2021-11-05

O ÓCIO CRIATIVO E A LABORIOSA MEDIOCRIDADE

É preciso despoluir uma baía.

Qualquer Presidente de Câmara ficaria rapidamente inundado de orçamentos de dezenas de milhões de Euros.

Jaime Lerner convocou os pescadores da baía de Curitiba, e disse-lhes que lhes comprava o lixo que eles lá recolhessem.

Em dias de má pescaria, os pescadores pescavam lixo iam sobrevivendo.

Curutiba gastou infinitamente menos com a despoluição da baía, e ganhou um processo de despoluição permanente. Os pescadores agradeceram o refúgio dos dias de chuva.

Prometi no "post" sobre o Dr. Zé, o cego, que falaria um dia de Jaime Lerner, um homem que, para mim, se tornou uma referência. Daquelas que ficam para a vida. E como acredito que percebê-lo, percebê-lo a sério, faz de quem o consegue melhor pessoa, vou tentando alargar-lhe o número de admiradores.

Jaime Lerner é arquitecto, engenheiro, político, ex-prefeito de Curitiba (3 mandatos milagrosos), ex-governador do Paraná e actual presidente da União Internacional dos Arquitectos.

Ora, não sendo eu Arquitecto, sempre me será mais fácil vender a sumidade do homem.

Outro exemplo:

Era preciso arranjar maneira de estacionar os autocarros (ele revolucionou o sistema de transportes da sua cidade) em tempo recorde e de forma precisa.

Das várias propostas apresentadas, uma houve que preconizava o comando electrónico do autocarro nos últimos 300 metros. Custava mais do que toda a frota.

Então, um colaborador de Jaime Lerner perguntou a um condutor se ele conseguia estacionar o autocarro da forma que se pretendia. Ele disse que sim. Fez um risco no vidro da janela do veículo, e outro risco num determinado ponto da paragem. E estacionou na perfeição. E foi esse o sistema eleito, que ainda subsiste.

Ele, Jaime Lerner, diz que o mundo anda nesta permanente luta: entre o ócio criativo e a laboriosa mediocridade. É a sua postura a favor do ócio criativo que o define como referência. Os exemplos seriam intermináveis. Mas este homem faz-me concluir, com uma razoável dose de certeza, que, feito o esforço de identificação dos laboriosos medíocres, todos damos um salto qualitativo - não na arquitectura, não no direito, mas na forma como nos relacionamos com o mundo e uns com os outros.

Visitei nestas minhas férias, feliz e infelizmente a terminar (escrevo-vos da tal varanda sobre o mar, a metade mais saborosa das minhas férias - não é Sophia que diz: "Quando morrer, voltarei para resgatar os momentos que não vivi junto ao mar"?), a linha de costa espanhola de Huelva (Isla Cristina, Canela e Islantilla).Na primeira, o caos urbanístico era de tal forma deprimente, que fiquei a gostar mais do nosso Algarve. E, nas praias conspurcadas de Islantilla, só mesmo a temperatura da água nos fica a ganhar. Claro que indaguei como é possível os espanhóis, com quem tudo temos a aprender em matéria de turismo, terem deixado chegar a Isla Cristina ao que chegou. É uma espécie de Ria Formosa vilipendiada. Não sei a resposta. Sabê-la-ia no país em que vivo.

Mas o mais fantástico em Jaime Lerner é que, perante uma situação destas, que tem tudo de dado adquirido, não baixaria os braços.

Curitiba não nasceu, mas nasceu, quando ele ascendeu à prefeitura, com um suporte político frágil e instável. Mas o que ficou feito em Curitiba, sem recursos financeiros, mas com muita imaginação, é uma lição para todo o mundo.

Espanto-me todos os dias com Jaime Lerner.

Dos dois livros que tem no prelo, só me considero capaz de abordar o "Acupunctura Urbana", pelo qual espero ansiosamente.

"A qualidade de uma cidade, mede-se pela facilidade com que uma criança a desenha."

"Não há nada urbanisticamente mais perfeito do que a rua tradicional."

"Trabalho e residência devem aproximar-se."

"De nada valem os grandes projectos, se as pessoas os não percebem."

Tudo ideias de Jaime Lerner.

Gostava de o ter no meu país, mais que o seu conterrâneo Scolari.

Mas a laboriosa mediocridade diz-nos sempre o que é melhor para o país.

Na Expo 98, ninguém atirava papéis para o chão. Mas em Outubro de 98, todos voltáramos já ao nosso papelinho e à nossa cuspidela no mesmíssimo chão.

No IP5, com o início da tolerância zero, ninguém passava dos 90, e os acidentes quase desapareceram. Identificados os pontos de controlo, voltaram os nossos assassinos de estimação. 90-200-90-200-0. Menos um.

Estamos, pois, num país que se porta bem pela frente, e sempre mal por trás. Um país de terceiro mundo, que bem fazia em assumir-se como tal, e voltar aos bancos de escola para aprender a ser gente..

Um país onde se esquece o que se deve ensinar nas Escolas. Em que o conhecimento elegível é o que o "stôr" "deu" ou "não deu".

E se alguém realmente conversasse com as crianças, se as ouvisse, perceberia isso rapidamente.

Civismo? O que é isso?

O difícil é a simplicidade - Jaime Lerner personifica-a. Os laboriosos medíocres riem-se sempre. Gloriosamente.

Por obséquio, fiquem todos atentos, doravante, a este nome.

Jaime Lerner é uma lição imensa.

PEDRO GUILHERME-MOREIRA, 2003-07-17