Depois de uma velha eternidade em que, dia após dia, Fernando Alves me deixava assombrado, arrebatado, das madrugadas de rádio à beira do colapso, afastei-me e cortei os pulsos da escrita, e tenho de escrever para não me esvair em sangue, ou para me esvair, sim, devo escrever para me esvair em sangue, e deixei de ser capaz de parar de escrever ou de ler, apercebi-me de que me esperavam Camus, Kafka, Vergílio, Vieira, Torga, Saramago, Lobo Antunes, e deixei a rádio, aqueles febris dias de uma rádio que eu próprio fiz, e a rádio faz-se - nos idos de noventa.
Este é um motivo, provavelmente um motivo falso, uma explicação conveniente.
A verdade é que muito Fernando Alves pode matar, o corpo comove-se e o olhar ergue-se para brilhar insuportavelmente mais do que os astros, os que brilham ou reflectem a luz dos outros, e queremos estar com ele na caverna onde não existe nada que comunique com o exterior para lhe dar uma palmada nas costas, um gole de tinto que repousa num copo de três entre o polegar e o indicador, e dizer-lhe: "é isso, companheiro, é mesmo isso,"
ou, a sorrir, "esta vida é uma merda"
ou, a chorar, "uma merda maravilhosa".
Deixei-o por sobrevivência, pois, e agora encontro-o igual, sem tirar, nos mesmos Sinais, e, com a modernice das playlists em podcasts, pedalo por aí com um sinal atrás do outro, Fernando Alves não cansa, vai-se pelas ciclovias a rir e, às vezes, a chorar, abranda-se ali na marginal do Douro, logo depois de passar por baixo da Ponte da Arrábida, embargado. Tiro ali, precisamente e quase sempre, os auscultadores. Trata-se de ouvir um novo som do rio, uma nova cor veneziana, os rabelos crescem e multiplicam-se, agora têm motor e levam turistas, e fica um som que se reflecte nas escarpas que me recorda o que eu ouvia na cidade silenciosa de Veneza, só lá há passos e vozes e motores de barcos, e, em dias bons, com o norte pelas costas e a subir o rio connosco, é só o que se ouve: o sol a amarrar as pálpebras, vozes, passos e motores de barcos. Esse programa - emitido no meu dia de anos - contava a história do gasolineiro Manecas, de Vila Real, que tirava o número de sapatos só de olhar porque tinha tido várias sapatarias, e num passo, numa voz, num motor, dizia assim o Fernando
"Porque onde eu quero chegar, do pé para a mão, é ao momento em que, falando nós dos homens transmontanos, perguntei a Manecas pelo Torga, e Manuel Mourão (Manecas, como o conhecem em Vila Real), antes de responder, levou a mão ao boné e destapou a cabeça. Não vergou a cerviz: destapou simplesmente a cabeça. No dia seguinte, parei na Galafura a contemplar o poema geológico, a beleza absoluta de que falava o Torga. Fui ao carro buscar o Portugal do Torga, porque é justamente nesse texto, sobre trás-os-montes, que ele fala dos "homens de uma só peça, inteiriços, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão (pausa funda - ou de Fernando Alves), e pensei, claro, em Manecas, o homem que sabe medir os pés alheios só com o olhar, muito chão firme terá ele pisado para viver as histórias que me contou, tão firme como o aperto de mão que trocámos. A minha mão, esta que escreve com caligrafia incerta, a dele, aquela que usou para destapar a cabeça quando respondeu à pergunta que lhe fiz (pausa de Fernando Alves) sobre o Torga"
sobre o Torga
Soube, desde esse dia, que tinha de erguer o pedestal que o Fernando nunca aceitará, apesar da merecida comenda, e nunca mais me cansei de ouvir e reouvir (eu que sou tão pobre releitor) os Sinais do Fernando, porque ele, como os grandes livros, diz uma coisa diferente a cada repetição, o do Manecas foram umas quatro ou cinco vezes, e de sentir, sempre de forma infantil, com uns quatro anitos e agarrado às calças dele, vontade de lhe dizer, cada vez que ele fala de um escritor, tal como sentia há mais de vinte anos, senhor Fernando! senhor Fernando!, eu agora também sou escritor, mas sou tão pequeno que o senhor Fernando, habituado aos grandes, como o Torga e o Manecas, não me consegue ver.
senhor Fernando! senhor Fernando!
Pensei, garoto, imberbe, quando "O livro sem ninguém" foi "Livro do dia TSF" e eu cumpri o sonho de ouvir aquela voz comprida e encantada do Carlos Vaz Marques falar de um livro que me tinha nascido debaixo das mãos mas nunca houvera sido meu, como não é nenhum, que o Fernando, nesse dia, ia finalmente reparar ao que vinha aquele tipo que usa um hífen, o mesmo hífen que, em alguns dicionários, é um insuportável sinal burguês.
E, meses passados, cruzei-me com ele nos corredores da Escritaria da Lídia Jorge e pensei, caramba, ele está sozinho e gosta de abraços firmes, é desta!, esta é a oportunidade de me render ao meu ídolo, mas, tal como fiz cinco longos e tortuosos anos em Coimbra, naquele percurso do trólei três entre o Teatro Académico Gil Vicente e o cruzamento da Avenida Dias da Silva com a Luís de Camões, tive o Torga sentado à minha frente, cara fechada, meu deus, meu bicho, e nunca fui capaz de o incomodar ou de arriscar o que me garantiam: ele vai responder-te mal.
Eu não podia arriscar o desprezo do meu Torga.
Como não podia arriscar a indiferença do meu Fernando.
Mesmo sendo o pequenito de quatro anos agarrado às calças do senhor e seja justa a trapalhice do arrebatamento.
E depois tive este texto de homenagem em suspenso durante tanto tempo, nunca me senti merecedor de o assinar - porque ouvia o Fernando que, sendo dos homens, parece acima deles. Um dia ouvi-o num dos Sinais e tive uma ideia: vou pegar num texto de homenagem de dois amigos que lhe aquecem o coração (por mais banal que seja a expressão, é mesmo isto), e adaptá-lo a nós, com o devido respeito e distância no que a mim me toca. E então glosei:
"Não sei quando é que o Fernando chega aos setenta (nem quanto tempo sou mais novo - ou se até serei mais velho - do que ele). Portugal é capaz de produzir
um Fernando Alves: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se
anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro
nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto
do sotaque tripeiro, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as
movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo,
o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os
arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró,
as polifonias pigmeias. Suas canções - porque cada "sinal" é uma canção - impõem exigências prosódicas que
comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de
incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da
virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio
Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Vieira, Torga, Pessoa, Saramago, Eusébio, Pavão, Oscar, Rosa, Pelé,
Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração
foi captado pelo Fernando e transformado em coloquialismo sem esforço. (...) A Revolução Cubana, as
pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade
de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Fernando
está em tudo. Tudo está na dicção límpida do Fernando. Quando o mundo se
apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto Portugal.
Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz
muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos."
É só a declaração de amor do Caetano ao Chico, que deixei quase igual, e que, quando eu ouvi pela própria voz do Fernando, me fez pensar, caramba, é mais ou menos isto que te quero dizer. Basta-me, com supremo atrevimento, plagiar o génio do Caetano e colocar Fernando ao lado, não sobre, Chico, como se trauteássemos uma cantiga ao desafio como o meu pai fazia, nas noites da minha juventude, e depois o Fernando completava, e que até o Caetano um dia fez em conluio com o Almodóvar, mas não em Almodôvar, que era onde o Fernando o teria feito:
"Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando"
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando"
E assim foi.
Fernando Alves? Amo-o.
PG-M 2014