2013-05-30

Guilty Pleasures (I)



Confissões claramente impopulares de uma alma devassa:

Definitivamente:

- uma décima parte do Michael Bublé, aquela que me instiga o salto para o palco para o subsituir nesta ou naquela;

- o laboratório psicológico dos parvalhões nos reality shows;

- aquela parte em que o Goucha desbunda com a Cristina Ferreira - certamente a mais dotada dupla em Portugal;

- a Belinha, repórter de campo de Lourosa;

- outra décima parte do Roberto Carlos e nove partes da Gal Costa;

- as suspensões do Lobo Antunes e as paixões - não as azias ou grandiloquências - do Mário Crespo;

- o impossível mimetismo do neurologista da receita esgotada que é a Anatomia de Grey, a maldade/bondade do Karev e o amadurecimento da própria Meredith;

- a loucura lamechas do Malick;

- outra vez o voleibol do Benfica, enquanto lá estiver o professor Jardim (sou portista);

- passar à porta da minha escola primária a ouvir a M80 e às vezes chorar pavorosamente por querer voltar, por um dia, a andar às caçadinhas sob o velho plátano;

- ser a dupla de voleibol de praia do meu filho (insistindo inconscientemente nessa possibilidade:);

(to be continued one of these days)

PG-M 2013
fonte da foto

2013-05-12

Desporto-desbenfica

Raramente escrevo sobre desporto, mais raramente ainda sobre futebol. Mas como nasci no Porto e aprendi a amar o FC Porto, onde treinei e onde o meu pai foi internacional e treinador, assim como um irmão, como estudei em Coimbra e aprendi a amar a Académica, como vivo em Valadares e estou todo orgulhoso que as meninas vão disputar a final da Taça de Portugal de futebol feminino, como estou delirante que o clube local de voleibol, o Atlântico da Madalena, tenha sido campeão nacional da segunda divisão e que o meu filho, pelo mesmo clube, vá disputar no próximo fim-de-semana o título nacional de infantis, onde provavelmente haverá um grande derby Atlântico-Benfica, pensei em escrever só isto, que no fundo é só o que me importa em qualquer actividade humana: ser "anti" o-que-quer-que-seja é ser descompensado emocional e mental - deixei de ter dúvidas sobre isso. Desejar o mal, não só a pessoas, mas a instituições, é precisar urgentemente de terapia. Usar cachecóis a dizer "Merda é Benfica" patológico. Não é por sermos um país pequeno e Lisboa ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer tripeiro, e o Porto ser, finalmente, uma belíssima cidade para qualquer alfacinha. É porque os limites da natureza humana estão também nestes detalhes. A minha alma transporta uma comoção pelo granito que eu sinto num certo sotaque largo de quem ama o clube local, mas que não está em lado nenhum de quem odeia, de quem se esquece que em todo o lado, na sua vida, está uma pessoa que tem outra paixão e outra cor e que não é isso que a define, mas a distância ao centro das coisas. Na Casa do Benfica em Luanda os portistas e os benfiquistas fizeram ontem a festa, choraram, voltaram a fazer a festa e no final abraçaram-se, como em minha casa, como em muitas casas. Quanto mais nos afastamos do centro do furacão, quase sempre urbano, mais se limpa o cenário e depuram as pessoas, mais ressalta o bom e esquece o mau, mais fica  o importante e evanesce o inútil. Os animais que agridem jornalistas e vão insultar o seu melhor adversário, o adversário sem o qual não haveria nem jogo nem vitória, e atiram pedras a quem faz o que sente ou deve, esses, não são nada, não são adeptos de nada, mas a vergonha das camisolas que abusivamente envergam. Eu, por causa deles, não me quero esquecer dos dias em que fui de mão dada com o meu pai para dentro dos pavilhões e dos estádios das antas, os dias em que, miúdo, me agarrei fascinado às pernas de um Freitas, de um Teixeira, de um Cubilhas, de um Fonseca, o dia em que os ouvi chorar porque aquele jogador chamado Pavão, o que tinha caído no campo aos treze minutos da jornada treze de um Dezembro aziago, tinha morrido, o dia em que me deram a camisola azul e branca para a defender, como se fosse a mesma do meu pai, como foi a mesma que, uns anos depois, o meu pai me ofereceu quando, já veterano e a jogar noutro clube, perdeu um set a zero com o mesmo FCP. E eu comecei a jogar voleibol com essa mesma camisola número três desse mesmo clube. Dentro de um pavilhão das antas contei vinte quedas, vinte, na minha bicicleta amarela, no dia em que o meu pai, antes do treino do FCP, me tirou as rodas. Tinha seis anos. E o brilho nos meus olhos era o mesmo quando o meu pai recebeu em casa uma chamada para treinar o FCP. E aquele homem careca meio curvado que ontem estava comovido, de pé, junto ao banco do FCP, logo a seguir ao golo do Kelvin, o médico Nelson Puga, que era jogador do meu pai em 1978 e quase se sentava no chão antes de cada serviço, curvado, de cócoras, paralelo à linha de fundo do court de voleibol, esticava o braço direito e fazia um arco sobre o braço esquerdo e a bola voava em elipse, era um gesto belo, belo, belo. Tão belo que nenhuma dessas feras criminosas que espumam contra os outros pode apagar a essência do que isto é, e que não se separa, nem nunca se separá, em Porto e Benfica. São memórias de luta, de músculo, de crescimento. Que a queda de Jesus sobre os joelhos deixou no coração de todos.

PG-M 2013
fonte da foto (jornal "A Bola")

2013-05-10

Memórias préstimas* de um advogado-sopeiro

    
     No dia das limpezas cá em casa sempre me levantei muito cedo. Normalmente era para sair antes que a empregada chegasse, mas quando convenci a minha mulher de que eu, sozinho, era mais do que competente para ela me pagar a mim em vez de à dona-não-sei-quantas, que ainda por cima não era fiscalmente justa e eu prometia entregar todo o meu soldo para benefício caseiro (dava para duas semanas de supermercado), fui contratado. A bem dizer, a minha senhora (coisa horrível de se chamar ao portento com quem me casei) já sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, não por causa da crise.
     (é que bem antes da crise os advogados, por razões boas - o simplex, que tanto simplificou a vida das pessoas e infernizou a de funcionários públicos dos registos e notariado empurrados para a selva sem formação e sem que muitos mecanismos tecnológicos tivessem sido atempadamente testados, mas eu não estou a criticar, nem pensar, então eu ia lá falar do inferno pioneiro que vivi com um garboso funcionário dos serviços centrais das conservatórias do registo automóvel, tal que ficámos amigos, como na tropa, vejam lá, mas eu não vou falar disso, bem antes da crise os advogados, por razões boas já tinham a sua própria crise de clientela;)
     (é que bem antes da crise os advogados, por razões más, como por exemplo a forma irresponsável como se aprovaram cursos de Direito - que eram moda - como cogumelos, e nem um político, nem um dirigente das ordens e associações profissionais, os teve no sítio, como dizem que têm, para fazer frente aos grupos económicos que os faziam proliferar, mas a bem dizer fizeram o mesmo no Estado com os professores e sem privados, o facto é que não temos gente de visão, essa é que é essa, diz o sopeiro;)
     (portanto, já na altura os avogados tinham a sua própria crise de clientela, principalmente os que possuem coluna vertebral e fazem seus os princípios na deontologia, que não são assim tantos, a bem dizer, diz o sopeiro, porque, com tantos inscritos, mais de trinta mil, a pressão de procura de estágio é de tal ordem que o mecanismo de que ninguém quer falar e que ninguém quer proteger, conhecido popularmente como de "escravatura de estagiários", está implementado e já ninguém fala disso, com efeito é fácil perceber que qualquer corajoso que fizesse vida a proteger estagiários abusados teria a sua vida rapidamente destruída pelos mais poderosos, e por isso o abuso está nas veias do sistema e já nem é mencionado, é que são tantos, que se desenmerdem ou então vão a caixas de supermercado;)
     E como a minha senhora sabia que essa era uma despesa que não podíamos ter, aceitou o facto de o marido, advogado e por acaso escritor, ser competente nas limpezas.
     (levanto-me hora e meia mais cedo, porque demoro isso; às vezes duas horas. A primeira coisa que disse à minha semhora foi "vês como ela não precisava de quatro horas a sete e meio à hora para limpar a casa?"; com efeito, a minha técnica de aspirar tapetes é perfeita e já está patenteada; a bem dizer, aspiro a casa duas vezes, primeiro com a pontinha do aspirador, que deglute as pequenas poeiras, depois com o braço maior, e sou também muito eficaz na limpeza do pó, e vou a mais sítios que a dona-não-sei-quantas-que-era-fiscalmente-injusta, quer dizer, não descontava, não é?)
     Mas eu estava a falar disto a propósito de quê? Ah, já sei. Era só para dizer que enquanto ando a limpar a casa ponho os auscultadores do meu filho, uns xpto com cancelamento de ruido externo (coisa perigoso, ó-ó) e uns baixos a bombar, que na verdade me deixam num estado de arrebatamento artístico difícil de explicar, sabem quando estão isolados em boa música e o mundo lá fora (com o ruído cancelado) não tem peso nenhum, e vocês desesperados para partilhar aquilo com alguém, mas quem?, como dizer isto?, como inefar* o inefável?, e eu até interrompo a lida da casa para ir ao facebook, para responder a uns mails de clientes e colegas, para fazer uns acertos em textos para a editora, ver os filmes que estreiam, isto enquanto aspiro aquele tapete, confessso, aquilo fica perfeito, perfeito, as migalhas que o miúdo larga durante a semana e nem uma, nem uma, confesso, estou a sorver migalhas com a pontinha do aspirador e tudo é perfeito, seja com os Daft Punk, com o Jake Bugg, com o Tom Odell, com a Nena, com a Lhasa de Sela, Mozart, Enaudio, Radiohead, R.E.M., Solomon Burke, não importa, com aqueles auscultadores eu chego ao céu, sabem como é?, e foi até por causa de um estado de graça desses durante a limpeza do pó que eu escrevi na cabeça aquele  poema em italiano, com que ora concluo, porque tenho de ir fazer o almoço, mas em português - este texto é sobre música e poesia, mais nada -, porque certamente já peceberam a ideia, eu quero é cantigas (onde abaixo diz "criada" não é a criada, sou eu, vale?):

Eu sou o quarto onde a palavra sangra
Eu sou uma rima sobre a cama/ Eu sou a frase dentro do
armário
E quando a criada vem
limpar
lança poemas pela janela
E eu volto a casa e vejo

versos

Nos sapatos das pessoas

     PG-M 2013
     * palavras inventadas, obviamente, porque posso, como sopeiro
     fonte da foto

2013-05-05

Oprheu e a mãe branca (ou quaquer outro nome da luz, mesmo que seja preta)


Vais ver, mãe, que vai ser um arqueólogo a descobrir que o Orpheu do avô é toda a nossa existência em demanda antes de tempo. Já te perguntaste sobre a obsessão? Com tanto para descobrir em Paris, arriscando um encontro com Pessoa, Sá Carneiro, Picasso, Souza Cardoso, Modigliani, todos tanto, porque é que o avô se fechou naquela cave bafienta no setenta e tal da Rue Vercin e modelou aquele gigante como se estivesse a modelar a própria carne e a de todos os seus filhos? Aquele olhar ausente, tão subido que parecia ter dado a volta desde o inferno, pelo céu que lhe é adjunto. Já te sentaste na escadaria do pavilhão meio esquecido do outro lado do jardim das Belas Artes do Porto e olhaste para o Orpheu do avô? Não? Faz isso e há uma coisa que te vai parecer evidente: o avô deu à estátua todo o nosso sofrimento. Já não tens de o suster em ti, só o medo, um medo breve, e depois deixa que o Orpheu te ampare os golpes e te sorva as lágrimas e que enquanto beba te deixe os sorrisos que lhe foram vedados. Não vês? Ficou tudo lá, o passado, o presente e o futuro de todas as nossas dores. Por isso te deves deixar elevada, mãe, e branca (ou qualquer  outro nome da luz, mesmo que seja preta).

PG-M 2013