E que, wasted, no meio dos betos do psd que fabricaram a vitória para a associação nos late eighties, teria alcançado o nirvana no bar da OAF, em vez de um café sem açúcar enfiado pela goela abaixo e bute? Bute para casa, que a noite acabou para ti.

Eram giras, aquelas seis de psicologia.
Ou eram três?
Onde estava você, senhor Burke?

"Tonight's the night", o Al Berto a ser vaiado no Dom Dinis e a mandá-los a todos para o caralho, descíamos com elas para o "Briosa", o bar do Bingo (lembra-se senhor Burke?), e era de língua até às quatro, não era preciso embrulhar miúdas podres na relva do parque, comer e ser comido pelas próprias finalistas que nos tinham galado um curso inteiro ao som do "Marilu", dos Ena Pá 2000, nós a querer e elas a deixar, mas nunca chegava, nunca havia tempo, ia-se-lhes nos arbustos e chegava sempre, cedo e a desoras, o Quim Barreiros.
Porque o Quim Barreiros, senhor Burke, esse Quim Barreiros foi sempre o grande erro de casting dos oitenta em Coimbra: mas que Mariazinha no seu devido juízo se rendia a um imberbe de direito, senhor Burke?

Agora somos velhos e barrigudos, senhor Burke.
Temos no regaço grandes mulheres e o melhor, pensamos a olhar o johnny distraído(s), é estarmos mais quietos do que mexidos para não dar cabo do aconchego, que para a maioria de nós nos torna, não corajosos maridos, mas pobre e conformados espécimens já devidamente identificados na tabela de correspondências faceboolkianas como os predadores depredados, que é para não dizer pior,
senhor Burke
(por esta hora o tamanho pouco importa, não é, senhor Burke?).
E, ainda que sejamos uns grandessíssimos e teóricos fodilhões, senhor Burke,

Don't you feel like cry-cry-cry-cry-cry-cry-cry?

PG-M 2012

2012-12-09

Monólogo dramatizado de uma velha nua ou a história banal de Ekaterina Savélievna Mostovoi

 Mas depois de toda a nudez sou só a velha a chorar a morte do velho Mikhaíl Sidorovitch Vlássov.
Estou nua.
Estou finalmente nua.
Estou finalmente - literalmente - nua.
Mas também estava nua quando trazia o corpo dos dezassete sob três camadas de roupa e tu me dizias que começava a ficar gorda e que tinha de tirar o bebé ou te oferecias ao camarada Joseph Stalin e me oferecias a mim à desonra.
Serei soldado, Ekaterina Savélievna Mostovoi, serei soldado e nunca voltarei para ti.
Também estava nua quando me recusei e tu, Mikhaíl Sidorovitch Vlássov, partiste para a frente, e nunca me despi para outro até entrares pela porta e arrastares os meus pais para o celeiro e cumprires sobre mim a instrução 0428 vestido com um belo uniforme alemão, tu a explicares ao meu ouvido enquanto me rasgavas por dentro e por fora, "sou o primeiro para te dizer que faço isto por ti", seres o primeiro e fazer isto por mim foi violares-me antes do resto do teu comando de ataque porque eu teria a bênção de ser deixada viva para contar a história que o nosso estimado líder queria que fosse contada. "Fackelmännerbefehl cumprida", informou zelosamente o teu comandante enquanto retirava o membro do meu ventre ensanguentado, "dirás que foste violada por um regimento alemão das Waffen-SS, espalharás a palavra pelas aldeias vizinhas;". Esperava o cabrão que eu fosse dizer à minha própria mãe que os partisanos do teu comando de ataque eram animais alemães quando cada um desses nojentos gemia e me insultava em russo e o garboso comandante lembrava, da porta, que eu devia ser deixada viva?
Também estava nua quando o meu pai me explicou de forma veemente e sem discussão que tu,  Mikhaíl Sidorovitch Vlássov, eras um herói condecorado por bravos actos, aliás como o constante da Fackelmännerbefehl, que tu orgulhosamente exibias - aquele sorriso e aquela tentativa de abraço despiram-me mais três vezes - : Principalmente para aqueles que exterminam povoados atrás das linhas alemãs (em uniforme do oponente), deve sugerir-se condecorações, ora muito bem, pai, Mikhaíl Sidorovitch Vlássov violou-me com o fito exclusivo de que eu perdesse o bebé, teu neto, que ele não queria, ele e um comando de partisanos loucos, e o pai quer obrigar a sua filha a casar com a besta?
E nua outra vez o pai diz
Ele salvou-te, Ekaterina Savélievna Mostovoi, ele salvou-te a vida. Ganha vergonha nessa cara.
Também estava nua quando finalmente o único filho que não mataste nos nasceu sem braços e tu comentaste que razão tinhas tu por desconfiar que eu só paria monstros.
E nua fiquei de cada vez que chegavas a casa mais cedo e, vendo-me dar banho ao menino, perguntavas por que raio não estava o jantar pronto e que as tuas necessidades estavam acima das do monstrinho.
E era nua que me via quando à tua frente mimava o filho que tu nunca reconheceste.
E ainda nua quando regressava a casa enlevada pelas vitórias do menino e tu tinhas sempre um comentário negro.
E mais do que nua, rasgada, outra vez rasgada como no tempo da violação, quando mo tiraste e o partido o entregou aos meus pais, aos meus pais, Mikhaíl Sidorovitch Vlássov, a minha máxima humilhação e tu sabias.
Devia ter morrido, mas limitei-me a envelhecer.
A envelhecer.
A envelhecer.
Até este corpo de pregas aparecer e eu já não ser a menina de dezassete que ouvia, nua,
Ekaterina Savélievna Mostovoi, és sublime como
e nunca terminavas as frases porque não sabias, e eu, nua, imaginava as palavras que nunca lá puseste.
E mesmo quando o nosso filho homem nos visitava e tu pedias para não estar em casa quando ele viesse, esse monstro nem um abraço pode dar, e rias-te, os dentes eram sombras ou punhais, não importa, e eu nua.
Até hoje.
Quando o filho chegou hoje, de surpresa, e se sentou numa posição estranha sobre a mesa da sala de jantar, virado para ti como nunca fizera antes, porque nunca permitias que ele sequer te visse, quando o filho chegou hoje e me pediu que colocasse o concerto para violino de Tchaikovsky no fonógrafo
Mas tem de ser o do Vadim Brodsky, mãe.
Não, nesse disco ninguém toca, retorquiste tu, e eu comovi-me por consentires ao teu filho a existência e o teu filho saber na sua alma que tinha de ser aquele disco.
Na verdade, já não podias lutar por ti, mal te movias, e certamente não o fazias sem ajuda.
Sob o teu ódio móvel e o teu corpo imóvel, fui eu que coloquei a agulha sobre o disco, como se a carne. Não é só disparar. Quem não tem braços, aprende a fazer tudo com os pés. Mas nem sempre disparar, que exige um equilíbrio especial. O filho, ágil de pés e pernas, apontou-te a arma e tu, por não  saberes disso nem o tentares imaginar, respondeste com uma gargalhada. Estavas perdido. Estava achado o teu ridículo. O tiro foi certeiro e tu não te mexeste. A cabeça pendeu, sim, o sangue jorrou, mas tu não te mexeste. O filho saiu sem dizer palavra, os olhos a dizer estás livre, volto breve.
Para todos os efeitos, fomos assaltados com violência.
Eu violada.
Eu nua, velha, finalmente nua sobre ti e um sofrimento largo que não se separa do corpo.
As pregas cheias do teu sangue. O teu sangue por fora.
E eu nua.
Finalmente nua.
Estou finalmente - literalmente - nua.
A dor alaga, o espelho devolve o meu corpo abjecto, as pregas em sangue vivo, o teu sangue vivo, tu morto. Por dentro nada do passado é restaurado, nem eu nem a ilusão de ter dezassete anos e gozar sobre ti em movimentos circulares, a gozar tal como agora, tu sempre disseste que quando eu fazia assim era eu que te fodia e não tu a mim, mas pelos tempos apenas me mandavas para o quarto abrir as pernas e eu nua não.
Punha um sorriso sem lágrimas sobre o corpo.
Não entendo esta dor, este luto sobre ti, dizem que passa, que o corpo se habitua ao que a alma merece.
Ao que eu mereço.
Mas depois de toda a nudez sou só a velha a chorar a morte do velho.
A tua, meu filho da puta.
As lâminas sobre o pulso não são lâminas sobre o pulso.
O filho não compreenderá, quando voltar, se voltar.
Estou nua.
Estou finalmente nua.
Estou finalmente - literalmente - nua.

PG-M 2012
fonte da foto

2012-11-05

pai, pater, padre, pare, papa, father, père, far, isä, otec, baba, tata, aita, athair

Não há uma só língua em que a palavra pai vague.
E todas têm um peso específico.
E nenhuma é leve.
Contudo, há pais que são desertos, silêncios, ausências. Meras deduções.
Ter de deduzir um pai a partir de uma qualquer operação lógica é, sempre foi, sempre será, um acto de violência gratuita sobre os filhos e sobre as mães que os amam com actos em consonância.

Mas, pai, talvez não tenha sentido usar contigo as mesmas palavras frias, os mesmos conceitos precisos, as lágrimas duras que fizeram de nós filhos de papel passado em vez de boleros.

E ainda assim eu sei que - sobre pais que nem um prosaico abraço concederam aos seus filhos pequeninos, nem cederam à tentação da beleza e da candura - nunca superarei o tom de manifesto. Mas se foi essa garantia de mediocridade que me impediu sempre de escrever o que era devido, hoje prosseguirei na lama:

Nós somos os filhos e as filhas nas costas.
É evidente que nos amas, pai.

Eu até sei porque te calas e não dizes nada

A verdade é que todos nós somos doentes incuráveis da mesma enfermidade.
Se o Cástor Perez, o pai de um rouxinol, essa Silvia, se senta num café com os velhos a fumar e jogar à sueca e tange a guitarra e a filha para a acompanhar  nos Veinte años, e cada passo da letra parece dirigido à dedução do nosso amor, e não a outro qualquer, nós, os filhos deduzidos, deixamos a todos, sem excepção, as tais lágrimas duras por tudo o que não podemos ter,
um pai cumprindo um simples gesto de amor,
que o teu por nós foi sempre sacado por arredondamento, nos teus silêncios ou nas tuas ausências, pai. Qué te importa que te ame/ si tu no me quieres ya?
El amor que ya pasado/ no se debe recordar./ Fui a ilusión de tu vida/ un día lejano ya/ Hoy represento el pasado, no me puedo conformar/ Com qué tristeza miramos un amor que se nos va

E es un pedazo del alma
que se arranca sin piedad

E pelo menos um desses filhos tem um pedaço de memória não incinerada em que o seu pai se acompanhava à guitarra cantando a Paloma, dicen que por las noches no más se iba en puro llorar, juran que el msimo cielo se extremecia al oir su llanto. Como sufria por ella, que hasta en su muerte la fue llamando, ai ai ai ai ai, cantaba, ai ai ai ai ai, gemia, de pasión mortal moria, que una paloma triste
nos és otra cosa mas que su alma

E só aí, depois de um vibrato, eu me rendia e os serões explodiam em palmas
e eu ia impodindo em mim - quanta injustiça que o mundo te visse transparente
e eu não
quanta injustiça que o mundo te visse de cara aberta
e eu nunca

E agora tudo nos faz chorar, pai, a nós, aos enfermos.
O pai de uma escritora que aparece em todas as fotografias que lhe foram tiradas numa certa tarde chuvosa de feira do livro de Lisboa. Ridículo, pai.
E no entanto faz-nos  chorar.
Todos os pais destes filhos enfermos se fundaram na própria ideia de egoísmo transformada em rigor.
Todos os pais destes filhos enfermos decidiram, num certo ponto da viagem, que há sentimentos que não merecem protecção, porque provindos da alta deformação da auto-piedade - mas todos os filhos enfermos, para sobreviverem, tiveram de gostar de si próprios.
Todos os pais destes filhos enfermos consideraram que o amor deve ser doseado.
Todos os pais destes filhos enfermos advogam a alta instância do inquebrantável "não" como condição na dinâmica evolutiva da espécie humana.

Todos os pais destes filhos enfermos guardam para eles palavras de chumbo amoladas em rebolo de betão.

Todos os pais destes filhos enfermos usam como máxima que a porta-da-rua-é-serventia-da-casa e
Todos os pais destes filhos enfermos os põem na rua;
Todos os pais destes filhos enfermos os traem
Todos os pais destes filhos enfermos terminam

e nenhum pai de um filho enfermo lhe foi doce,
bem chorasse nos filmes,
e nenhum pai de um filho enfermo deixou de dizer uma vez em todas as suas vidas
tu desculpa sabes que te amo sou teu pai
ou por ele ou por uma mãe
desesperada

e num fim óbvio de solidão auto-piedosa, esses pais, todos os pais destes filhos enfermos, se servem deles como seus cuidadores e ficam frágeis como fios de cabelo e denunciam, com propriedade, os abraços não implementados
pelos mesmos filhos enfermos.

alguns têm amantes, outros só a sombra
no olhar

Todos os pais destes filhos enfermos os vendem
Todos os pais destes filhos enfermos os perdem.

Mas todos os filhos enfermos se curaram para servir os que lhes sucederam
e dão outros erros, não os erros perfeitos dos que os antecederam,
dão erros cândidos
dão excessos, abraços,
beijos,
tens de parar com isso, pai

Com qué tristeza miramos un amor que se nos va

E es un pedazo del alma
que se arranca sin piedad



PG-M 2012



2012-09-25

todas as mulheres ao fim da tarde


cada mulher, agora, ao fim da tarde,
a aparecer aos galeões como outra
musa
com os filhos sugeridos nos rochedos
e o sangue nas fissuras
onde os homens colherão
nenhum poema
só poetas com os dedos nas bainhas
e a ameaça permanente do abismo
caiam vivos como mortos
nessas falhas vesperais
dão gargantas maternais
ao infinito

porque há sempre uma mulher ao fim da tarde

é a mãe que te limpa sangue e lama
água quente, tristeza, desespero
é a mão que te abafa cada olhar
muito antes de as pálpebras fecharem

e a morte abrir

PG-M 2012
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2012-07-16

Dias 8 e 9 - Olimpo e planeta de volta


Dia 8 - Ao oitavo dia o filho fala do olimpo, o deus todo perante a metade dos pais. 


Dia 9 -  (hoje, finalmente, pai e filho): Ao reencontro já sabíamos que, mais importante do que o próprio abraço, é a perspectiva de nos podermos abraçar a cada véspera. 


PG-M 2012
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2012-07-12

Dia 7 - De dentro (que é ao lado)



Dia 7: Ao sétimo dia a clareza de uma das inconciliáveis certezas da vida: o que de nós saiu nunca esfria fisicamente no lugar de onde veio. Nós. Podemos convencer-nos de que os filhos se afastam -e devem afastar - desde o nascimento, mas o nosso metabolismo terá sempre essa carência no espaço: a de que voltem para dentro.


PG-M 2012
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Dia 4, Dia 5, Dia 6 - Cheiro, memória, almas que dobram


Dia 4 - Ao quarto dia vai-se em busca do cheiro que passava por nós todos os dias e que agora só resta nas arestas de certos objectos e numa camisola vermelha. Na presença, o cheiro passa. Na distância, o cheiro entra. Na presença mal se dá por ele. Na distância fere.

Dia 5 - Ao quinto dia tem-se noção de uma profunda inimizade com a saudade. De manhã discute-se com a memória. À tarde despreza-se a tipa. À noite ignora-se. Ou não se dorme. Amanhã é outro dia. Com memória:).

Dia 6 - Ao sexto dia o corpo continua sem se conformar. A alma, contudo, dobra.

PG-M 2012

2012-07-08

Dia 3 - Descrescimento



Quando um filho fica longe, o corpo mirra para o lugar que era antes de ele aparecer.
Não é importante, só áspero, que isso aconteça já sem a mesma possibilidade, já sem a mesma juventude.
Importante é perceber que a nossa altura é inversamente proporcional à distância dele. 
E achar isso bom.


PG-M 2012

2012-06-25

A manhã do mundo dele


O pai aprendera a conquistar a calma e a serenidade apesar dos prazos da advocacia, mas quando viu o primeiro livro publicado uma especial azáfama contendeu com a brisa que dirigia os ramos do imponente diospireiro, o diospireiro que inaugura o pomar caseiro onde, entre a laranjeira, a tangerineira, a macieira e o limoeiro, o pai quis que se plantasse uma pequena magnólia. Porque o pai é o pai. O filho ouviu o pai na rádio, viu o pai e o livro do pai, "A manhã do mundo", em dezenas de jornais e revistas e até nas televisões, mas nada mudou, nem sequer lhe pareceu uma pessoa especial, o pai continuava a ser o pai, um homem grande e forte a quem se podia atirar vezes sem conta sem um ai, o colo largo e insistente, o equilíbrio dos beijos chatos, ora os dele ao pai, ora os do pai a ele, os indispensáveis beijos chatos. O livro, numa primeira fase, andava em todas as livrarias, ele ainda o tentou ler porque quis, um dia chegou e disse a si próprio "vou ler um livro" e pegou no do pai como podia ter pegado noutro qualquer. E leu-o. Leu-o quase todo. O pai nunca lhe perguntou o que achava. Ele nunca achou que lho devia. Passaram-se assim os meses e as coisas voltaram à normalidade sem que, entre ele e o pai, alguma coisa tivesse mudado. O diospireiro ainda balouçava, a magnólia sobrevivia no centro do pomar, e assim os frutos. O pai dizia muitas vezes, na brincadeira, que era graças ao desprezo caseiro que se mantinha focado. O pai continuou a engordar. O filho a crescer. A mãe a ficar mais bonita. No princípio do ano lectivo ele tinha dito aos pais, sem detalhar o quê e o porquê, que tinha tirado uma nota alta na disciplina artística lá da escola. Era a primeira vez. Os pais perguntaram "ai sim?" e o jantar prosseguiu. No fim do primeiro trimestre ele trouxe uma nota mais alta do que o habitual. Os pais pensaram que devia ser mesmo uma obra singular, mas tornaram à vida, habituados ao filho que, como é costume em casas regulares, se ama para lá de todas as forças e no qual se encontra sempre o génio. Os pais sabiam que isso era o equívoco normal do amor. E em conversas evitariam falar tanto dos dotes, como dos defeitos do rapaz, até porque longe viria o tempo em que o seu menino pudesse ser comparado aos monstros sem pescoço de Tenesse Williams *, os putos do Gooper, como ele pai e a mãe não podiam ser comparados aos próprios Gooper e Mae, até porque o seu menino estava crescido, tinha pescoço, era bonito. Mas eis que ele traz a obra para casa no final do ano lectivo. A obra era a capa decorada da própria disciplina. Mostrou-a ao pai, que, perdido noutros afazeres, disse que estava bem sem ver. Por isso se colocou o miúdo entre o pai e o afazer com um sorriso cúmplice e o pai reparou de raspão no tema. É sobre o 11 de Setembro, que engraçado, disse o pai. Mas continuou a não ver. A vida seguiu e a capa ficou em cima do aparador. Um dia à noite o pai olhou com outras armas para a obra e resplandeceu. Viu naquela colagem - logo o pai, que nunca gostara de colagens - uma espécie de verso daquele dilacerante final d"O Túmulo dos Pirilampos", de Isao Takahata, em que se vê os pedaços de solidão da menina, o pai viu a vida que o filho vivia apesar dele, o pai viu que estava todo dentro dela. Aquela colagem não era uma lembrança do 11 de Setembro. Aquela era a lembrança que o filho tinha do pai e que brilhava tanto que não se continha em casa, onde a vida era temporal e os ritmos os de sempre. Mas o pai não quis mostrar a "obra" por causa dessa comoção. O pai quis mostrar a obra por ser mesmo boa e por poder, como não pode - ou não quer - mostrar a um meio de que desconfia a sua maior obra, o próprio filho, agora maior do que a mãe. O pai queria mostrar a fotografia que lhe tirou este fim-de-semana e em que reparou que ele está mesmo um homem. Um homem bonito. Um homem que lhe vai tomar o lugar como os pais bons sonham que os filhos bons tomam - não a mesma profissão, não a mesma arte, mas as coisas boas só dele. O momento em que um pai olha para um filho e vê, não a cria, não a entidade frágil que tem de proteger a todo o custo, mas o homem que fez com os braços. Com apoio das mãos. Com choro, com raiva. É um rapaz bonito. A alma parece descansar, o corpo serena, não é bem já não precisar de cuidar de si: o pai percebe apenas que a velhice pode avançar com justeza, pode fazer o seu percurso, porque aí está a obra. A manhã do mundo dele.

* da peça "Gata em telhado de zinco quente"

PG-M 2012
foto do autor

2012-06-05

Campeões do mundo


Já me calaram a boca quando, a olhar
para o diploma cravado na parede branca do escritório
devoluto,
senti vergonha
pela primeira vez.

Não calarão mais.

Já me sugaram o sorriso quando, a olhar
para o prato vazio do meu filho na mesa vermelha da cozinha,
senti fome
pela primeira vez.

Não sugarão mais.

Já me prenderam os braços quando, a olhar
para o futuro negro como o mar minimalista do Billy
Bud do Melville
me julguei louco
pela primeira vez.

Não prenderão mais.

Já me forçaram o choro quando, a ouvir
a primavera do Einaudi
não enlevei
pela primeira vez.

Não forçarão mais.

Já me secaram as lágrimas na fila do emprego quando,
a explicar a minha merda de vida à luz do amor
me odiei
pela primeira vez.

Não secarão mais.

Já me enganaram quando, nas audiências políticas
às selecções nacionais me pediram para esquecer
tudo e pendurar bandeiras
no corpo que mirra
e na casa que foge.

Não enganarão mais.

Já me prenderam numa massa de gente em desespero
com a corda demagoga
"eu demagogo, quem, demagogos?"
e me culparam de tudo
de perderem a margem de conforto
o colégio o luxo e a potência
que é cada vez mais difícil
passar por mim
e até por cima
de mim

nós que fuçamos sabemos do que se gasta e desgasta
os parasitas das portas dos cafés votarão sempre
nos parasitas das portas dos palácios

Mas doravante venha
a transparência líquida
para toldar o punho
que nos venda
e diz que o amor
é uma lenda
e a liberdade
mania
e a coragem
a mais pérfida loucura
em pó
e aos dedos que nos culpam
de si próprios
forçaremos a vitória
e contaremos na rua
milhões de vozes
ou um silêncio
fecundo
e final.mente. seremos


campeões do mundo

PG-M 2012
fonte da foto

2012-05-17

Vou buscar pão


Eu limpava o pó a uma certeza com um trapo
excisado de glorioso pano
da louça
e veio à estrema
o álbum da prateleira
do meio
que eu abri para aliviar
o mesmo dia de maio
e então vi-o, ao filho que  não via
há precisamente quatro
horas
de beijo a fugir e olhar dentro
do celular
está maior do que a mãe
o corpo aos primeiros meses
a adentrar, primordial,
e tive a saudade que fez do peito
ónus
e enquanto sacudia na ombreira
o pano vi no relógio
ele a voltar
quando voltou
abracei um proto-adolescente com os braços inertes e a mochila nas costas
olá filho, obrigado
pelos dias desiguais
pelo amor sem condição
e a cara dele torcida,
a libertar-se dos beijos,
por me pores no lugar certo
da nossa casa pequena,
que nojo pai,
larga-me,
vi há pouco aquela foto em que a mãe está a ler uma revista no carro
e tu ao vidro com essa cara de malandro
depois vi mais dez, vinte, e sempre tu
como metrónomo
como piano
como sal
e tentando libertar-se o filho perguntou,
percebendo as lágrimas mas velando as emoções,
o que tens tu, pai?
o existencialismo
te pegou?
eu respondi não, rapaz,
foi a celeste do facebook
vou buscar pão
e à noite os Creedence nos bares
da Cândido
dos Reis.


PG-M 2012

2012-04-17

Tetrapétalo

Estou inserido num mecanismo que me faz pensar ciclicamente com o coração
É um sistema de inércia
como qualquer outro sistema de inércia em movimento de translação uniforme
relativamente a mim, a luz
é invariável e não depende da velocidade da fonte
a luz não depende
do observador que a mede
a existência de um céu é contraditória
com o conjunto de factos e com as leis da mecânica
bebo por uma palha
escrevo por uma palha
amo por uma palha
toda a carne está cravada no metal
e o que te comanda são duas bolas castanhas
raiadas de amêndoa
que não por serem olhos te sorriem
é o navio de espelhos do Cesariny
que não navega, cavalga
é o pão para a fome dos filhos do Pacheco
é a bicla do Herberto e o poeta a dar à pata
para um verão interior
estou inserido num mecanismo
que faz do terço de mim
tudo em ti


PG-M 2012
fonte da foto

2012-02-11

Abrazos (variações em lá maior)

não lhe chames infelicidade
é antes uma incerteza nas caras
sempre melhor do que a forma como te desfazes na boca
em cubos de alcaçuz com óleo de anis
demasiado doces demasiado outros
para subitamente dizeres larga-me
tenho de ir
- porque é que as fotografias deles estão sempre bem
e as nossas não?
- serão felizes mesmo?
lá estás tu do pedestal
é terrível a forma como sobes todas as
noites
só porque te dirijo aquela frase sem advérbio de modo 
és bonita de qualquer maneira
e tu sobes protestando
que um cavalheiro diria especialmente
especialmente qualquercoisa
- e depois estão sempre em todos os lados do
mundo,
é estranho, marido, que só naqueles sábados
fechados em casa
por um estar doente ou não haver o que gastar
a pressentir o teu sorriso à vista do meu corpo nu
completo e imperfeito
eu chegue ao pico da forma?
que a minha plenitude seja a tua mão
de manhã?
a cama do teu vulto no prelúdio
do meu?
estão sempre a sorrir nas revistas
a dançar nas televisões
a brilhar nas rádios
gargalhadas sinfonias rímel base cheiro pele
e tu que és bonita de qualquer maneira
não lhe chames
infelicidade
é antes uma incerteza nas caras
sobe em vez de ao pedestal
comigo neste abraço
até roçarmos as nucas
no tecto
as costas dobradas sobre o caule do outro
macanudo ao largo com o lápis de despir
bajamos que tengo que ir a trabajar
sí, you también
después nos vemos?
dale.


PG-M 2012
exercício sobre desenho de Macanudo