2010-04-07

Por Portugal 24 anos depois

Hoje fui treinar voleibol com quarentões e acabei inesperadamente a jogar contra a selecção nacional de cadetes femininos, e estou com o coração apertadinho porque me lembrei de que foi precisamente há 24 anos, com a mesma idade e nas férias da Páscoa, que vesti aquela mesma camisola naquele mesmo sítio num estágio de Portugal. E lembro-me das possibilidades que tinha nos olhos e que revi naquelas meninas.

Foi assim o ano passado, e poucos se aperceberam.
Voltei a jogar voleibol depois de 20 anos parado. E o meu corpo começou a lembrar-se das formas geométricas daquele jogo fantástico, e eu perguntei a mim próprio como fora possível estar tanto tempo afastado da quadra, das zonas, das redes, das varetas, dos blocos, dos amortis, dos mergulhos, das curtas, das tensas, de tudo.
Com dezassete anos tinha treinos em Espinho às 10 da noite. Regressava a casa no comboio da meia-noite e meia e só jantava à uma da manhã.. Estava diminuído por sucessivas lesões e cansado desse ritmo. Quando fui estudar para Coimbra, deixei tudo, aliviado.
A minha carreira tinha acabado um ano antes, precisamente nesse estágio da selecção nacional de 1986. Depois de cumprir o sonho de ser convocado pelo falecido Sálvio Nora, parti o pé numa brincadeira estúpida com o meu próprio irmão e nunca mais voltei a ser um atleta completo. Tive sucessivas rupturas de ligamentos. Passava mais tempo de muletas do que a jogar.

Esse estágio da selecção nacional foi, apesar de tudo, marcante na minha formação como homem e desportista. Partilhar esses breves dias de "tropa" com adversários que defrontava desde pequenino, numa altura em que o Voleibol era amadorismo no seu estado mais puro, deu-me amigos a cujas carreiras nunca mais fui indiferente.

Homens sábios dizem que o que distingue o voleibol de outros desportos é que, se for alcançado o objectivo máximo, que é manter a bola a no ar, existe uma comunhão absoluta entre os dois lados do campo. É verdade: o primeiro objectivo do voleibol é manter a "bola a voar", e só depois colocá-la dentro do campo adversário. Quando a bola voa durante longos minutos sem cair (o "rally") o jogo atinge a sua beleza máxima. E há verdadeira comunhão entre adversários.

Recordo-me de outras vezes em que estas meninas da selecção nacional de cadetes se cruzaram connosco naquele pavilhão, e do (nosso) secreto desejo de partilhar outra vez o campo com pessoas com um mundo de possibilidades pela frente.
Hoje foi o dia.

Há 24 anos atrás, envergando uma camisola parecida que dizia nas costas "Portugal Voleibol 1988" (era esse europeu que estávamos a preparar) não tive o privilégio de defrontar antigos jogadores. Não sei se estas meninas de hoje valorizaram a oportunidade. Eu senti-me transparente. As nossas adversárias desta noite, concentradas e empenhadas nas suas carreiras e no seu potencial, não nos "viram", realmente, do lado de lá. Mas eu vi-as a elas. Vi o seu olhar límpido, puro, cheio de possibilidades, e estar ali a participar no seu crescimento de uma forma tão plana, tão igual, com os corpos a mergulhar ao encontro da mesma bola, o suor em atrito com o chão, as mãos no ar, o balanço dos braços, afinal os vinte e quatro anos que para mim passaram num repente não significarem abismos ou fronteiras, e nós todos, sem excepção, estávamos num estado de graça que parecia um qualquer delírio comatoso de homens que não sabiam exactamente o que fazer.

A verdade é que nos sentíamos tão privilegiados que ninguém soube desempenhar cabalmente o seu papel, e isso acabou por abonar em prol de um inesperado equilíbrio que nos trouxe a humildade que as pessoas de quinze anos, sei-o aqui como nas maravilhosas aulas de Direito que dou nas escolas a rapazes e raparigas da mesma idade, convocam para nós.

Porque eles têm a vida pela frente, uma enorme e difícil interrogação que já não nos atormenta, mas devia.

Não que tenhamos perdido o jogo, mas porque essa possibilidade era real, foi com humildade e admiração por aquela forma pura de se ser, pelo espelho de um passado que me parece tão perto e tão breve, que valeu cada set, cada ponto, cada momento.

Obrigado, meninas.

Pedro Guilherme-Moreira

PS: Deixo uma lista aproximada das nossas adversárias, para que vejam com o que lidamos hoje, entre os 15 e os 17 anos:). Uma delas tem mais um centímetro do que eu:).


Ana Monteiro - 29.07.93 - 176 - SC Arcozelo / Eduarda Duarte - 28.07.93 - 186 - Leixões SC / Mariana Filipe 14.02.93 - 174 SC Braga / Mafalda Silva 7.05.92  - 185 - Leixões SC / Joana Polido - 2.08.92 - 194 - GD Sesimbra / Joana Silva - 7.03.93 - 184 - Leixões SC / Marta Hurst - 7.07.92 - 182 - CA Trofa / Joana Neto - 4.01.93 - 175 - Leixões SC / Carina Moura - 17.10.93 - 184 - Atlético VC / Elsa Moreira - 5.0592 - 177 - Atlético VC / Patrícia Neves - 14.06.93 - 176 - Col. Calvão / Mariana Meireles - 29.02.92 - 173 - Leixões SC / Treinador Principal: Fernando Luís / Tr. Adjunto: Filipe Lacerda