(não comece pelo meio: anterior aqui)
VI - O ÚLTIMO NATAL
Entre o segundo e o último natal, Otnas, Oinotna e Narce
juntaram-se às carrinhas de apoio e foi só
o que passaram a fazer às vésperas,
e o que pensou fazer Airf,
em vez de em casa cultivar a solidão e o
desprezo por todos os que trilham a linha
média das coisas
Então Airf saiu à rua pela primeira vez em três
anos, e dirigiu-se ao bairro sem casa de onde
saíra Narce, e o que viu foi muito estranho,
um grande cartaz que se replicava pelos
lugares onde costumavam comer e dormir
as pessoas sem casa, e dizia assim
"hoje somos príncipes sob telha no Palácio X"
e dizia o nome do palácio,
onde, por acaso, Airf costumava ir a exposições
e conferências e a um ou outro jantar formal
da companhia que a empregava,
e caminhou para lá, abraçando-se a si própria
para afastar o frio
mas não o azedo na boca nem
a incurável tristeza
À porta do Palácio X paravam carruagens
e um mordomo encartado anunciava
os títulos e as pessoas que saíam e
entravam para o baile de gala real
como se lia na faixa de vinil gigante
que tapava a fachada,
"I Baile de Gala Real de Natal",
e não dizia em lado nenhum
que era das pessoas sem casa,
mas era; a Airf falhava uma
certa sensibilidade, e então
deixou que a raiva tomasse
conta de um lado de si que ela
pensava ser um modelo de altruísmo,
mas não passava de um espelho liminar
onde todos os teóricos vivem, como a
Alice num país sem maravilhas,
onde a música é sempre a menos ouvida
e o livro sempre o menos lido
e as pessoas sempre as menos parecidas
com as outras
Primeiro Airf tentou entrar no Palácio X
e foi vedada pela segurança
Depois Airf dirigiu-se à primeira princesa
e tentou arrancar-lhe a peruca
e foi vedada pelo príncipe,
a saber, um homem obeso,
que ouve tudo o que Airf diz
quando lhes tenta destruir
o sonho, e lhe agarra o pulso e diz
"Menina,
ainda ontem eu era apenas
um homem obeso
que ouve tudo o que os outros dizem,tinha apenas uma camisa azul às riscas com os botões
rebentados em baixo e a barriga à mostra
apesar do frio, e cedia sempre refeição
aos que chegavam de novo e dormia
na soleira do Banco Z até o pessoal me
enxotar às sete da manhã, mas, sabe,
nas nossas soleiras não se conversa
sonha-se, e eu,
que me chamo Osso,
deixei-me sonhar e hoje vou de
white tie cortado à medida e trago ao baile
de gala real a princesa Emof, que até ontem
era só uma mulher magra com uma tristeza
incurável e vários trapos
sofisticados a sorver
a sopa ruidosamente
(mas sabe-lhe bem comer a sopa assim)
e hoje vem formal, de brinco de camafeu
e clutch
Airf, envergonhada,
deixa-se cair na escadaria e
Emof passa por cima, cobrindo-lhe
o corpo e o rosto com cetim
azul
Narce, o mordomo,
aponta para um homem cego
com óculos escuros azuis
marca Ray-Ban,
trajado de gala, nomeadamente
casaca em vermelho veneziano com paramentos
brancos do regimento de infantaria de sua
majestade, mas com um rádio de pilhas
nas mãos, que lhe pergunta
- Há rabanadas no baile?
(certamente, sua senhoria! - e faz-lhe
uma vénia) e o cego
Zedicul ampara o seu par e diz- hoje não há notícias,
mas pela mão traz
a mulher sem dentes e cabelo vermelho
que ganhara uns dentes novos
num patrocinador
e foi à televisão mostrar o antes e o depois
e diz discretamente ao ouvido de Narce
- adoro cabeças de bacalhau
(tê-las-á, Milady, tê-las-á),
e também gosto mais
da minha saia em patchworkassim alinhavada: um quadrado com um menino sentado à carteira da escola cose-se a um quadrado com dois meninos de pé à porta da escola e este cose-se a um quadrado com um menino sentado à carteira da escola e faz o padrão que se repetiu pelas colchas em certos anos de certas modas,
mas chamo-me Arugrama e hoje sou rainha
e trajo uma estilista conhecida
cujo nome direi a todo o
repórter, vestido longo salmão
com brilhos e pedrarias, luvas e
sapatos de salto alto forrado a tecido
cujo andar treinei com as noivas de
santo antónio, colar de pérolas
sonhei a vida toda com
este colar de pérolas
e assim por diante entrarão no baile de gala trinta
pares de príncipes e princesas ou reis e rainhas
Airf quis testemunhar a beleza,
mas o mordomo não tinha ordens e
e Otnas achou-a
apagada, mesmo cinzenta,
para abrir a excepção
Oinotna, contudo, não conseguira
convencer Ana a vir e veio ele
à escadaria tomar Airf
e acender-lhe os olhos,
habilidade que tomara
de uma menina de cadeia
no segundo natal
saiu no pasquim de vinte e seis,
porque o baile só terminou depois do
fecho da edição de natal, que no I Baile Real
de Natal se dançou
toda a noite e com propriedade
música de reis
nomeadamente todos os clichés de baile que Airf
teria condenado horas antes, mas era vê-la
evoluindo no soalho imperial do baile real
conduzida por Oinotna ao Danúbio Azul
na verdade, Airf,
estava tão macilenta que
quase não tocava no chão
ou seria elegante, na verdade
não levara vestido apropriado
e era a mais pobre da festa,
e eis que Arugrama e Emof lhe cederam
duas peças de estilo que a cobriram
para sobreviver, depois de Strauss,
à Valsa do Imperador, de Rieu,
que fez todos rir e crescer e no fim
eram mesmo príncipes e princesas,
reis e rainhas,
até Airf,
a quem Oinotna contou que,
pela primeira vez em três anos,
o peito tinha menos dor e não
sentia os círculos das pálpebras
como cursos agudos de sangue
abertos a navalha
VII - O ÚLTIMO FIM
Deve o conto abrir, porque é invertido, e não
fechar, como o texto clássico. Abrir como a vida,
que às vezes é como nos contos, fechada e
resolvida, e outras não é;
Nem Osso, nem Emof, nem Zedicul, nem Arugrama,
saíram do bairro sem casa,
mas nas soleiras deles continua a sonhar-se mais
e a conversar menos,
até porque casarão aos pares,
eles com elas,
e os bailes reais do bairro sem casa
se repetirão pelas eras;
Narce, sim, saiu, mas ainda não tem emprego,
tem esperança, e Lós também,
foram morar para o topo
junto ao chão,
porque Aleb lhe explicou
porquê;
Oinotna já não sente culpa por expressar
as emoções positivas, nem obrigação de
cultivar as negativas, mas,
por muito que isso fosse querido,
não podemos mentir no fim deste conto que se abre
ao infinito,
Ana, cujo nome está ao contrário,
abandonou Oinotna e não esteve em mais lado nenhum
deste conto, ou talvez num
só, que já recordamos;
No primeiro Natal, Ana era feliz
com Azeralc, mas no seguinte
começou a devolver Azeralc
à terra, arranhou Oinotna
e não saiu de junto da cama
articulada da enfermaria
o natal todo;
deu muitos beijinhos à menina,
que ainda se riu a ver televisão
e a ver os palhaços e as festas
com confetis e a sentir o mimo
dos homens e mulheres de sorte;
mas, como nem todas as tragédias têm de ser tragédias
o tempo todo, também nem sempre é possível seguir
em frente; Ana não seguiu.
Quando Azeralc lhe disse que estava tão cansada
era dia de reis, Airf diria que a estrela de belém,
como corpo de crianças sem sorte,
é um insuportável cliché,
mas este conto fechará a transbordar dessa
matéria, a dos homens e das estrelas de que
falou Herberto,
Azeralc estava sentada na cama a receber um mimo
de reis; quando Ana lhe estava a explicar
o que ela podia fazer com uma lanterna
de leds com uma bateria extraordinária
a estrela de belém, no enfiamento da janela
da enfermaria, quase a cegou, porque
acabara de incorporar
Azeralc; quando Ana
olhou para a filha,
viu-a dormir sem sinais de
desfalecimento ou apneia;
quando percebeu a morte,
ela sim, desfaleceu,
e, durante os natais seguintes,
onde tudo para ela foi insuportável e
sem recuperação possível,
Ana
sentiu a culpa de cada minuto que
perdeu de Azeralc, cada momento
ao acordar, cada segundo a mais que
demorou a responder às chamadas
da filha, cada momento que passou
a fumar na varanda dos fumadores
da enfermaria, e isto não era só nos
natais, era sempre;
então morreu Ana
"talvez por delicadeza" ou de
uma incurável tristeza