2014-06-25

Victoire et l'Immortalité


Victoire, escuta,

as vísceras são água

olha para mim

tenho a boca fechada e o queixo
imóvel, isto no mundo não são
lágrimas

um homem não chora
os olhos dos cães vagabundos de Paris também não.

ficam à tua espera, Victoire,
para serem lidos

como não choram os cisnes
do bosque de Bolonha
ficam à tua espera, Victoire,
para se dobrarem

como o Orfeu debaixo das minhas mãos,
cuja dor eu moldo surda e seca,
os cães vagabundos de Paris e os cisnes
do bosque de Bolonha são só

movimento

(c'est à toi, Victoire, l'immortalité)

e o cão olha-te
enquanto te dobras para o alimentar
e o cisne dobra-se
enquanto o olhas para te alimentar

e, como eles,
o homem não chora,
Victoire,
o homem

move-se 


PG-M 2014
foto do Orfeu, do escultor Alves de Sousa, não exposto, mas doendo naturalmente à entrada de um pavilhão da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Como bisneto, gosto muito que ele lá esteja, assim, como está. Victoire foi a mulher que ele amou.
Nota Importante datada de 9 de Janeiro de 2016: Chamo por ti, Germaine Victorine. Chamo baixinho, mas com um profunda comoção - que só eu sei! Depois de cerca de 75 anos de buscas familiares infrutíferas - os meus avós chegaram a viajar para França, procurando na zona da Normandia sinais da família francesa, sem sucesso, e uns dez anos de buscas como investigador do meu bisavô, como artista, e da minha bisavó francesa e todo o ramo francês de onde provenho, consegui obter hoje, 9 de Janeiro de 2016, por buscas em arquivos digitais, entretanto carregados para a rede, departamento a departamento, comuna a comuna, aldeia a aldeia, da província da Normandia, a certidão de nascimento da minha bisavó. A família cria, e ainda crê, que ela se chamava Germaine Victoire, e daí o título deste poema, "Victoire et l'immortalité" que será também o título do livro sobre a história de amor e de arte destes dois. Na verdade, a minha bisavó francesa chamava-se Germaine Victorine. Decidi que o erro, por ter quase um século, por ser convicção do meu próprio avô Caius, seu filho, que até chamou Vítória a uma das sua filhas, vai incorporar o título do livro, que pretendia jogar com o termo "Vitória" e "Imortalidade", por ser, precisamente, sobre a vitória do meu bisavô escultor sobre a mortalidade, e mesmo do amor de ambos, já que os dois morreram muito novos, ela em 1919 - dizem que de gripe espanhola, mas ainda falta confirmar isso factualmente, e não está fácil arranjar o "Acte de Decés", que não está averbado no nascimento -, com 31 anos, ele em 1922, com 38. Portanto, chamo por ti Germaine Victorine, e chamo por ti comovido, mas devolver-te-ei à vida num livro em que serás Victoire et l'immortalité. Assim, como o poema.


2014-06-20

os autos de interdição de maria

Excelentíssimo senhor juiz de direito:
não alcançado o poema,
ofereço o merecimento dos autos
de interdição de maria
legitimando o abraço
tão alto e
tanto,
tão alto e
tanto, tanto, tanto,

do seu marido
carlos

(podem ser lágrimas ou um momento
na sombra, o carlos
a limpar a boca
a maria,
o seu amor,
a afagar-lhe o cabelo ralo
e branco,
a falar do que ela foi
ao senhor professor perito
e ela ali, ausente,
com o olhar nas
faias,
digo-lhe adeus, espreito
o fundo das pupilas,
ela nas faias subindo
até mim,
a mão a assomar da
estola
está quente na minha
faço-lhe festas suaves e sei
que amarei o meu amor como o carlos o seu
maria foi decretada nada e está toda
na minha mão
na copa
das faias

choro

o carlos diz poesia na entrada de psiquiatria e a afilhada
catedrática de histologia
ainda se deslumbra

não redigirei o relatório
da diligência

quando a poesia é tão alta
e tanta, tão alta
e tanta,
tão alta e
tanta, tanta, tanta,

toca o silêncio
e não se diz

PG-M 2014
fonte da foto