imprópria, quer dizer, essa amiga e eu estávamos na prática a viver as nossas vidas
com os amigos e os filhos e as mulheres e os homens em volta, estávamos na prática
com uma rotina de tédio de fim-de-semana e na verdade a
rede social em que subíamos e descíamos as primeiras escadas sendo
rigorosamente nada um ao outro era em si o núcleo desse tédio, eu disse
visceral, ela disse que era uma palavra odiosa, eu disse que a palavra nada
tinha de odioso, talvez ela quisesse dizer a ideia para que remetia, vísceras,
mas que mesmo assim frequenta a minha própria expressão, não poucas vezes
digo
estou de vísceras
na verdade não fazia isto há muito tempo, escrever para remendar o tempo e o espaço,
foram uns três meses de labaredas e nem por uma vez nesses três meses eu mergulhei em
mim próprio e fiz piscinas rompendo o líquido amniótico, como faço desde a barriga da
mãe, na verdade faço-o desde a barriga da avó, na verdade faço-o desde o princípio dos
tempos, como aliás fazemos todos, era a matéria negra e depois era a lava e depois,
subitamente,
o mar,
é mais ou menos um cliché que o mar tem praticamente a mesma constituição
química do líquido claro que envolve o feto durante a gestação, é uma balada,
toda a gravidez é uma balada com pelo menos uma alma em suspenso,
já ninguém discute, verdadeiramente, a dimensão etiológica dessa alma ou sequer a sua
existência em sangue, voltemos acima ou atrás, estamos de vísceras, somos vísceras desde
fetos, sejamos ou não viáveis, viremos bebés rosados ou abortos, somos isso, não tem mal
nenhum ser sensivelmente-violento num poema, ainda agora o Herberto dizia
coisas maravilhosas numa lira entre dois cornos,
o Herberto, a bem dizer, é uma rima fácil,
provavelmente vou ter de me inibir de usar o nome e alguns versos dele como me inibo
de fumar, embora eu goste muito de fumar e até esteja convicto de que um ou dois cigarros
não fazem mal e não me levariam de volta ao vício, a verdade é que os casos documentados
dos outros dizem que as excepções voltaram a ser regra,
e é por isso que, não havendo nada mais fácil do que impressionar citando Herberto ou mesmo
manietando-o em metaliteratura, vou ter de te dizer, Rocha, que vou deixar de usar Herberto com
esta transparência e, vá, já mencionei que tu, com a tua gargalhada que valia tanto quando
estavas vivo como vale agora que estás morto e me fazes uma falta do caralho, ouve,
não é uma falta do dia a dia, até porque éramos tão diferentes que não queríamos saber dos nossos dias, só de vez em quando soava o alerta e tu vinhas ter comigo ou eu ia ter contigo ou nos encontrávamos no El Corte Inglês de Gaia, onde chorámos de parte a parte,
ou isso ou em frente ao mar, mas aí não vou dizer onde, porque
eu cometi o erro de levar lá um fdp e agora aquilo está inquinado e, embora eu goste do cheiro
dos fdps mais molezinhos e até da textura das suéteres de malha muito grossas, tricotadas pelas avós santas desses diabos, que cheiram a perfume misturado com vida e gás metano, porque raramente são lavadas na máquina e à mão tem de se saber porque só para torcer cada uma é preciso uma tarde, ainda assim eu vou lá de vez em quando, sem que uma rotina me denuncie, mas tu dizias-me versos do Herberto com aquele enlevo de menino tripeiro, talvez porque precisasses que eu te aceitasse e soubesses que eu tinha a mania de que não era um best-seller e tu, coitado, eras
o poema já vai muito comprido
eu quero que o poema se foda
até porque chamar poema a isto
fará voltar nos túmulos os membros
vivos que são mesmo escritores,
e quando digo membros digo os
membros sexuais dos membros,
na verdade, se há algo de vibrante
nesses génios são os membros
sexuais, porque realmente muitos
festivais literários com pernoita e
sem controlo são um desafio à
sanidade e à ordem conjugal,
fazem eles bem, como sempre
fizeram os coelhos, eu também
queria, mas não sou capaz porque
sou um neovirgem imaturo
que se apaixona por tudo
o que mexe e tem forma
humana feminina
e sem querer estou
velho e já não
me enxergo
oh pá, oh páááááááá, na verdade não posso acabar o poema sem
trazer para dentro dele isto da natureza tripeira e da classe pura,
que desconsolado fico quando vejo nos olhos dela o brilho do orgulho
e ao mesmo tempo como ela gostava de me ver refinar como um
cavalheiro distinto que dispensasse absolutamente o calão para
vincar uma certa identidade, mas sempre vos digo que em momento
algum o menino inseguro e trágico que eu sempre fui sentiu que o calão
tripeiro fosse uma forma fácil de se afirmar ou uma bandeira
prostituta de uma certa forma de se ser livre
que virou popular no primeiro vinco do terceiro
milénio, eu acho que, como o Bocage,
devemos e podemos
(falo dos tripeiros)
devemos e podemos
não ter limites entre nós
mas ser distintos perante
mouros ou celtas
e sempre com a devida vénia
quem tem classe tem classe
na verdade, eu não queria escrever um poema,
mas este texto não era este texto sem respiração espacial,
então formo-o na cabeça e deformo-o na tela, como
qualquer pintor incompetente,
o que eu precisava mesmo era de ouvir outra vez os Kitty, Daisy and Lewis e sonhar
que ainda os vejo em Portugal, sendo que pressinto que serei acometido por um ou
dois desmaios e falarei, antes de desfalecer, como um tripeiro,
com os olhos molhados e os lábios mordidos e chupões no pescoço e
hálito a minis dizendo em todos os tons e densidades de todas as fases
de todos os sistemas termodinâmicos em equilíbrio nos sistemas fechados,
ou seja,
dizendo ortobárico e muito baixinho
tão bons!, tão bons!, grandessíssimos filhos
de uma grande puta, tão bons!, na verdade
eu não queria ter escrito nada disto
o leitor saiba que, cada vez que eu, PG-M,
quero voltar ao mundo como autor depois
de uma fase incicatrizável e sem encíclica
para meu governo, ou seja, cada vez que
eu me quero salvar
escrevo assim, com a playlist nos ouvidos
e sem dó
só
de vísceras
e sinfonia
os meus lábios queimados, o meu corpo ultrapassado e o fim da
partícula-Herberto-funcional
PG-M 2999
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