2013-04-20

Eu, tu, os nosso filhos, aqui, agora (Lazhar)

Depois do filme "A Caça" nos ter virado a pele do avesso quanto ao nosso tempo e ao nosso relacionamento com a inocência (em todos os sentidos), não satisfeitos, os arautos dourados do cinema trazem-nos outro momento que nos confronta dolorosamente com o nosso tempo, as nossas pessoas, as nossas coisas em "Monsieur Lazhar". Não por acaso ganhou nos festivais de Toronto e Locarno, e teve o prémio da crítica no Sundance, do público no Cph, vários Genie e Jutra awards, o do realizador em Palm Springs, do júri e do público no RiverRun, argumento em Sidney e Valaldollid, para não falar nos inúmeros prémios individuais para os actores - não esquecer também que era um dos cinco nomeados este ano para o óscar do melhor filme estrangeiro. Vejam como está aqui o mundo. Tudo numa obra simples, que não precisa de problematizar para descarnar - e o faz com inteligência (como tudo devia ser). Já lá vamos. Numa escola preparatória de Montréal - o filme baseia-se numa peça, portanto é o tal olhar ao espelho - há um momento de excepção na vida de todos, que afinal não é excepção nenhuma porque, nas vidas todas juntas também as excepções de juntam numa regra de sofrimento: é, afinal, a condição humana. O que impressiona neste filme é o trabalho dos actores infantis, tal como já acontecia no filme dinamarquês. Mas aqui são mais. A cena final é do melhor que o cinema (ou o teatro) podem ter para oferecer a alguém e ninguém - ninguém mesmo - pode ficar imune. Ou impune. Atenção especial a Sophie Nélisse - na foto - (a mais premiada), Émilien Néron e Marie-Ève Beauregard nas personagens de Alice (a favorita de todos nós), Simon e Marie-Frédérique, mas não só. Enfim: vão ver. É obrigatório para que a inquietação que trazemos no peito se ligue a todas as inquietações do mundo e nos permita mais lucidez da próxima vez que se nos deparar uma decisão difícil. Nota intratextual: Aqui no blogue vamos ao cinema mais do que uma vez por semana, mas não escrevemos sobre cinema uma vez por semana. Só cá aparecem os (raros) filmes - uma dezena por ano, às vezes menos - cuja urgência nos impele a dizer ao próximo, de forma nada escolástica: olha, se queres desatar um nó, captar o sentido das coisas, como na grande literatura, como na grande arte, está aqui, senta-te, fecha-te no escuro, fica duas horas a ver isto, afinal podes nunca ter esta conversa, podes nunca chegar lá por ti. Daí o plural majestático: eu, tu, os nossos filhos, aqui, agora, somos nós. Monsieur Lazhar somos nós.

PG-M 2013

2013-04-03

Um velho muito velho tem dentro de si tudo o que é, não a memória disso

Há um velho muito velho que se chama Éton e caminha na curva da morte, a curva do vácuo de Clarice para Macabéa, e ele caminha com todos os Étons concêntricos, desde a ideia de Deucalião, seu pai, desde o primeiro corpo em que o olhar primordial era igual ao que ora leva posto, o olhar que todos nós, velhos muito velhos, vestiremos para pedir aos nossos filhos ou a ninguém ou à cuidadora do lar o último socorro, o socorro que finalmente estabelecerá no nosso íntimo que sempre fomos apenas um infante ou nada, ali, no pó a que regressamos, e que as mulheres, todas as mulheres cada vez mais jovens a deixarem de ser nossas, todas as mulheres em fuga como água a escorrer entre os dedos deviam saber que só os nosso olhos contam e que as almas claras, fundas, se contorcem num corpo velho como uma folha de papel numa fogueira e a cápsula da existência mirra sob cada paixão tornada impossível. E sobre Éton se falará, antes que morra.

Mas vai falar-se muito mais simples do que no precedente parágrafo, que é mais presciente do que imprecatado, incasto, para que se não tolde por palavras os próprios batimentos das frases por elas feitas.

Vai o velho Éton na última estrada, na linha do horizonte um mar cor de sangue, e tem dentro de si o sábio Éton que ainda tem forças para de braços estendidos segurar o primeiro bisneto, que tem dentro de si o maduro Éton, que vigoroso faz subir no ar o primeiro neto, que tem dentro de si o vigoroso Éton, que explodindo de adrenalina acolhe num colo fechado o filho Telémaco, que tem dentro de si o jovem Ulisses, que suave acolhe num colo fechado a sua mulher Penélope, que tem dentro de si o miúdo Éton, que correrá as pradarias como cavalo de Hélios, que correrá as pradarias como cavalo de Pallas, que tem dentro de si o espaço sidéreo e correrá as estrelas como cavalo de Plutão, que tem dentro de si a fome de Erisícton, saciada pelo abutre, carrasco de Prometeu.

O velho, qualquer velho, tem dentro de si tudo o que é, não a memória disso.

Por isso se ajoelha Éton, mesmo antes de morrer, quando por si passa a última jovem mulher e Éton pressente a última jovem paixão, porque o velho Éton tem dentro de si o vigoroso Éton que corria todas as musas de todas as ilhas e não o espelho que o reduz, que é o mesmo dos olhos delas, quando começa a entardecer para nós, que é o mesmo dos olhos deles, quando começa a entardecer para elas, que é o próprio estigma da invisibilidade, como o sente qualquer corpo que perdeu o brilho dos deuses.

E quando a jovem, que surpreendetemente o vê, ainda que a agonizar - e como estão tantos jovens atentos à agonia dos velhos, invisíveis quando a fatalidade ainda é remota, agonia que sentem como a iminência da liberdade e a actualidade do poder - 

quando a jovem, dizíamos, se baixa para Éton e lhe dá, não o beijo, mas a caridade da pergunta
"O que tens, velhinho?", assim, no diminuto da palavra que lhe apouca a dignidade,

Éton cai para a frente e morre.

E morre, porque tem dentro de si tudo o que é, não a memória disso, no vigor da juventude.

PG-M 2013