Houve
um momento na noite em que o pai deixou que na casa uma urgência
escalasse as suas próprias paredes.
A
urgência que está sempre lá, o mal do amor incondicional, um
sufoco indelével e pardo, a síncope permanente. A todo o momento
deixa de importar o próprio corpo, o egoísmo intrínseco – em si
uma desfocagem da essência – e tudo fica claro, nítido, os
corredores da casa mesmo às escuras, e o amor incondicional
corporiza-se como objecto, quase sempre os cabelos dela, quase sempre
os cabelos dele.
Os
delas ficam mais bonitos com o tempo.
Quando
o pai entra tarde na cama, se se demorou pela sala, ela está sempre,
quase sempre, iluminada. Não é a luz da televisão. Quando se
levanta cedo, por desassossego ou dever, a mesma coisa. E não é
diferente se fica acordado pela noite ao lado dela, porque um livro
ou um filme ou uma série o arrebataram e o quarto fica subitamente
dentro de uma noz, o universo fica maior do que o universo, a
pequenez agiganta-se e no entanto o mundo inteiro ali, em poucos
metros quadrados, o escritor, o pintor, o realizador, o actor, o
cantor, explicaram pressurosamente o sentido da vida, e basta um
segundo, às vezes nem isso, e um brilho, que pode ser dos olhos ou
da própria consciência, refulge no plano visível como uma moeda de
prata no deserto.
Quando
sente essa urgência o pai tem apenas duas formas de reagir.
Ficar
na cama e pousar a mão sobre a cabeça dela e deixar subir pela
margem do braço uma espécie de sangue paralelo aos corpos, ainda o
amor incondicional, o cabelo tem uma textura própria, nunca teve
outra cor que não as cores dela, por pouco tempo apenas o preto,
mais tarde o castanho escuro com laivos de vermelho, depois as
brancas suaves que lhe ocuparam o pedestal desde os vinte anos, foi a
certa altura um cabelo questionado socialmente, põe-te mais velha,
devias pintar, mas à força de tanta estima, de tanto amor deles,
que de cada vez que a encontram lhe puxam a cabeça para o peito e a
sossegam com carícias, o que pareciam brancas espessas, invasoras,
tornou-se, com o vagar da vida e a têmpera da felicidade – que na
vida pode ser tão áspera e sublime como a desventura na arte – um
só conjunto harmonioso e macio onde se a vai buscar inteira.
Quando
sente essa urgência o pai tem esta forma de reagir, ficar na cama e
pousar a mão sobre a cabeça dela e escutar a respiração dele no
outro quarto e então deitar-se, fincar o nariz na almofada e cingir
os lábios com força como um sorriso que se trava porque não se
pode consentir que o corpo siga sempre o curso do rio que traz
dentro, nenhum dique suporta toda a dádiva, o pai tem essa forma de
reagir ou a outra:
levantar-se e ver o amor incondicional corporizar-se nos cabelos dele enquanto dorme, os cabelos que foram sempre os mesmos desde o berço, como se o toque do pai pudesse ser traduzido na fórmula científica de uma reacção química, a pele dos dedos mais um fio de cabelo do filho é igual ao batimento cardíaco de ambos sintetizado pela respiração e pelo olhar e talvez – outra vez – pela boca. Ele nasceu cheio de cabelo, depois perdeu-o, depois reganhou-o, esteve num pequeno berço que fora do avô, depois numa cama com grades, depois numa cama que daria para chegar a adulto, e agora, com as medidas a ultrapassar largamente as da mãe, tem exactamente o mesmo cabelo, que o pai toca de forma delicada mas dolorosa, porque sabe que, se no casal há um movimento de fora para dentro, e pode-se sempre tentar entrar, na paternidade tudo é de dentro para fora, ele nasce parte e já parte, estar tão dentro e fora é insuportável, agora ele dorme num beliche alto mas não importa que tenha um corpo de homem, se na noite o pai lhe toca os cabelos o amor incondicional vira sólido. Em sublimação.
Às
vezes, há um momento na noite em que o pai deixa que na casa uma
urgência escale as suas próprias paredes. Não raro, perante esta
urgência que está sempre lá, o pai senta-se na sala a ver a sua
imagem reflectida na televisão apagada e o tempo não se estende,
suspende-se mas passa depressa, não há pensamentos, não há
sentimentos, é só o corpo a voltar ao sítio, às vezes adormece e
no outro dia, felizmente, esquece-se de quanto os ama, ou,
felizmente, lembra-se de quanto os ama.
PG-M
2013
