2014-01-31

Da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa


1884.
1884 é da minha vida porque é o ano de nascimento deste meu bisavô.
1884 é da minha vida porque é a data de fundação e o nome do livro com que dezenas de alunos me comoveram na Xico d'Holanda.
1884 é o ano de fundação do Estabelecimento Prisional de Coimbra, onde hoje estive eu e agora está outro Pessoa, que já teria chegado a este parágrafo montado em números cabalísticos.
1884 é da minha vida porque também é a data da fundação da Escola Secundária de Avelar Brotero, em Coimbra - Félix de Avelar Brotero, o grande botânico português cuja primeira publicação, em 1793, é o curioso "Princípios de Agricultura Filosófica" -,  escola onde, no dia 30 de Janeiro do ano da graça de 2014, recebi a luz coada pelas vidraças da bilblioteca e pelo sorriso e empenho das professoras Carla e Isabel e pelo entusiasmo controlado, mas eficiente, de duas corajosas turmas.

À chegada tinha a Ucrânia, a Rússia e o Uzbeqistão corporizados por três belas meninas chamadas, respectivamente, Oleksandra, Ksenia e Sasha (Shahrobonu), que, tendo Portugal como casa, estão a tentar reforçar o seu português. Eu é que aprendi. Aprendi que o agá, em uzbeque, se lê como em hebraico, com o céu da boca, e mostrei a capa d'"A manhã do mundo" em Macedónio, pelo menos para que todas pudessem reconhecer o seu alfabeto, o cirílico, porque o meu nome, Педро Гиљерме-Мореира, escreve-se da mesma forma em todos os lados do cirílico.
Nesta altura já a responsabilidade da luz deixara de ser apenas das vidraças para se virar para as pessoas. Foram as primeiras três dedicatórias.
Havia uma exposição muito bonita sobre "A manhã do mundo" - excertos em fotografias, alguns pedaços de prosa de que me esquecera. Um sobre a beleza da morte, a morte azul. Vieram as turmas e a Rafaela começou por aí. Eu não me poupei aos detalhes e aos passos que me levaram lá. Voltei a entrar nas torres imortais. O Bruno, coitado, tinha a cabeça tapada pelo projector, com o Ângelo voltámos à morte azul, a Joana leu a primeira parte da senda que leva Teresa a quase descobrir o corpo em queda, a Ana falou do momento da morte dos saltadores, o André trouxe-me de volta o meu amigo o Solomon.
Nessa altura perguntei o nome à Margarida. Margarida, ela disse. A ideia era explicar aqui que há sempre um centro, uma cara a receber a maior parte das nossas resposta no público, e ela teve hoje esse papel, o centro do público para o qual eu falava. Minutos depois percebi que talvez houvesse um fundamento: a Meggy fora o 1º prémo do concurso de leitura. O André, que me trouxera o Solomon e tinha um ar-de-deixa-me-estar-quieto-no-meu-canto, foi o 2º, a Telma o 3º. Ainda vieram a inês, a Rita - com a segunda parte da "Criação e Adão" -  e um André-espantado com a expressão mais deliciosa da plateia. A inês era vibrante e fez-nos sorrir várias vezes, porque, sentindo a sessão a esvair-se, saltava na cadeira para que percebêssemos que não se ia dali sem dizer ao que viera. E não foi, e disse, e fez aliás parte da turma que ficou para lá da ordem do dia, e eu deixei a mesa e fui-me sentar no meio deles.

A Micaela - o caso especial. O tipo de caso que eu não perderia por nada, que eu temo tantas vezes poder ficar nas cordas, não dar o passo em frente por timidez, por pudor, por sentir que não pertence ou não tem lugar. O livro marcado de forma meticulosa, o livro lido, passagens que marcaram, despedidas. A primeira que a Micaela leu - a da mãe que se despede do filho pequenino - pareceu comovê-la particularmente, mas tudo na Micaela, o mapa gestual, o sorriso humilde, a candura, essa vergonha bonita de se expôr, gritava leitora exemplar. Escritora exemplar. Por baixo d'"A manhã do mundo" tinha (posso dizer, Micaela?) "O Boneco de Neve", de Jo Nesbo, que algumas vezes nos serviu de refúgio durante a conversa.

E no ar aquele perturbante sentido do "Dream on girl" para o drama de Alice no livro.

Vem o almoço nas mesas corridas da escola, bacalhau à gomes de sá, o café e é hora de, tantos anos depois, eu passar para dentro dos mais altos muros da prisão de Coimbra, muros que rondei durante anos enquanto cursava direito, da dias da silva para baixo, da universidade para cima, pelo jardim da sereia ou por outro lado qualquer, ainda mandei encadernar muitos livros na cadeia, mas isso acabou. O EP de Coimbra é imponente, arquitectonicamente belíssimo, a biblioteca difícil de explicar, porque é sumptuosa, algo que não se espera ali. Como esse poeta Mário Pessoa, que estava sempre a voar dali para fora, fosse das páginas d'"A manhã do mundo", fosse do seu próprio peito. Ele leu o meu "Dominó", que a Isabel trouxe e eu lhe ofereci, eu abri a absoluta excepção das leituras públicas para ler - quase me obrigava a cantar - o "convento do vitral" dele, que ele me ofereceu e eu tenho aqui entre as páginas de um projecto de poesia que me impressinou profundamente pela qualidade: o Zé Eduardo vem de fora, da liberdade, como nós, para lhes dar ferramentas para construir poemas, e conseguiu chegar a um compromisso estratosférico. Não vale a pena fazer revistas, eles, pela mão do Zé Eduardo, saem dali. Maravilhoso. E fica o sorriso desarmante do Lelo, cigano bonito, do riquíssimo Pessoa, do incisivo Roberto, do doce Bruno, do Silva, do Oliveira, do Nogueira - somos quase um pomar -, do Marques e de tantos que estão sempre desassombrados e de coração aberto: nunca há mentira numa conversa sobre literatura de atrás de grades. Há uma dignidade inquebrantável para lá dos ferros, uma sensação de verticalidade, não de engano, que nos inunda. É quase irónico que cá fora se sinta mais volatilidade do que lá dentro, mas é assim, e essa liberdade áspera, dura, faz bem à alma.

E descemos e subimos Coimbra por tantos lados que eu subia e descia há vinte anos.

Minutos depois estou no comboio de regresso ao Porto, eléctrico, entrecortado, suado, difuso, tusso, a menina no bar ofercece-me dois rebuçados, eu peço-lhe o penúltimo café do dia e, da luz da Avelar Brotero às asas do Pessoa, a vida mais alta, tão interior e intensa em cada um dos sujeitos do dia que sim, mais alta, maior do que os homens, do tamanho dos poemas que deixamos por dizer ou, maior ainda, do silêncio da Micaela e da agricultura filosófica, mais do que de um Brotero, do Pessoa.

PG-M 2014

2014-01-22

LOST for all eternity


Desta vez, com a bênção do timewarp (um recurso tããão "Lost"), que nos permite analepses e prolepses, e com a grande ideia do canal MOV de ter retransmitido toda a série em HD, vi tudo. Tudo. Não perdi um minuto. Quase oitenta horas da melhor série de todos os tempos, digo mais, do melhor naco de arte em movimento alguma vez visto. Acaba amanhã, no episódio dezoito da sexta temporada, e desta vez tenho uma ideia muito diferente da primeira vez, estendida ao longo dos seis anos que demoraram a passar os cento e oito episódios e as seis temporadas. Ao ver praticamente um episódio por dia (foi o meu vício do último trimestre), sem perder pitada, tudo faz sentido, e nem sequer está confuso. E o que eu achei "cheesy" na crónica que escrevi em 2010, "O Lost não acabou (declaração fanática)", parece-me agora a única saída justa para os fãs, que aliás deviam ser todos os habitantes do planeta. Este final coloca a série acima do tempo, a vida que se recompõe no "flash sideways" - porque todos acabam por se tocar e lembrar do universo paralelo da ilha - ou a morte e chegada ao paraíso na história que nos é contada desde o início. Com efeito, desta vez ficou claro que este é o paraíso de Jack, o lugar onde todos se encontram à morte deste, e que os melhores amigos, vivos ou mortos, nunca abandonarão. É um lugar de memória ou de fé, como queiram, a que todos temos direito. Porque nem todos os que lá se encontram, no final, na igreja inundada de luz, estão mortos. Estão é presentes para o morto. Hurley torna-se o novo Jacob, com o improvável ajudante Ben, Jack morre, Sawyer, Kate, Miles, Claire, Lapidus, Miles e Desmond salvam-se. Mas estão todos presentes na morte de Jack, nesse lugar especial onde os amigos se encontram, estejam vivos ou mortos, e que para uns é a fé, outros a memória, outros as duas coisas. O "let go" é, no fundo, a paz. A paz eterna. Não a solidão. Não a ausência.

Há um momento que, se perdido, pode dificultar o entendimento do argumento, este arrebatador argumento: aquele em que Jacob explica que a ilha tem a função de um rolha num garrafão, e que o vinho dentro do garrafão é o mal. Sem rolha, o mal não é contido e o mundo fica coberto de trevas.

O que torna esta série notável é que não é propriamente fantasia.
Tomamos contacto com as perguntas que fazemos desde que temos consciência. O que estamos aqui a fazer? O que é isto? Existe vida além da morte? Há céu, inferno, purgatório? Deus? O que é deus?
O equilíbrio entre o bem e o mal percorre cada episódio. É o próprio Jacob que diz ao irmão, quando observam mais um barco a chegar à ilha e prevêem que os que náufragos seguirão o caminho de todos os anteriores: uma união inicial no desespero e na sorte, uma luta pela liderança, pelo poder, guerra, morte. Que é sempre assim, sempre igual, será sempre, até ao fim.

Mas os grandes desígnios não fariam esta série perfeita, como defendo que é: o que a faz perfeita é ter tudo, e se nem sempre isso quer dizer boa arte (muitas vezes há que tomar partido, fazer opções estéticas, não atirar tudo para dentro do caldeirão), a verdade é que os argumentistas usam com mestria as oitenta horas que lhes dão para contar esta história que, no fundo, é a história da humanidade.

Há grandes histórias de amor, que nunca se desgastam, que são profundamente complexas e raramente ficam claras. As excepções são as de Rose e Bernard, a de Charlie e Claire, a de Sayid e Shanon, a de Desmond e Penny, a de Daniel e Charlotte, a de Hurley e Libby. O triângulo Kate-Jack-Sawyer é tremendo e  muito bem cuidado por quem escreve.

Há grandes histórias de vida, sempre muito bem contadas, sem perda de interesse. Não é porque saímos da ilha e entramos na vida de uma das personagens que desmobilizamos: tudo é relevante, tudo é intenso, tudo é tenso.

Mas não quero terminar esta declaração de amor sem reforçar a escolha da personagem favorita:

Sawyer é das mais bem construídas personagens da história da televisão e do cinema. Tem tudo o que é possível ter, é a dualidade humana em carne viva, é simultaneamente uma coisa e o seu contrário, honesto e vigarista, egoísta e altruísta, justo e vingativo, duro e de coração mole, aparentemente estúpido, mas muito culto (é o que mais lê ao longo de toda a série, está sempre a ler, e a ler grandes livros), e a verdade é que usa a cultura de uma forma popular, terra-a-terra, como sempre me pareceu boa ideia. Tem a melhor escolha de perfume (Davidoff) e é o que, no triângulo com Kate e Jack, demonstra o seu amor por Kate por acções, não por omissões, como o atormentado Jack.

Em rigor, e com poucas excepções, todos os elementos de Lost têm esta dualidade, afinal a dualidade de que somos feitos.

O que custa a quem realmente se dedica a estas oitenta horas sublimes é deixá-las, é não ter mais, não ter para os anos todos que faltam viver. E é curioso como, tendo o casting sido perfeito e a direcção de actores do outro mundo, poucos são os actores de Lost que continuaram com trabalho e visibilidade. E são muitos os que sofrem de uma espécie de síndrome pós traumático. A forma como todos viveram os seis anos da série, mesmo os secundários, foi a forma como se deve viver toda a arte: visceral.

Mas isso tem sempre efeitos secundários. Quando se põem as vísceras nas coisas e as coisas acabam, fica o corpo vazio, os ossos, numa espécie de deserto.

Valha-nos a grande banda sonora e a hipótese de, de vez em quando, rever a série que nos marcou as memórias como se fizesse parte da nossa vida.

Na realidade (coisa engraçada de se dizer da ficção), fez.
Fará sempre.

PG-M 2014

2014-01-16

alerta à vaga maior


Do ponto de vista cósmico, não somos nada para ti.
Pelo menos não somos mais do que uma trave de madeira que se desprendeu dos passadiços de praia. Que antes se desprendera de uma linha de comboio.
Somos menos do que ela, menos do que o melhor de nós.

Não somos os únicos que te respeitamos, mas somos os únicos que te pensamos, os únicos que te completamos com velas e cascos.
Os únicos que, apesar de tudo, te olhamos de frente.

Batalhamos dentro de ti, vivemos na tua espuma, temos a literatura a cortar-te as vagas, baleias gigantes, espadartes, poetas com poemas que fundam países.
Ouvimos o teu protesto subir nas noites de tempestade.

E os que entre nós fazem de ti vida ficam duros, de peles curtidas

(mulheres sofridas)

E os que entre nós se habitam de ti, seja inverno ou verão, não toleram alertas amarelos e afastamentos. Ficam e esperam, temem os que se riem na tua cara quando já nem cara tens, quando te misturas com terra e vento e espuma e  sobes vigorosamente à cidade.

Apesar da morte nas tuas faldas parecer estúpida, e a morte dentro de ti heróica, só um pai de pescador pode estar preparado para perder um filho para as ondas - mesmo que nenhuma perda seja consentida, esperada, tolerada. Ninguém pensa na vaga que nos pode levar. Mesmo aqui, contigo aos pés, a escrever, como é sempre meu pecado, seja inverno seja verão.

Já as frases que vieram por estes dias são salvamentos.

Quando Hércules engoliu a Foz do Douro, "estás bem?", "pensei logo em ti". A gente fica grata por, na cabeça dos amigos, ser das pedras da Sé e do mar da Foz. Por todos os dias em que se passa, e quase sempre se fica, em mesas a metros do mar do senhor da pedra, mesas que têm esperado outras horas para flutuar com as ondas. Para que se possa voltar e fingir que o mar se contém.

Não nós.

E tantos foram os anos em que te dei corridas junto às ondas - e só por uma vez me trocaste as voltas e me encostaste às dunas e me terias levado se eu não tivesse recusado. Deve ter sido por isso. Lembro-me de que me ri com a emoção e o medo. Ao longo dos anos tenho visto muitos a rir com emoção e com nervos, alguns deles a morrer. Contamos já trinta e sete anos de uma aliança estranha entre miúdo-e-homem-de-praia. Primeiro miúdo dentro de ti, a conhecer-te os baixios, o mapa das rochas e as correntes, agora homem que te teme por não te dispensar.

Não nos tires mais miúdos, não os tires dos pais deles, pescadores ou não pescadores, nem me engulas os promontórios e as dunas de onde te estudo.

Tens razão: de onde me estudo.

E hoje, entre todos os alertas, e já que é teu o ano de vires comprido, plano, forte, entra com medida por nós adentro.

Se puderes, leva só as traves de madeira.

PG-M 2014