te echo de menos
a expressão espanhola para saudade também é bonita.
fiz-te de menos
ontem lembrei-me de como foste dos primeiros a dar-nos uma nova noção de tempo
era um funeral, e havia alegria no ar, e não era só a alegria do reencontro com os homens e mulheres mais importantes da nossa vida, os professores, nem aquele belíssimo pânico de os ver procurar com a memória que alunos éramos
estão tão mais bonitos, os professores.
quando eram os nossos professores, eram velhos por natureza.
agora somos nós os velhos e eles da nossa idade.
bonitos e cuidados, sábios, serenos, sem poder
só conhecimento
a alegria eras tu e o comprimento da tua obra
comentei com o lima que nunca tinha visto um funeral tão feliz
estavas a descer à terra e havia gargalhadas
o coveiro a devolver-te à matéria original, que é a mesma que resulta de ti, e abraços entre campas
eu de pé a tomar café e a falar de como a linguagem e o silêncio e o ouvido e a atenção revolucionam o próprio tempo
tu és um dos grandes culpados de, afinal, isto não ser só isto e de
morrer não ser bem morrer
depois ouvi falar de ti, do teu apagamento físico, por quem em nosso nome cuidou de ti e te mimou até ao último minuto
um apagamento físico irrelevante para o mundo, ou só relevante na medida do teu sofrimento: nada para lá do que te doeu importa
não havia choro ou abandono ou pena, as pessoas que contavam o drama da tua doença sorriam, porque, a par de cada perda, havia sempre a tua resiliência, a tua teimosia
talvez seja piedade dizer para não te ir ver, porque estavas pele e osso,
estar deitado dá cabo de nós todos, faz-nos desaparecer fisicamente,
faz-nos assumir a postura da defesa perante a impossibilidade de sermos o que nos ergueu e nos fez evoluir
afinal não parecia ser isso o importante para ti
o alzheimer levou-te as forças, o conhecimento - e é injusto
ter-te cabido uma doença do conhecimento
logo a ti
o alzheimer levou-te tudo, mas não a presença de espírito
nunca desapareceste
foste teimoso até ao fim
ressurgiste muitas vezes
estavas deitado, estavas presente,
não o corpo, já não o corpo,
tu
como agora, afinal
já não o corpo, tu
já não conseguias comer sólidos, mas comias bem
o que podias comer
comeste sempre bem
e continuavas a combater pela tua fleuma, pelos teus hábitos,
ainda lutavas pelos artigos dos jornais que querias ler, pedias a coluna do rangel e, quando ta davam, sorrias, sentavas-te, punha-la perante ti e não lias
nestes útlimos tempos, já não lias
só replicavas o prazer de ler
o prazer de pensar
replicavas a busca do conhecimento
o arrebatamento do passo em frente
o trabalho
a graça disse que, mesmo agora, no fim, quando regressamos à aparência
da criança que nunca deixámos de ser,
cada vez que ela aparecia ias a despacho
a graça aparecia à porta e tu
puxavas de uma almofada e escrevias com o dedo
assine aqui, senhor padre,
e ali,
e ali,
e tu assinavas
todos pensamos na própria morte perante a morte dos outros
na verdade, não pensei muito na minha, ontem.
pensei mais na eternidade
o teu quarto ficou cheio de livros e papéis
e quem te amou sabe que está aí
a eternidade
não apenas a tua, toda a eternidade
aí e no que levamos de ti connosco
e passaremos aos nossos
e os nossos passarão aos seus
e os deles aos deles
intimamente
infinitamente
dormiste sempre no nosso colégio, morreste onde dormiste
deitado na almofada
já não o corpo, tu
como agora, afinal
já não o corpo, tu
PG-M 2016
foto propriedade do Colégio dos Carvalhos
a expressão espanhola para saudade também é bonita.
fiz-te de menos
ontem lembrei-me de como foste dos primeiros a dar-nos uma nova noção de tempo
era um funeral, e havia alegria no ar, e não era só a alegria do reencontro com os homens e mulheres mais importantes da nossa vida, os professores, nem aquele belíssimo pânico de os ver procurar com a memória que alunos éramos
estão tão mais bonitos, os professores.
quando eram os nossos professores, eram velhos por natureza.
agora somos nós os velhos e eles da nossa idade.
bonitos e cuidados, sábios, serenos, sem poder
só conhecimento
a alegria eras tu e o comprimento da tua obra
comentei com o lima que nunca tinha visto um funeral tão feliz
estavas a descer à terra e havia gargalhadas
o coveiro a devolver-te à matéria original, que é a mesma que resulta de ti, e abraços entre campas
eu de pé a tomar café e a falar de como a linguagem e o silêncio e o ouvido e a atenção revolucionam o próprio tempo
tu és um dos grandes culpados de, afinal, isto não ser só isto e de
morrer não ser bem morrer
depois ouvi falar de ti, do teu apagamento físico, por quem em nosso nome cuidou de ti e te mimou até ao último minuto
um apagamento físico irrelevante para o mundo, ou só relevante na medida do teu sofrimento: nada para lá do que te doeu importa
não havia choro ou abandono ou pena, as pessoas que contavam o drama da tua doença sorriam, porque, a par de cada perda, havia sempre a tua resiliência, a tua teimosia
talvez seja piedade dizer para não te ir ver, porque estavas pele e osso,
estar deitado dá cabo de nós todos, faz-nos desaparecer fisicamente,
faz-nos assumir a postura da defesa perante a impossibilidade de sermos o que nos ergueu e nos fez evoluir
afinal não parecia ser isso o importante para ti
o alzheimer levou-te as forças, o conhecimento - e é injusto
ter-te cabido uma doença do conhecimento
logo a ti
o alzheimer levou-te tudo, mas não a presença de espírito
nunca desapareceste
foste teimoso até ao fim
ressurgiste muitas vezes
estavas deitado, estavas presente,
não o corpo, já não o corpo,
tu
como agora, afinal
já não o corpo, tu
já não conseguias comer sólidos, mas comias bem
o que podias comer
comeste sempre bem
e continuavas a combater pela tua fleuma, pelos teus hábitos,
ainda lutavas pelos artigos dos jornais que querias ler, pedias a coluna do rangel e, quando ta davam, sorrias, sentavas-te, punha-la perante ti e não lias
nestes útlimos tempos, já não lias
só replicavas o prazer de ler
o prazer de pensar
replicavas a busca do conhecimento
o arrebatamento do passo em frente
o trabalho
a graça disse que, mesmo agora, no fim, quando regressamos à aparência
da criança que nunca deixámos de ser,
cada vez que ela aparecia ias a despacho
a graça aparecia à porta e tu
puxavas de uma almofada e escrevias com o dedo
assine aqui, senhor padre,
e ali,
e ali,
e tu assinavas
todos pensamos na própria morte perante a morte dos outros
na verdade, não pensei muito na minha, ontem.
pensei mais na eternidade
o teu quarto ficou cheio de livros e papéis
e quem te amou sabe que está aí
a eternidade
não apenas a tua, toda a eternidade
aí e no que levamos de ti connosco
e passaremos aos nossos
e os nossos passarão aos seus
e os deles aos deles
intimamente
infinitamente
dormiste sempre no nosso colégio, morreste onde dormiste
deitado na almofada
já não o corpo, tu
como agora, afinal
já não o corpo, tu
PG-M 2016
foto propriedade do Colégio dos Carvalhos