No dia das limpezas cá em casa sempre me levantei muito cedo. Normalmente era para sair antes que a empregada chegasse, mas quando convenci a minha mulher de que eu, sozinho, era mais do que competente para ela me pagar a mim em vez de à dona-não-sei-quantas, que ainda por cima não era fiscalmente justa e eu prometia entregar todo o meu soldo para benefício caseiro (dava para duas semanas de supermercado), fui contratado. A bem dizer, a minha senhora (coisa horrível de se chamar ao portento com quem me casei) já sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, não por causa da crise.
(é que bem antes da crise os advogados, por razões boas - o simplex, que tanto simplificou a vida das pessoas e infernizou a de funcionários públicos dos registos e notariado empurrados para a selva sem formação e sem que muitos mecanismos tecnológicos tivessem sido atempadamente testados, mas eu não estou a criticar, nem pensar, então eu ia lá falar do inferno pioneiro que vivi com um garboso funcionário dos serviços centrais das conservatórias do registo automóvel, tal que ficámos amigos, como na tropa, vejam lá, mas eu não vou falar disso, bem antes da crise os advogados, por razões boas já tinham a sua própria crise de clientela;)
(é que bem antes da crise os advogados, por razões más, como por exemplo a forma irresponsável como se aprovaram cursos de Direito - que eram moda - como cogumelos, e nem um político, nem um dirigente das ordens e associações profissionais, os teve no sítio, como dizem que têm, para fazer frente aos grupos económicos que os faziam proliferar, mas a bem dizer fizeram o mesmo no Estado com os professores e sem privados, o facto é que não temos gente de visão, essa é que é essa, diz o sopeiro;)
(portanto, já na altura os avogados tinham a sua própria crise de clientela, principalmente os que possuem coluna vertebral e fazem seus os princípios na deontologia, que não são assim tantos, a bem dizer, diz o sopeiro, porque, com tantos inscritos, mais de trinta mil, a pressão de procura de estágio é de tal ordem que o mecanismo de que ninguém quer falar e que ninguém quer proteger, conhecido popularmente como de "escravatura de estagiários", está implementado e já ninguém fala disso, com efeito é fácil perceber que qualquer corajoso que fizesse vida a proteger estagiários abusados teria a sua vida rapidamente destruída pelos mais poderosos, e por isso o abuso está nas veias do sistema e já nem é mencionado, é que são tantos, que se desenmerdem ou então vão a caixas de supermercado;)
E como a minha senhora sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, aceitou o facto de o marido, advogado e por acaso escritor, ser competente nas limpezas.
(levanto-me hora e meia mais cedo, porque demoro isso; às vezes duas horas. A primeira coisa que disse à minha semhora foi "vês como ela não precisava de quatro horas a sete e meio à hora para limpar a casa?"; com efeito, a minha técnica de aspirar tapetes é perfeita e já está patenteada; a bem dizer, aspiro a casa duas vezes, primeiro com a pontinha do aspirador, que deglute as pequenas poeiras, depois com o braço maior, e sou também muito eficaz na limpeza do pó, e vou a mais sítios que a dona-não-sei-quantas-que-era-fiscalmente-injusta, quer dizer, não descontava, não é?)
Mas eu estava a falar disto a propósito de quê? Ah, já sei. Era só para dizer que enquanto ando a limpar a casa ponho os auscultadores do meu filho, uns xpto com cancelamento de ruido externo (coisa perigoso, ó-ó) e uns baixos a bombar, que na verdade me deixam num estado de arrebatamento artístico difícil de explicar, sabem quando estão isolados em boa música e o mundo lá fora (com o ruído cancelado) não tem peso nenhum, e vocês desesperados para partilhar aquilo com alguém, mas quem?, como dizer isto?, como inefar* o inefável?, e eu até interrompo a lida da casa para ir ao facebook, para responder a uns mails de clientes e colegas, para fazer uns acertos em textos para a editora, ver os filmes que estreiam, isto enquanto aspiro aquele tapete, confessso, aquilo fica perfeito, perfeito, as migalhas que o miúdo larga durante a semana e nem uma, nem uma, confesso, estou a sorver migalhas com a pontinha do aspirador e tudo é perfeito, seja com os Daft Punk, com o Jake Bugg, com o Tom Odell, com a Nena, com a Lhasa de Sela, Mozart, Enaudio, Radiohead, R.E.M., Solomon Burke, não importa, com aqueles auscultadores eu chego ao céu, sabem como é?, e foi até por causa de um estado de graça desses durante a limpeza do pó que eu escrevi na cabeça aquele poema em italiano, com que ora concluo, porque tenho de ir fazer o almoço, mas em português - este texto é sobre música e poesia, mais nada -, porque certamente já peceberam a ideia, eu quero é cantigas (onde abaixo diz "criada" não é a criada, sou eu, vale?):
Eu sou o quarto onde a palavra sangra
Eu sou uma rima sobre a cama/ Eu sou a frase dentro do
armário
E quando a criada vem
limpar
lança poemas pela janela
E eu volto a casa e vejo
versos
Nos sapatos das pessoas
PG-M 2013
* palavras inventadas, obviamente, porque posso, como sopeiro