2013-12-23

A ampliação das pessoas e a simplificação do mundo



Na última semana - é natal, é o que nasce - tem sido flagrante:

enquanto o facebook se continua a encher de cínicos que nos fazem rir ridicularizando os outros ou expondo a mediocridade como marca - que o é - de um país que tarda em voltar a dominar o mundo pelas vísceras, como fez pelas velas e pela índole desenrascada - chama-se alma -, continuo a descobrir o lastro de pessoas brilhantes que ninguém ouve, e filmes como "Inside Llewyn Davis" dizem-me que sempre foi assim.

Mas não foram só os irmãos Cohen a colocar os actores F. Murray Abraham e Oscar Isaac cara a cara, com este a dedilhar uma guitarra e a cantar "The death of Queen Jane" antes de (ante?) Bob Dylan.
Numa conferência cénica no Teatro Carlos Alberto, no Porto, descubro a actriz Margarida Gonçalves, que em poucos dias olhou um trecho do "Filho de Mil Homens" (Valter Hugo Mãe) e vestiu uma anã, mas não vestiu só uma anã, vestiu o lugar dela, os homens dela, vestiu-nos a nós. E eu pensei, como já tinha pensado sempre que vejo actores vestir textos literários: esta mulher fez-se ampliação de pessoa, por momentos olhei para ela e pareceu-me dotada de uma certa divindade, o corpo tanto era irrelevante como central, a expressão comunicava todos os sentimentos que o mundo pode conter, e isto aconteceu apenas em alguns minutos. E pensei que isto pode ser feito com qualquer texto, e não, não é nosso mérito, dos escritores, porque o teatro toma-nos e espreme-nos o melhor, ninguém lê como um actor, ninguém nos lê como um actor.
O Luís Puto é um actor. Ninguém lê como o Luís Puto.
E todos os que estiveram em palco para nós, dezenas, uns profissionais, outros semi-tudo, outros meros amadores, vazaram ali o sangue a ferver. Como tem de ser.

Entretanto, no facebook, na segunda-feira, descobriram o anúnico sexy de um escritório de advogadas portuguesas. O jovem cínico "A" tocou a sua flauta de bardo e ridicularizou-as e deu uma pândega a "amigos" e "seguidores". A Ordem dos Advogados, com a faltinha de jeito do costume, abre processo disciplinar às colegas sensuais. Na quarta-feira, o mesmo jovem cínico "A" estava a sair em defesa das colegas sensuais que houvera dizimado no seu mural dois dias antes. O jovem cínico "A" fez questão de dizer que, desta vez, estava a falar a sério, que o ouvissem, que o mundo tinha de se levantar em defesa das colegas sensuais. Puta que o pariu. Puta que pariu todos estes cínicos que são incapazes de sentimentos verdadeiros ("sentimentos verdadeiros" é um bom cliché para alimento de cínicos) e se estão literalmente a lixar para todos que não eles.

Paralelamente, acontece-me ler a prosa e a poesia de uma pessoa que nem vinte anos tem, e achar que nunca vi nada assim, que nunca me aconteceu nada assim, a perceber a merda que sou, a merda que faço. Acontece-me conhecer um grupo de teatro de meninos de catorze a vinte e muito  poucos. Ver o modelo falhado de um Llewyn Davis que é o de todos os escritores, pintores, cantores, de todos os autores por mostrar ou mal mostrados, e perguntar se não vale a pena tomar o tempo que nos sobra, ou fazer com que nos sobre tempo, para olhar para o lado. Fugir cada vez mais da pasta indistinta em que se tornaram, por exemplo, dois terços dos blocos noticiosos, que se mimetizam entre si em nome de um bem maior (o patrocinador) - até porque nunca sabemos quando é que o pivô que os trabalhou se vai erguer acima da mediocridade com a sua marca (e ainda os há muito bons).

Não, não me apanham a criticar uma Casa dos Segredos, por exemplo ,excepto alguma inquietude que me provoca a ausência de limites. Prefiro a Bernardina ao Zé Comentador que vai justificar o seu soldo criando tensão noticiosa. E desconfio de quem não sabe quem é a Bernardina - porque não é preciso sufragar a mediocridade para estar atento ao que nos rodeia. Sei que o tema Bernardina é infinitamente mais intrigante do que os esqueletos noticiosos e anódinos da Bárbara e do Carrilho. Como tudo, e embora eu e tantos não sejamos exemplos para ninguém, o indivíduo medíocre masturba-se com os mesmo exemplos que expõe publicamente, trai os seus pares porque não reconhece as próprias limitações, vive alimentado a umbigo porque não tem capacidade para identificar o cotão que se intromete nas fendas dos próprios dentes e que vem do próprio corpo - do tal umbigo que o alimenta. O próprio medíocre é impróprio. As manifestações de rua - a putativa liberdade - são convocadas precisamente pelos mesmos que na semana anterior estavam a acossar o cão para devorar os restos de um amigo em praça pública.

Os benfeitores que levantam uma voz vinda de dentro são destruídos com as mesmas armas que os malfeitores maiores usam contra os malfeitores menores, e vice-versa.

O cavalo de tróia que vai mudar isto continua vazio.

O que sei, e isso aparece-me com uma transparência aterradora, é que os melhores reconhecem-se entre si facilmente, mas têm medo de sair da caverna onde entraram para não serem incomodados. Vão mudar o mundo lentamente, ao longo de gerações, vão contaminar os medíocres e trazê-los para a caverna - calando-os ou reclicando-os.

Uma menina escreve um poema superior e eu, no centro da felicidade, só tenho medo de que ela não pouse, porque precisamos dela no chão, e, se há grandes artista egocêntricos, não têm uma verdadeira utilidade para o mundo a não ser para as evasões de outros séculos. Mas gosto de me sentir inútil por momentos, gosto de pensar que há tantos melhores do que eu, e principalmente descanso por perceber que há quem possa levar o mundo.

Porque às vezes me sinto tremendamente cansado ao lutar contra os gigantes - dizem que são moinhos.

Sei que o verdadeiro amor não se confunde com o plano da arte, mas também sei que o plano da arte admite a invasão do amor (vejam pf o vídeo com que encerro este post: ela é uma "performer" moderna, uma artista, e esta "instalação" é brutal. Ela está sentada durante três dias no Museu de Arte Moderna de NY (MoMA) e  as pessoas vão-se sentando em frente a ela e ela olha-as em silêncio. Agora vejam o que acontece quando o companheiro de uma vida (mas já separado dela há uns anos) passa por lá. Ela não sabia. Talvez não soubesse. Acho que o amor é isto).

E a Magarida, ali no palco, tem um vestido preto largo que é justo, move o corpo e amplia uma pessoa e o mundo é um sumo de laranja.

PG-M 2013

2013-11-17

nobel de latão



 já é de tarde e é cedo.
teatro de sol de domingo e no banco de jardim do parque infantil da praia de salgueiros estão sentados, lado a lado, o emplastro da madalena, que é filho do pinto da costa, e uma rapariga que foi famosa num big brother ou numa casa dos segredos, já não sei bem, estão ambos com o olhar vazio, ele com uma saco de plástico, ela com uma garrafa de vodka, ele não está muito limpo, ela também não, nota-se principalmente pelos cabelos, e de forma alguma estão juntos.

no banco em frente está um poeta de rua que escreve com uma letra miudinha nuns papéis muito pequenos, de vez em quando para, olha para tudo, portanto para nada, morde a barba comprida por baixo do lábio inferior, e ao lado dele um acordeonista que trabalha de segunda a sábado na rua de santa catarina mas hoje está a descansar ao teatro de sol de um banco de jardim em frente ao mar.
eu estou a tomar café num bar em frente, protegido deles por um vidro, a pensar na literatura e na vida e na ciência e no corpo, portanto a fazer filosofia sem querer, depois de ter lido uma entrevista demasiado profunda do eme tavares. estou perturbado, fico sempre perturbado quando não resolvo um escritor, isto é uma doença que só me dá com os melhores. penso que não retive o nome da jornalista que lhe fez perguntas de uma forma rara, como se soubesse mesmo o que estava a fazer e tivesse pensado sobre a causa, e não sobre a consequência, e se tivesse concentrado na fonte e não no resultado.
entretanto acabei por decidir que, realmente, o próximo nobel português vai para o eme tavares e por ter uma consciência clara de que já não consigo competir com ele pelas coisas mais bonitas e só tenho uma vantagem, sou mais velho, chego mais cedo à idade da aparência do abandono, a ironia era que eu queria ganhar o nobel porque aquilo é muito dinheiro e dava para alimentar a família para sempre, mas não posso tentar porque tenho de trabalhar para dar de comer à família ainda este ano.

o emplastro abriu um saco de milho e está a atirá-lo às pombas e a partilhá-lo com a miúda do big brother, mas por causa do vento não há pombas na praia, e nem as gaivotas querem o milho nem vem o O'Neill, porque o médico lhe disse que, por causa da condição cardíaca, não devia caminhar contra o vento.

li num livro do eme tavares que os homens, nos jardins de domingo, procuram diamantes e que as mulheres os procuram a eles. disse isto à minha mulher e ela perguntou, a eles aos homens, ou a eles aos diamantes? e eu respondi, acho que é aos homens, mas estás a ver, de qualquer modo, se for aos homens porque eles procuram diamantes também é muito bonito. não estou sequer certo de ser isso o que estava lá escrito. espera. não foi num livro. foi no artigo de hoje da notícias magazine. não tenho gostado muito dos textos do eme na notícias magazine - talvez porque são superiores e eu não lhes consigo chegar -, mas hoje gostei, acho que era o senhor voltaire a falar e o senhor focault a ouvir. de vez em quando o senhor voltaire levantava-se para olhar para um quadrado negro desenhado no chão ou sorrir com a parte lateral do lábio e que isso era sarcasmo, ou as duas coisas, não sei.
não tenho tempo para investigar as frases e ouvi dizer que o eme tavares faz isso e isola-se com tempo no templo como os artistas mais antigos, e também ouvi dizer que tem de ser assim para nos chegar a arte ou as palavras que podem ser arte.

em rigor, se querem que vos diga, eu queria ganhar o nobel porque gosto muito daquela parte da cerimónia em que nos põem uma faixa vermelha na diagonal, sobre a barriga e sobre o peito, ou sobre o peito e a barriga, e o rei da suécia nos vem entregar uma pequena caixa com uma medalha do alfred nobel e depois o escritor tem de fazer uma vénia ao rei, depois uma vénia aos convidados mais ilustres, depois uma vénia aos convidados menos ilustres e tocam as cornetas.
penso, sinceramente, que se me fizerem uma cerimónia dessas num aniversário qualquer já ganhei o nobel. o problema é mandar vir o rei da suécia

mas o mais complicado, mesmo, o mais complicado de tudo vai ser chegar a casa e explicar à minha mulher porque é que decidi escrever este texto só com letra pequena, como o valter primitivo.

no banco de jardim de cá o poeta de rua está de pé e com a mão estendida, como se mandasse esperar o mundo. fez um sinal ao acordeonista e ele levanta-se e mexe a cabeça e os braços, como se estivesse mesmo a tocar. tenho de pagar o café para sair e ouvir.
até hoje tinha conseguido resolver o eme tavares em mim, mas desta  vez ele subiu tanto, tanto, que já chegou a uma pureza a que eu nunca chegarei, porque não tenho tempo nem qualidade, poucos têm, talvez só ele

é por isso que a treta da conversa precoce do nobel vai deixar de ser treta, eu já atribuí um a Moçambique, irá para o Mia Couto, vai ser um grande dia para a língua portuguesa e desportuguesa, e alguns anos depois, quando o eme tavares passar os sessenta, outro, finalmente, para portugal. ele vai fazer as três vénias e, provavelmente, pagar-me um café no regresso.

eu, contudo, só terei hipóteses de ganhar se passar dos cento e trinta e um, e mesmo assim tenho de ter o cuidado de não entrar curvado, as três vénias só são mais tarde, tenho de estar lúcido e com capacidade de subir a um palco, como o Manoel de Oliveira, que fez isso há dias na bilbioteca almeida garrett, no porto, e tem centro e cinco e parece que está tudo à espera que ele morra para lhe darem mais.

gostei muito de ouvir o eme tavares dizer que não se podem comparar ou escalonar livros, que é como dizer que um tigre é melhor do que um elefante, espera, o acordeonista estava a tocar a melodia do into my arms, do nick cave, o poeta a ler o "assim como" do alberto caeiro....como é possível?....e o emplastro está a olhar muito espantado para ele, com a boca cheia de pão, e a menina da casa dos segredos a abraçar a garrafa de vodka.

eu estou arrebatado e a ouvir na minha cabeça o ave verum corpus, do mozart, que não está realmente a tocar

nenhum deles sorri, nem o emplastro nem a miúda, porque não há câmaras de televisão por perto.

li hoje um fragmento do primeiro romance do bruno vieira amaral e fiquei comovido, era uma reunião qualquer entre a mãe e umas senhoras, uma em que ele ficou ao largo, estava tão delicado e no entanto cruel como a grande literatura sabe ser, ainda assim mais suave do que o coetzee no coração desta terra, mas um destes dias estava a ver na sic notícias uma reportagem sobre a entrada do público no estádio da luz para o portugal-suécia e lá estava o emplastro, vi a cara de poucos amigos do repórter, vi alguém a bater no emplastro e não gostei, afinal o rapaz é filho do pinto da costa e faz-nos sorrir a todos, está bem, podia estar a aborrecer o repórter há muito tempo, mas não importa, bater no emplastro é um crime de lesa-majestade, e então resolvi descer aos bancos de jardim e dizer-lhe que o rei da suécia o defenderia sempre

mas a expressão dele continuou vazia

o poeta de rua disse para eu deixar estar, que ele sabia o que a fazer, que tinha uma história infantil ou uma grande frase que lhe contava ou dizia sempre, e eu voltei a pensar em literatura e no eme tavares,

será que consigo resolver isto? o emplastro, a miúda do big brother, o poeta de rua, o acordeoonista e o eme tavares? será que consigo tocar ao de leve a literatura para a atirar para dentro do emplastro e da miúda da casa dos segredos, ou é mesmo obrigatório render-me e desistir, aceitar a expressão vazia dos dois e a superioridade das coisas simples e intangíveis do eme tavares ou de todos os génios como a maria filomena molder ou a llansol ou alguns pedaços do camus e do coetzee e daquele americano e do próprio do saramago e até do lobo antunes

ah, o discurso do nobel do saramago, eu acho, how characters became the masters and the author their apprentice, foi muito mais bonito do que o do coetzee, he and his man. mas, como diz o eme tavares, não se pode comparar um elefante com um tigre

no teatro de sol de domingo o poeta de rua leu ao emplastro a frase do novalis
"estamos sós com tudo aquilo que amamos"

e o emplastro começou a chorar com os olhos quietos

o acordeoonista tocou o anda comigo ver os aviões como se fossem lâminas a desentranhar da pele os corações mais frágeis

e a miúda do big brother largou a garrafa de vodka e dançou a valsa com o emplastro

e ambos riram, pela primeira vez, sem câmaras.


(é assim que a literatura chega, baixinho, desde o chão, como as primeiras coisas, bruno, e eu resolvo os meus escritores)

PG-M 2013
(vencedor do nobel de latão da literatura na festa dos seus quinze anos, organizada pela miúda do big brother)


2013-09-20

A imperatriz Felisbela

Quando estamos encostados ao muro de um funeral de uma parte de nós o que se abate sobre o corpo são todas as vidas que estão dentro da nossa. Pode acontecer, por breves momentos, que nos apareça perante os olhos a própria mortalidade, mas o que nos violenta é a imagem de todos aqueles que ali estão, com roupas escuras, que estavam dentro da nossa vida e agora andam nas margens. Há uma alegria de regresso misturada com a tristeza da partida. Hoje, enquanto deitavam a avó à terra sob um imperial sol de Setembro, eu vi à minha frente um dia de festa na mansão da avenida da república que hoje é um prédio amarelo com o modelo continente. A Guidinha tão depressa estava debaixo do meu abraço como às ordens da avó na cozinha que tinha uma chaminé tão grande que ocupava toda a parede leste, a Ana Maria hoje a dar-me um beijo pela primeira vez e a caminhar com dificuldade a chegar-se à porta da cozinha e a repreender o primo Gonçalo no longo e escuro corredor que não subisse às paredes, eu a correr à volta da casa com o primo Miguel para ver os perus e o fascinante aterro do lixo, nunca mais vi uma casa com um aterro de lixo, a cave dos carros e no primeiro andar o quarto do tio Tó com os discos todos do mundo, o quarto da avó que era tão bonito e fazia um "L" com uma salinha e a casa de banho privativa, de azulejos pretos e brancos muito brilhantes e ricos, imperial como o sol, imperial como era sempre a avó quando entrava na cozinha e dava ordens, o avô Caius a mandar calar toda a gente para ver a Gabriela, o tio Paulo abraçado à tia Luísa, é tão bonita a tia Luísa, e as outras tias e a mãe à mesa a trocar piadas sexuais com os outros tios e o pai se o avô Caius se retirasse para a salinha depois de ver a novela, o Manelinho no sofá, o Dox a correr e a ladrar no maior terraço que uma casa pode ter, maior ainda do que isso, quem não conheceu a mansão bordô da avenida de gaia? A Guidinha vai para os noventa anos e nunca me levantou a voz ou baixou a ternura, a ti Detinha e a Madrinha são as manas da avó e o tempo às vezes é bom, deixou-as iguaizinhas a ela, será que é desta que eu vou cumprir a promessa e regresso às mãos doces da Madrinha, ao sorriso mais belo do mundo, será que ela me mostra a pedreira da madalena ao fundo do quintal? Quando a primeira terra caiu na madeira eu ainda não tinha chorado, só quando cheguei ao café e olhei para dentro e lá estava ela, a avô Belinha, imperial, a entrar na sua cozinha e a comandar a Guidinha e a Ana Maria e a casa a ferver de nós todos que aqui estamos, cinzentos, a pensar que a vida é isto e que, ainda que não volte atrás, nos podemos lembrar dela, nos podemos lembrar de todos quando estávamos dentro uns dos outros, e Felisbela, que nos amou a todos com a mesma pose imperial com que comandava a  cozinha, sobe aos braços do seu imperador.
 
PG-M 2013
 

2013-08-05

A janela redonda de Al Berto

Estas são as frases que me cabem no processo secular de desmaterialização e ascensão de um contemporâneo a mito. Pressinto que - embora historicamente implicado e demasiado perto - os anos oitenta do século vinte foram os anos de implosão, depois de ter explodido a condição humana na sanduíche das duas guerras com recheio de grande depressão, depois de ter explodido o sexo nos anos sessenta e setenta, a estética dos anos vinte aos anos setenta, todas as correntes artísticas até aos anos setenta, todo o mundo e todo o século implodiu nos anos oitenta: a indeterminação estética que ainda hoje nos faz sorrir, tão rica e diversificada que hoje nos devolve todas as modas a pretexto de regressos nostálgicos que são um pouco mais do que isso: nós, que os vivemos, e as novas gerações, que os não viveram, adoptam os oitenta sem vergonha e até com voracidade. Implodiu a liberdade sexual com a SIDA e implodiu a homofobia. Claro que não se advoga aqui que nos curámos de todos os sintomas: o ser humano e o mundo que deturpa para si tem tendência a adaptar-se e a ser ecléctico. Convoco a homofobia para voltar à célebre sessão de leitura da poesia do Al Berto pelo próprio no início dos ano noventa no bar Dom Dinis, e que nos voltou via youtube (aqui) de uma forma assombrosa, como se tivéssemos viajado no tempo, eu que precisava de saber o que afinal se tinha passado lá dentro quando vi os meus amigos sair esbaforidos do Dom Dinis dizendo que o Al Berto tinha sido insultado por um grupo de putos que não o deixaram ler a poesia. E devolvido os insultos. Ele não era realmente popular entre os estudantes universitários, fechado, diferente, pouco simpático, mas essa violenta noite despertou em mim a curiosidade de o seguir vida fora, apesar de tudo. Essa adopção literária não culminou na sua morte, mas na publicação dos Diários do Al Berto pela Assírio & Alvim, e nas longas sessões de leitura da primeira parte dos ditos na Almedina do Arrábidashopping.
 
Em particular as páginas escritas na Rua do Forte, em Sines, a olhar pela janela e a ver o mar, ou a não abrir a janela porque tinha muito frio e se sentia febril e doente, porque tinha muitas dores ou estava deprimido, para depois a voltar a abrir num dia azul, perfeito, descrevendo o movimento de barcos no horizonte ou o minimalismo da neblina e as pinceladas fantasmáticas que só os seus olhos viam, e quando o Al Berto dizia que ia apanhar o expresso para Lisboa eu só desejava que ele voltasse à Rua do Forte e àquela janela, que voltasse a sentir frio, calor, excitação, exaltação, depressão, que voltasse ao que o mar lhe devolvia, às gaivotas, aos barcos, ao sofrimento, à esperança. Com a ajuda da jornalista Raquel Ribeiro, que tem os seus laços com Sines e com o trabalho que fez sobre o Al Berto, descobri o lugar exacto dessa minha memória literária. Ia em família e pedi para me deixarem sozinho ali, enquanto esperavam pelo péssimo e caro (Al Berto teria dito assim) arroz de marisco do Varanda do Oceano, que terá tido melhores dias. Foram quinze minutos encostados à janela redonda, que fica ao nível do rés do chão: foram literariamente perfeitos e, por mais que eu saiba que não foi assim, ou pelo menos não foi sempre assim, para o Al Berto, a morte, a desmaterialização, a excelente edição dos diários com o toque da poetisa Golgona Anghel, fizeram o Al Berto subir, definitivamente, à condição de estrela, a tal que Saramago dizia que à terra pertencia. Eivo agora este texto das imagens que Al Berto via, tomadas com o cotovelo encostado à moldura da janela redonda da Rua do Forte. E embora fosse melhor que Al Berto cá estivesse, qualquer escritor aspira ao leitor que o tenta sentir desde dentro e através dos tempos. Assim.
PG-M 2013

2013-07-18

As minhas meta-merdices para-praísticas

Eu nunca ando de branco, até porque desfavorece tipos realmente grandes e eu sou um tipo realmente grande, talvez se descontarmos o herói Finn do Flann, e vocês, se andam atentos, já sabem que ando a banhos com o Flann. É que o Finn tem sorrisos do tamanho de milheirais, ombros que encaixados num desfiladeiro podem deter um exército e eu não chego a tanto. Só não sou um dos manipansos do Pessoa porque não sou baixo, mas gostava de ser um manipanso metafísico por uma manhã - no verão não é assim tão difícil. Uma vez por ano combino uns calções claros com uma camisola clara e sinto-me o Gabo num fato de verão a calcorrear Arataca. À noite tenho levado três livros debaixo do braço, peço um café comprido e leio um pedaço de cada um. De manhã, para a praia, levo outro, que ataco logo num bar de praia com os pés na areia e depois continuo sob o guarda-sol enquanto não são horas do banho. Costumo nadar em águas diáfanas em direcção a bóias amarelas distantes até o sol sair do meio do céu e enquanto nado livre tanto acho palermas os tipos que passam por mim em gaivotas de plástico a pedais que exigem um esforço descomunal para se atingir o ponto em que que valeu a pena o preço como digiro livros. Retiro um prazer bestial de boiar com o corpo quase todo fora de água, o céu azul é um paroxismo dessa treta da fusão com a natureza, que às vezes, em certos acidentes, acontece mesmo. Para poder ter mais livros e como não tenho muito dinheiro, li um nomeado do prémio Goncourt que me ofereceram nos anos em dois dias para o poder trocar por dois livros muito melhores e em saldo. Se o livro fosse bom, não me separava dele nem me acelerava. Não era, e pôs-me a pensar outra vez nos prémios literários, provavelmente por eu próprio ter sido um dos sete finalistas de um e não encontrar nisso qualquer mérito particular que não o facto de poder vender essa marca em conjunto com o pacote da minha fotografia e das minhas declarações bombásticas e das críticas simpáticas de gente realmente importante, rezando embora que ninguém se lembre de me atacar com os epítetos assassinos identificados pelo Aramburu, "o melhor da sua geração", porque nenhum ser vivo, excepto talvez o pescador Tonico de Armação, pode saber o que é a minha geração e muito menos obter pontos de comparação antes que morramos todos. Por falar do pescador Tonico de Armação, ele está todas as noites a comer com um amigo no café para onde me retiro a ler os tais três livros aos pedaços. Come tarde, sempre depois das dez da noite, costuma falar alto, raramente de generalidades, tem a pele curtida do ponteio e todas as marcas de um homem que trabalha muito e lê pouco, mas hoje notei um silêncio atrás de mim, o Tonico e o amigo detinham-se de cada vez que eu trocava de livro e esse silêncio tanto podia ser desprezo como espanto. E enquanto o Tonico comentava com a empregada Tânia o desgoverno do mundo eu lia sobre ele no Livro do Desassosego, não sei se se lembram daquela parte em que o Soares perora sobre realidade e metafísica, sobre ele próprio e o Moreira e o patrão Vasques, que afinal coloca lado a lado consigo, apesar de no ofício do pensamento se diferenciar. Pensa ele, o Soares, que fora Guedes, como há dias aqui foi mencionado. Depois passo para os ensaios do Orwell e andava a ler Flann à noite mas vai passar para as manhãs, tanto me vinha rindo dos episódios do Furriskey, principalmente daquele em que uma senhora tem um bebé de terceira idade que lhe morre com semanas, eu ri-me sozinho com o Flann a aprofundar a temática da arrumação de uma casa quando uma mãe tem um filho idoso, não, não é nenhum síndrome, é mesmo gozo do Flann sobre coboiadas irlandesas, a sociedade ainda se há-de levantar contra o facto - hoje (ainda) incontornável - de os bebés nascerem de tenra idade. O ensaio do Orwell é um meticuloso estudo sobre como os livros, afinal, custam tão pouco à face de vícios banais. Noto fascínio e estranheza dos pescadores perante a imagem de um tipo com ar de turista carregado de livros - os turistas só carregam um de cada vez. Quando regresso do café, caminhando pela ligeira rampa da rua Rosa dos Ventos, penso sempre se sou menos do que o pescador Tonico, porque tenho a certeza de que ele não é menos do que eu. Pode até acontecer que ele seja um grande leitor, mas um pescador sabe sempre parecer um pescador, mesmo que leia. Se cogito sobre a minha menoridade é porque fiz recentemente obras em casa e pode dizer-se que surpreendi a minha mulher por ter arregaçado as mangas. No final dessa semana extenuante, a cabeça parecia ter-se mudando para outra divisão do mundo, passou a ser sensível a todos os parafusos reais. Eu reclamava, meu deus, meu deus, estou a ser acometido da doença da bricolage, acordo com ânsias de ir ao LeRoy ver ferragens. Cada vez que resolvi um parafuso senti-me superior ao eu que lê, pode até dizer-se que o desprezava um bocadinho. E quando o leio na cara das empregadas do bar de praia ou do café da noite ou do pescador Tonico, mas principalmente quando regresso à noite, vitorioso, pela Rua do Rosa dos Ventos, venho é com pena de o Pessoa nunca ter conseguido resolver os passos circulares de um ego genial, como ele sofre, coitado, cheio de vontade de falar disso com o pescador Tonico, que o perceberia como guarda-livros e até a beleza do que ele diz que é sonhar a chegada do outono trabalhando na rua dos douradores e o conforto de quando se tem de acender a luz no escritório, tenho a certeza de que o pescador Tonico se riria tanto como eu do porco do Kelly a encher de muco praças e jardins de Dublin e sei, pelo olhar puro e em bruto dos miúdos das escolas, que a literatura cabe tanto nessas caras limpas e nesses olhos claros como em mãos calejadas e em peles curtidas e nos olhares sombrios dos pescadores de Armação, desde que, a uns e a outros, alguém fale, e não necessariamente seja, não necessariamente se confunda na sua existência, como Hemingway fez quando, como e enquanto lhe apeteceu. A literatura é um parafuso do Ikea, vem tudo contadinho, se falta um está tudo f., você é montador da sua própria lucidez pescador Tonico, tem cá maneira de explicar o que dos seus dias banais é superlativo para  todos nós e se no café, à noite, eu virar a minha cadeira para trás e o enfrentar, é possível que a faísca que sai do Flann O'Brien e os círculos do Pessoa e as estantes do Orwell ainda lhe sirvam de casaco para noites agrestes.
PG-M 2013
foto minha

2013-06-30

segunda bersônhe do Improbiso - revista e aumentada

Ontem, 29 de Junho, foram 20 escritores com poucos repetentes no "Não há feira, mas há escritores". Eu estava fora de cartaz, mas a amizade de um convite do L.M. Rocha trouxe-me de volta (ainda que sem tempo, o que me impediu de desfrutar de todos:), para dedicar mais umas palavrinhas aos bons autores e leitores e livreiro. Fica a segunda bersônhe, bem diferente, como prometido.

"Eu resolbi fazer uma homenagem aos colegas escritores que estão no cartaz pra hoje, e bou fazer isto com o sotaque daqui. Então é assim:

Leio “no dia em que fugimos tu num estabas” do Albim, c'hoje num beio mas há-de bir, quando apanho o metro em Santo Obídio, mas quando me lembro qu'o meu primo de Lisboa chamou ao nosso metro um eléctrico, “ó Pedro, só tens eléctricos, metro mesmo não usas?”, e eu a explicar qu'o nosso metro até acelera na linha do estádio do Dragom, e ele a insistir naquele sotaque limpinho “está bem, está bem, conta-me dessas!” e eu “oube lá, deixa-me sossegado” e ele “eléctrico, eléctrico!” e eu “diz lá isso outra bez”, e ele calado, e eu “anda lá!”,

e ele outra bez “eléctrico, eléctrico!” e eu “aiiiiiiiiiiiiiiiiiiieeeeee”.

mas quando apanho o metro mais abaixo, em General Torres, num leio o Albim, leio o Prelúdio da Inês Botelho, só qu' ainda num passei do princípio por cósa do próprio nome do libro, Prelúdio, até porque também me lembro dos pintainhos da esquina da Luís de Camões com a Abenida da República, ali mesmo, quando ainda habia árbores no meio e paralelos na rua e os carros passabam na ponte de cima, a minha abó trazia-me pela mão p'ra ber os comboios da ponte da abenida e dizia sempre c'uma boz fininha “olh' ós pintainhos, Pedrinho”, porque eu era mais pequenino do qu'isto que sou agora, e eu “óóóóóóó”, podia ser a quinquagéssima bez qu'os bia qu'era sempre “óóóóóóóó”, porqu'eu olhaba pr'a eles e eram sempre tão bonitos e redondinhos e amarelos c'à medida c'os anos passaram e muito antes de eu ser inteligente pensaba sempre c'o raio dos pintainhos da esquina da Luís Camões nunca cresciam, coitadinhos, por cósa daquela lâmpada bremelha que os deixaba mesmo, mas mesmo muito mal-dispostos e ourados.

Leio “A escraba de córdoba” do Alberto S. Santos um bocadinho abaixo dos pintainhos e antes de bir pró Porto, porque dibido uma francesinha com a minha irmã no Mokaba, mas a sostra da minha irmã nunca se lebanta a horas, é sempre às três da tarde, e eu, claro,
como a minha metade, num tem nada a ber! O que bale é qu'o Pintas do Mokaba lh'aquece o molho à parte. E eu: entom, rapariga? E ela: qu'é que queres?”

Leio o Tamujal do Ibo Machado quando estou à espera qu'o meu irmão arrume a mesa do lanche da nossa casa de Fernão Magalhães, e ele só arruma depois d'eu abisar aos berros,
“ollha só pr'á labagice que tu fizeste aí, Edgar!"

Leio a memória do Germano a pairar sobre a Ribeira, quando a minha mãe me manda buscar cruzetas para pendurar camisas e eu respondo sempre fuoooooogo!

Leio o segundo bolume das Lendas do Porto do Joel Cleto, o José Hermano Saraiba do Porto,
e é o segundo bolume porque eu num encontrei o primeiro no alfarrabista ali na rua das flores, ele até me disse “o primeiro é recente, só numa livraria normal” e eu “isso num interessa, senhor,
o senhor está sempre a queixar-se dos fundos e agora num tem fundos?”

Leio a metade maior da Julieta Monginho,
porque a mais pequena me fica à desamão e num me dá jeito nenhum.

Leio o Palácio de Cristal do Marmelo no Pabilhão Rosa Mota entre os pabões que me moem o juízo quando eu quero ir atrás dos patos e ber a bista prá ponte da Arrábida.

Leio os ano dourados do Marco Mendes, que diz que compila desenhos à vista dos últimos dez anos, e eu fico a pensar qu'o verbo compilar debia ser proibido no presente do indicativo aqui no Porto, qu' a cabeça do tripeiro num pára de endrominar, e como isto num tem nada a ber com os desenhos marabilhosos do Marco, deixo queimar o estrugido que estaba ó lume e dou cabo da sertã que era dos chineses mas num importa, até daba para induçom, bamos lá a ber, se eu comprei uma sertã nos chineses era só para comprar uma, não duas, porque duas é praticamente o dobro.

Leio p'ra maiores de dezasseis da Ana Saldanha, porque aqui no Porto ninguém lê nada para menores de dezasseis,
no Colégio dos Carbalhos íamos ao quiosque mesmo ao lado só pra ber as capas da Gina
e quando finalmente eu e dois amigos ganhámos coragem para comprar uma Pentóuse em Espinho foi só pra ber as fotografias da Madonna nua nas dunas de francelos a comer batatas fritas, mas ficamos desiludidos porque bimos que estaba cheia de músculos e já num era nada laica bârjin.

Leio a última criada de salazar do Miguel Carvalho, e isso faz-me lembrar a criada da minha mãe quando eu descobri as coisas bonitas, tinha uns sete anos, ela sempre a dizer, teja queto menino!, tire a mão daí menino, saia daí menino, mas uma bez, olha, prontos! A berdade é que só me curei depois de ter sido expulso da natação do Flubial e do Futebol Clube do Porto por apalpar as meninas em apneia.

Leio as cores do bento do Miguel Miranda na Foz, a comer um croissant da Doce Mar no homem do leme c'uma manta.

Leio o Nuno Camarneiro porque no meu peito num cabem pássaros, mas cabe muito amor, e a bem dezer uma pessoa que se chama Camarneiro num é como um Silva ou um Sousa, num pode esconder a família do radar dos amigos tripeiros, e quando eu descobri que a Rita Camarneiro faz um programa com o Unas na Sic Radical, mau!!!, entom bamos lá a ber se a moça tem jeito, e até tem, e depois quando eu pegaba no libro do Nuno e bia Camarneiro lembraba-me logo que tinha grabado o programa da Rita na boxe da cabobisão e num lia nada, foi então que num dia de saraibada a luz foi abaixo e num habia televisão nem boxe nem nada e eu bim para a beira da janela e li os dois libros do irmão da Rita Camarneiro duma só bez e gostei muito.

Leio as bozes no escuro do Rui Bieira na mesa do fundo da Arcádia, onde eu declarei amor à minha mulher de uma forma muito estranha, ora bê lá se percebes o que está aí escrito, era o livro de introdução ao direito do batista machado a falar de hermenêutica e ela disse num entendo e eu disse também eu num entendo, e depois beio o empregado da Arcádia e eu disse quero um café e ele, aqui só servimos lanches, e eu, quero um café e um lanche então.

Leio os papas de sarrabulho do Rocha na pensão que já num há na Mártires da Pátria em frente ao Lumiére, e sabem o que tinha essa pensão?, tinha uma língua de bitela do carago.

Leio sempre Sónia Cravo deste lado do mar bremelho, ou seja, do lado de cá dos lampiões quando bou ao estádio do dragom e me lembro da bancada norte do Estádio das Antas, ia eu pequenino mais o meu pai, mesmo antes de ber o Pabão cair e eu a lebantar-me da bicicleta, caí binte bezes no pabilhão américo de sá enquanto o meu pai treinaba boleibol e eu sacaba cabalos sem rodinhas.

Quando leio A filha rebelde do Baldemar Cruz num consigo deixar de pensar na sostra da minha irmã.

Leio Por ti resistirei do Juca Magalhães no plebeu d'abintes, mas num resistirei nada porque o Tono maluco senta-se sempre à minha frente e fala p'los cotobelos de coisas mirabolantes, mas o problema num são as coisas mirabolantes porque os escritores são mirabolantes, o problema são os perdigotos do Tono, que tem uma falha nos dentes da frente, coitado, e eu “ó Tono, é preciso guarda-chuba?

Leio o Filho de Mil homens do Balter Hugo mãe porque os tripeiros são sempre pais de mil filhos e por cósa daquela cigana na estação de são bento que me chamou um dia tinha eu dezasseis anos mas já era bom rapaz e tão bem alimentado como hoje, e disse-me ela,
anda cá malandro que me fizeste um filho”,
e a estação toda parou e nos olhos dos tripeiros bia-se aquele sorriso que num se explica mas é basicamente igual ao “Fuôoooood” do emplastro da Madalena, até que beio uma senhora e me pôs a mão no lombo e disse, “deixe lá, menino, qu'ela é maluca, bá-se embora, bá-se embora”.

Leio quando bou arrumar carros prós pobeiros, leio quando m' atiro do tabuleiro de baixo pró Douro, leio enquanto tento beijar a primeira namorada nas escadinhas da Bitória durante o fogo de São João, leio no prado do repouso a apanhar a ponte do comboio e o douro por uma nesga, até lia no meu alfaiate em Santa Catarina, que me fez um fato do carvalho de um pano do Ermenegildo para eu me casar que até o emplastro quando me biu na Madalena bestido disse "Fuôôôd......" e eu depois de ficar gordo e num caber no fato mudei a etiqueta do Ermenegildo para todos os casacos que lebo quando bou a Lisboa e digo assim, Bera, troca-me a etiqueta e ela troca.

Lebo o livro do Pedro Guilherme-Moreira, aquele muito jeitoso sobre o 11 de Setembro, aquele o libro, num é o Pedro Guilherme-Moreira, lebo “a manhã do mundo” pró chão da Rua Cimo de Bila que está sempre à sombra, porque eu nasci lá, na Cimo de Bila e o meu abô tinha logo abaixo, na Rua Chã que é pegada à do Loureiro dos rádios de pilhas, o meu abô tinha a Casa Caius e bendia tabaco e harmónicas, daba-me sempre uma harmónica das baratas quando eu ia lá e me estendia no balcão de madeira que era maior, só o balcão, do qu'uma loja de shopping, mas quando eu como adbogado fiz o contrato de trespasse da Casa Caius aos chineses só num chorei porque num calhou, mas o meu abô disse bais ser escritor pega lá dois contos e bai comprar chocolates,
estás a ber a feira do libro ali em baixo?, um dia bais-te sentar numa mesa para assinar libros e ninguém bem, ninguém bem, mas isso é que é ser escritor, filho, trabalha e fica à espera, trabalha e fica à espera, trabalha e fica à espera,
o meu abô num sabia que um dia nos iam tirar a feira, mas num tiram mais nada, num senhor, disse o meu abô, podem tirar as barracas dos libros, mas num nos hão-de tirar a alma e tu bai lá, filho, tu senta-te com os teus escritores e fala de quando binhas para cá pequenino e te encostabas ao granito da biela do anjo com os braços no ar e gritabas "O Porto é meu, abô, o Porto é meu!" e eu dizia-te sai lá daí, rapaz!
 
Faz assim agora meu filho, bai lá abaixo e senta-te com os escritores e lê-me aquele poema do Porto, mas num digas aquela coisa feia no final, diz antes curta,
e o fim do poema era assim

Amamos a insultar./ Por isso, num há cicuta/ Nem desbio de conduta,/ Quando os comboios apitam/ E em Campanhã te gritam/ “Meu Porto filho da curta!
Bibó Porto!
 
PG-M 2013, foto de Cesário Costa

2013-06-23

O "improbiso" tripeiro num levantamento de escritores

Como se costuma dizer, a pedido de várias famílias, deixo-vos  "improviso" de 22 de Junho de 2013:
" Leio sempre o cão da Adélia quando bou arrumar carros prós pobeiros.
Leio o pintor do Afonso debaixo do laba-louças da casa dos meus pais em Fernão Magalhães.
Leio os pretos da Aida sempre que me atiro do tabuleiro de baixo pró Douro.
Leio como tu, Ana Luísa,
enquanto tento beijar a primeira namorada nas escadinhas da Bitória, durante o fogo de São João.
Leio a Morte no Estádio do Biegas na bancada norte do Estádio das Antas,
com muito cuidado para num tomar nada em lado nenhum, enquanto dou a mão ao meu pai, mesmo antes de ber o Pabão cair e eu a lebantar-me da bicicleta, caí binte bezes no pabilhão américo de sá enquanto o meu pai treinaba boleibol e eu sacaba cabalos sem rodinhas.
Leio a memória do Germano a pairar sobre a Ribeira, quando a minha mãe me manda buscar cruzetas para pendurar camisas e eu respondo sempre fuoooooogo!
Leio este poema foi escrito ontem do Barreto Guimarães, este poema foi escrito ontem no prado do repouso a apanhar a ponte do comboio, a ponte do comboio e o douro por uma nesga.
Leio os papas, "os" papas, de sarrabulho do Rocha na pensão que já num há na Mártires da Pátria em frente ao Lumiére
e sabem o que tinha a pensão?, tinha uma língua de bitela do carago.
Leio o Palácio de Cristal do Marmelo no Pabilhão Rosa Mota entre os pabões que me moem o juízo quando eu quero ir atrás dos patos antes de ber a bista prá ponte da Arrábida.
Leio as cores do bento do Miguel Miranda na Foz, a comer um croissant da Doce Mar no homem do leme c'uma manta.
Leio os anagramas do Zimmler ali numa mesa da Arcádia, onde eu declarei amor à minha mulher de uma forma muito estranha, ora bê lá se percebes o que está escrito aí, era o livro de introdução ao direito do batista machado a falar de hermenêutica e ela disse num entendo e eu disse também eu num entendo, e depois beio o empregado da Arcádia e eu disse quero um café e ele, aqui só servimos lanches, e eu, quero um café e um lanche então.
E lebo a fábrica do tempo da Sílbia para o concerto do Rui Beloso de 87 no Coliseu quando ele canta assim: quem bem e atrabessa o rio, junto à serra do Pilar, bê um belho casario, que se estende até ao mar.
Lebo o corte e costura do Paulo Ferreira ao meu alfaiate em Santa Catarina, que me fez um fato do carvalho de um pano do Ermenegildo para eu me casar que até o emplastro quando me biu na Madalena bestido disse "Fuôôôd......" e eu depois de ficar gordo e num caber no fato mudei a etiqueta do Ermenegildo para todos os casacos que lebo quando bou a Lisboa e digo assim, Bera, troca-me a etiqueta e ela troca.
Lebo o livro do Pedro Guilherme-Moreira, aquele muito jeitoso sobre o 11 de Setembro, aquele o libro,
num é o Pedro Guilherme-Moreira,
lebo o libro às escolas quando sou eu que bou falar às escolas porque eu sou o Pedro Guilherme-Moreira
e é por isso que lebo o libro que o pessoal de Baladares diz que é o amanhã do mundo, num é "a" manhã, é o amanhã, mas quando lebo o libro pra ler
sento-me no chão da Cimo de Bila que está sempre à sombra, porque eu nasci lá, na Cimo de Bila e o meu abô tinha logo abaixo, na Rua Chã que é pegada à do Loureiro dos rádios de pilhas, o meu abô tinha a Casa Caius e bendia tabaco e harmónicas, daba-me uma harmónica sempre que eu ia lá e me estendia no balcão de madeira que era maior, só o balcão,
do que uma loja média de shopping hoje em dia, quando eu ia de boleia com o meu abô na 4L castanha saía em frente à polícia e binha pelo túnel e pela biela e é por isso que quando eu como adbogado fiz o contrato de trespasse da Casa Caius aos chineses só num chorei porque num calhou e o meu abô me dizia bais ser escritor pega lá dois contos e bai comprar chocolates,
estás a ber a feira do libro ali em baixo?, um dia bais-te sentar numa mesa para assinar libros e ninguém bem, ninguém bem, mas isso é que é ser escritor, filho, trabalha e fica à espera, trabalha e fica à espera, trabalha e fica à espera,
o meu abô num sabia que um dia os senhores espertos nos iam tirar a feira, mas num tiram mais nada, num senhor, e o meu abô até ia à Lamiré lá em cima na Rua da Alegria dos Azeitonas entregar instrumentos e dizia sempre para o senhor só pagar quando pudesse, assim o meu abô, que era honrado e tinhas contas à moda do Porto, ia ber este deserto nos Aliados e habia de dizer assim: podem tirar as barracas dos libros, mas num nos hão-de tirar a alma e tu bai lá, filho, tu senta-te na mesma com os teus escritores e fala de quando binhas para cá pequenino e te punhas naqueles prepósitos encostado às paredes de granito das casas da biela do anjo, de pé e de bruços encostabas-te às paredes de granito e lebantabas os braços e gritabas "O Porto é meu, abô, o Porto é meu!" e eu dizia-te sai lá daí, mas num queria nada, num queria nada que saísses, faz assim agora meu filho, lebanta os braços encostado a uma parede da praça e diz outra bez "O Porto é meu, abô, o Porto é meu, abô!", num há feira, mas há escritores, num há feira, mas há escritores. E digam lá se pode ou não comer-se o Porto! Num pode! Bibó Porto! "
PG-M 2013
foto de Lourdes Costa

2013-05-30

Guilty Pleasures (I)



Confissões claramente impopulares de uma alma devassa:

Definitivamente:

- uma décima parte do Michael Bublé, aquela que me instiga o salto para o palco para o subsituir nesta ou naquela;

- o laboratório psicológico dos parvalhões nos reality shows;

- aquela parte em que o Goucha desbunda com a Cristina Ferreira - certamente a mais dotada dupla em Portugal;

- a Belinha, repórter de campo de Lourosa;

- outra décima parte do Roberto Carlos e nove partes da Gal Costa;

- as suspensões do Lobo Antunes e as paixões - não as azias ou grandiloquências - do Mário Crespo;

- o impossível mimetismo do neurologista da receita esgotada que é a Anatomia de Grey, a maldade/bondade do Karev e o amadurecimento da própria Meredith;

- a loucura lamechas do Malick;

- outra vez o voleibol do Benfica, enquanto lá estiver o professor Jardim (sou portista);

- passar à porta da minha escola primária a ouvir a M80 e às vezes chorar pavorosamente por querer voltar, por um dia, a andar às caçadinhas sob o velho plátano;

- ser a dupla de voleibol de praia do meu filho (insistindo inconscientemente nessa possibilidade:);

(to be continued one of these days)

PG-M 2013
fonte da foto

2013-05-12

Desporto-desbenfica

Raramente escrevo sobre desporto, mais raramente ainda sobre futebol. Mas como nasci no Porto e aprendi a amar o FC Porto, onde treinei e onde o meu pai foi internacional e treinador, assim como um irmão, como estudei em Coimbra e aprendi a amar a Académica, como vivo em Valadares e estou todo orgulhoso que as meninas vão disputar a final da Taça de Portugal de futebol feminino, como estou delirante que o clube local de voleibol, o Atlântico da Madalena, tenha sido campeão nacional da segunda divisão e que o meu filho, pelo mesmo clube, vá disputar no próximo fim-de-semana o título nacional de infantis, onde provavelmente haverá um grande derby Atlântico-Benfica, pensei em escrever só isto, que no fundo é só o que me importa em qualquer actividade humana: ser "anti" o-que-quer-que-seja é ser descompensado emocional e mental - deixei de ter dúvidas sobre isso. Desejar o mal, não só a pessoas, mas a instituições, é precisar urgentemente de terapia. Usar cachecóis a dizer "Merda é Benfica" patológico. Não é por sermos um país pequeno e Lisboa ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer tripeiro, e o Porto ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer alfacinha. É porque os limites da natureza humana estão também nestes detalhes. A minha alma transporta uma comoção pelo granito que eu sinto num certo sotaque largo de quem ama o clube local, mas que não está em lado nenhum de quem odeia, de quem se esquece que em todo o lado, na sua vida, está uma pessoa que tem outra paixão e outra cor e que não é isso que a define, mas a distância ao centro das coisas. Na Casa do Benfica em Luanda os portistas e os benfiquistas fizeram ontem a festa, choraram, voltaram a fazer a festa e no final abraçaram-se, como em minha casa, como em muitas casas. Quanto mais nos afastamos do centro do furacão, quase sempre urbano, mais se limpa o cenário e depuram as pessoas, mais ressalta o bom e esquece o mau, mais fica  o importante e evanesce o inútil. Os animais que agridem jornalistas e vão insultar o seu melhor adversário, o adversário sem o qual não haveria nem jogo nem vitória, e atiram pedras a quem faz o que sente ou deve, esses, não são nada, não são adeptos de nada, mas a vergonha das camisolas que abusivamente envergam. Eu, por causa deles, não me quero esquecer dos dias em que fui de mão dada com o meu pai para dentro dos pavilhões e dos estádios das antas, os dias em que, miúdo, me agarrei fascinado às pernas de um Freitas, de um Teixeira, de um Cubilhas, de um Fonseca, o dia em que os ouvi chorar porque aquele jogador chamado Pavão, o que tinha caído no campo aos treze minutos da jornada treze de um Dezembro aziago, tinha morrido, o dia em que me deram a camisola azul e branca para a defender, como se fosse a mesma do meu pai, como foi a mesma que, uns anos depois, o meu pai me ofereceu quando, já veterano e a jogar noutro clube, perdeu um set a zero com o mesmo FCP. E eu comecei a jogar voleibol com essa mesma camisola número três desse mesmo clube. Dentro de um pavilhão das antas contei vinte quedas, vinte, na minha bicicleta amarela, no dia em que o meu pai, antes do treino do FCP, me tirou as rodas. Tinha seis anos. E o brilho nos meus olhos era o mesmo quando o meu pai recebeu em casa uma chamada para treinar o FCP. E aquele homem careca meio curvado que ontem estava comovido, de pé, junto ao banco do FCP, logo a seguir ao golo do Kelvin, o médico Nelson Puga, que era jogador do meu pai em 1978 e quase se sentava no chão antes de cada serviço, curvado, de cócoras, paralelo à linha de fundo do court de voleibol, esticava o braço direito e fazia um arco sobre o braço esquerdo e a bola voava em elipse, era um gesto belo, belo, belo. Tão belo que nenhuma dessas feras criminosas que espumam contra os outros pode apagar a essência do que isto é, e que não se separa, nem nunca se separá, em Porto e Benfica. São memórias de luta, de músculo, de crescimento. Que a queda de Jesus sobre os joelhos deixou no coração de todos.

PG-M 2013
fonte da foto (jornal "A Bola")

2013-05-10

Memórias préstimas* de um advogado-sopeiro

    
     No dia das limpezas cá em casa sempre me levantei muito cedo. Normalmente era para sair antes que a empregada chegasse, mas quando convenci a minha mulher de que eu, sozinho, era mais do que competente para ela me pagar a mim em vez de à dona-não-sei-quantas, que ainda por cima não era fiscalmente justa e eu prometia entregar todo o meu soldo para benefício caseiro (dava para duas semanas de supermercado), fui contratado. A bem dizer, a minha senhora (coisa horrível de se chamar ao portento com quem me casei) já sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, não por causa da crise.
     (é que bem antes da crise os advogados, por razões boas - o simplex, que tanto simplificou a vida das pessoas e infernizou a de funcionários públicos dos registos e notariado empurrados para a selva sem formação e sem que muitos mecanismos tecnológicos tivessem sido atempadamente testados, mas eu não estou a criticar, nem pensar, então eu ia lá falar do inferno pioneiro que vivi com um garboso funcionário dos serviços centrais das conservatórias do registo automóvel, tal que ficámos amigos, como na tropa, vejam lá, mas eu não vou falar disso, bem antes da crise os advogados, por razões boas já tinham a sua própria crise de clientela;)
     (é que bem antes da crise os advogados, por razões más, como por exemplo a forma irresponsável como se aprovaram cursos de Direito - que eram moda - como cogumelos, e nem um político, nem um dirigente das ordens e associações profissionais, os teve no sítio, como dizem que têm, para fazer frente aos grupos económicos que os faziam proliferar, mas a bem dizer fizeram o mesmo no Estado com os professores e sem privados, o facto é que não temos gente de visão, essa é que é essa, diz o sopeiro;)
     (portanto, já na altura os avogados tinham a sua própria crise de clientela, principalmente os que possuem coluna vertebral e fazem seus os princípios na deontologia, que não são assim tantos, a bem dizer, diz o sopeiro, porque, com tantos inscritos, mais de trinta mil, a pressão de procura de estágio é de tal ordem que o mecanismo de que ninguém quer falar e que ninguém quer proteger, conhecido popularmente como de "escravatura de estagiários", está implementado e já ninguém fala disso, com efeito é fácil perceber que qualquer corajoso que fizesse vida a proteger estagiários abusados teria a sua vida rapidamente destruída pelos mais poderosos, e por isso o abuso está nas veias do sistema e já nem é mencionado, é que são tantos, que se desenmerdem ou então vão a caixas de supermercado;)
     E como a minha senhora sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, aceitou o facto de o marido, advogado e por acaso escritor, ser competente nas limpezas.
     (levanto-me hora e meia mais cedo, porque demoro isso; às vezes duas horas. A primeira coisa que disse à minha semhora foi "vês como ela não precisava de quatro horas a sete e meio à hora para limpar a casa?"; com efeito, a minha técnica de aspirar tapetes é perfeita e já está patenteada; a bem dizer, aspiro a casa duas vezes, primeiro com a pontinha do aspirador, que deglute as pequenas poeiras, depois com o braço maior, e sou também muito eficaz na limpeza do pó, e vou a mais sítios que a dona-não-sei-quantas-que-era-fiscalmente-injusta, quer dizer, não descontava, não é?)
     Mas eu estava a falar disto a propósito de quê? Ah, já sei. Era só para dizer que enquanto ando a limpar a casa ponho os auscultadores do meu filho, uns xpto com cancelamento de ruido externo (coisa perigoso, ó-ó) e uns baixos a bombar, que na verdade me deixam num estado de arrebatamento artístico difícil de explicar, sabem quando estão isolados em boa música e o mundo lá fora (com o ruído cancelado) não tem peso nenhum, e vocês desesperados para partilhar aquilo com alguém, mas quem?, como dizer isto?, como inefar* o inefável?, e eu até interrompo a lida da casa para ir ao facebook, para responder a uns mails de clientes e colegas, para fazer uns acertos em textos para a editora, ver os filmes que estreiam, isto enquanto aspiro aquele tapete, confessso, aquilo fica perfeito, perfeito, as migalhas que o miúdo larga durante a semana e nem uma, nem uma, confesso, estou a sorver migalhas com a pontinha do aspirador e tudo é perfeito, seja com os Daft Punk, com o Jake Bugg, com o Tom Odell, com a Nena, com a Lhasa de Sela, Mozart, Enaudio, Radiohead, R.E.M., Solomon Burke, não importa, com aqueles auscultadores eu chego ao céu, sabem como é?, e foi até por causa de um estado de graça desses durante a limpeza do pó que eu escrevi na cabeça aquele  poema em italiano, com que ora concluo, porque tenho de ir fazer o almoço, mas em português - este texto é sobre música e poesia, mais nada -, porque certamente já peceberam a ideia, eu quero é cantigas (onde abaixo diz "criada" não é a criada, sou eu, vale?):

Eu sou o quarto onde a palavra sangra
Eu sou uma rima sobre a cama/ Eu sou a frase dentro do
armário
E quando a criada vem
limpar
lança poemas pela janela
E eu volto a casa e vejo

versos

Nos sapatos das pessoas

     PG-M 2013
     * palavras inventadas, obviamente, porque posso, como sopeiro
     fonte da foto

2013-05-05

Oprheu e a mãe branca (ou quaquer outro nome da luz, mesmo que seja preta)


Vais ver, mãe, que vai ser um arqueólogo a descobrir que o Orpheu do avô é toda a nossa existência em demanda antes de tempo. Já te perguntaste sobre a obsessão? Com tanto para descobrir em Paris, arriscando um encontro com Pessoa, Sá Carneiro, Picasso, Souza Cardoso, Modigliani, todos tanto, porque é que o avô se fechou naquela cave bafienta no setenta e tal da Rue Vercin e modelou aquele gigante como se estivesse a modelar a própria carne e a de todos os seus filhos? Aquele olhar ausente, tão subido que parecia ter dado a volta desde o inferno, pelo céu que lhe é adjunto. Já te sentaste na escadaria do pavilhão meio esquecido do outro lado do jardim das Belas Artes do Porto e olhaste para o Orpheu do avô? Não? Faz isso e há uma coisa que te vai parecer evidente: o avô deu à estátua todo o nosso sofrimento. Já não tens de o suster em ti, só o medo, um medo breve, e depois deixa que o Orpheu te ampare os golpes e te sorva as lágrimas e que enquanto beba te deixe os sorrisos que lhe foram vedados. Não vês? Ficou tudo lá, o passado, o presente e o futuro de todas as nossas dores. Por isso te deves deixar elevada, mãe, e branca (ou qualquer  outro nome da luz, mesmo que seja preta).

PG-M 2013

2013-04-20

Eu, tu, os nosso filhos, aqui, agora (Lazhar)

Depois do filme "A Caça" nos ter virado a pele do avesso quanto ao nosso tempo e ao nosso relacionamento com a inocência (em todos os sentidos), não satisfeitos, os arautos dourados do cinema trazem-nos outro momento que nos confronta dolorosamente com o nosso tempo, as nossas pessoas, as nossas coisas em "Monsieur Lazhar". Não por acaso ganhou nos festivais de Toronto e Locarno, e teve o prémio da crítica no Sundance, do público no Cph, vários Genie e Jutra awards, o do realizador em Palm Springs, do júri e do público no RiverRun, argumento em Sidney e Valaldollid, para não falar nos inúmeros prémios individuais para os actores - não esquecer também que era um dos cinco nomeados este ano para o óscar do melhor filme estrangeiro. Vejam como está aqui o mundo. Tudo numa obra simples, que não precisa de problematizar para descarnar - e o faz com inteligência (como tudo devia ser). Já lá vamos. Numa escola preparatória de Montréal - o filme baseia-se numa peça, portanto é o tal olhar ao espelho - há um momento de excepção na vida de todos, que afinal não é excepção nenhuma porque, nas vidas todas juntas também as excepções de juntam numa regra de sofrimento: é, afinal, a condição humana. O que impressiona neste filme é o trabalho dos actores infantis, tal como já acontecia no filme dinamarquês. Mas aqui são mais. A cena final é do melhor que o cinema (ou o teatro) podem ter para oferecer a alguém e ninguém - ninguém mesmo - pode ficar imune. Ou impune. Atenção especial a Sophie Nélisse - na foto - (a mais premiada), Émilien Néron e Marie-Ève Beauregard nas personagens de Alice (a favorita de todos nós), Simon e Marie-Frédérique, mas não só. Enfim: vão ver. É obrigatório para que a inquietação que trazemos no peito se ligue a todas as inquietações do mundo e nos permita mais lucidez da próxima vez que se nos deparar uma decisão difícil. Nota intratextual: Aqui no blogue vamos ao cinema mais do que uma vez por semana, mas não escrevemos sobre cinema uma vez por semana. Só cá aparecem os (raros) filmes - uma dezena por ano, às vezes menos - cuja urgência nos impele a dizer ao próximo, de forma nada escolástica: olha, se queres desatar um nó, captar o sentido das coisas, como na grande literatura, como na grande arte, está aqui, senta-te, fecha-te no escuro, fica duas horas a ver isto, afinal podes nunca ter esta conversa, podes nunca chegar lá por ti. Daí o plural majestático: eu, tu, os nossos filhos, aqui, agora, somos nós. Monsieur Lazhar somos nós.

PG-M 2013