2015-11-25

Discurso Galego


Santiago de Compostela, Escola de Idiomas, 23-11-2015, 20h, Nortear, Universo Literário Comum

Quando ouvimos os discursos oficiais, metade do tempo é coloquialismo – ninguém diz nada de importante antes de se dirigir a toda a hierarquia presente. De certa forma, acredito na ordem como organização da capacidade de escutar, e quase ninguém tem capacidade de escutar. Não porque sou revolucionário, embora aposte em cavalos de tróia, mas porque me dirijo sempre aos presidentes e aos directores quando os vejo incomodados com a beleza.

Assim a regra mudou.  Por isso, Cristina Rubal, que vens em vez do Anxo, que é um nome belíssimo que em Portugal só se usa nos nomes de família e quase sempre no plural, não me dirijo a ti porque és subdirectora xeral das Bibliotecas da Galiza, mas porque celebro ter-te conhecido aqui e ver-te vibrar e emocionar, não apenas connosco, os protagonistas, mas com a audiência em frente, os anónimos, aqueles que hoje, provavelmente, nós não conheceremos ainda. Vladimir Nabokov, numa carta à sua mulher Vera, dizia que tinha a sensação que os anjos estavam todos no céu a fumar com ar de culpados, e que, quando o Arcanjo passava, deitavam os cigarros fora, à pressa, sem os apagar, e que isso, para Nabokov, é que eram as estrelas cadentes. Pois estou certo de que para ti também, Cristina.

Senhor Director Gonzalo, não precisava de me dirigir a ti no intróito do meu discurso, porque creio que já cumprimos todas as etapas da condição da amizade, mesmo antes de nos conhecermos. Nem sempre é fácil como foi contigo, por isso não te dirijo o discurso, mas amizade, respeito, mesmo esta paixão comum pela literatura.

E não me dirijo a ninguém de Portugal, porque Portugal está sempre comigo, dentro de casa. Talvez só me dirigisse a Portugal se ganhasse um óscar – é certo, e isso garanto-vos, que se me deixarem viver tempo suficiente, ainda ganho um óscar para Portugal, até para explicar aos americanos onde fica. Mas os galegos sabem onde fica Portugal.  Portugal é o seu corpo no mapa, o corpo de uma cabeça brilhante chamada Galiza.

E tenho pelo menos uma religião: a negação de mim como centro do mundo. Não  professo a fé de quando os escritores aparecem perante uma audiência apenas com a experiência e a sabedoria e não trabalham, não se tiram do centro, não fazem da audiência e dos pares ao seu lado o centro do mundo, o objecto do momento. Não fazem tudo para se apaixonarem e deixarem que se apaixonem por eles. Não oferecem o corpo, os abraços, a voz, os beijos, a saliva que separa as palavras umas das outras e até as queima, como queima as línguas dos outros. Creio nas nossas línguas assim, num beijo, em fogo, formando parte de uma unidade quando se juntam, e sendo indivíduos quando separadas, como os grandes amores, durmam na mesma habitação ou em habitações diferentes.

Grande parte deste texto estava escrito antes do terror de Paris, mas não pensem que, porque é moda ou anti-moda, eu vou deixar de disparar sobre vocês, eu vou fingir que cada reunião pública não é um acto de coragem e liberdade, principalmente de quem se senta na plateia. Porque, vejam bem, a alternativa é o conforto do espelho, é o curriculum do escritor ao espelho.  Em vez de falares de ti, escritor, de dizeres o teu nome, escritor, diz o nome da mulher em frente a ti, diz o nome do homem  em frente a ti.

Roberto Amarelle, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Alberto Crespo,  não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Aida Cuiñas, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

O Roberto não gosta de cinema, mas como poderia o Roberto gostar de cinema, se está ocupado a viver as aventura do Capitão Alatriste, do Arturo Perez Reverte?

O Alberto já gosta de cinema, do filme Abre os olhos, de jogar futebol com o Ronaldo na quinta privada que têm na praia e de comer comida mexicana e passar o tempo entre costuras.

A Aida, que tem um nome de grandes obras literárias e é a protagonista do meu primeiro romance, A Manhã do Mundo, onde estão todos os 11 de Setembros e todos os Charlies e Atocha e Londres e Paris, é mista no comer, Pilates e caminhada no mover, Inodchina no ver, mais de cem anos de solidão no ler e uma casa com jardim.

Carmen Regueiro Dopazo, não te protejas, não caias na trincheira.

Ana Valladares Fernández, dá-te.

Monica, de quem não sei o apelido e por isso vale para todas as Mónicas, Mónica, a charla é sobre ti.

A Monica, de quem não sei o apelido, é vegetariana e gosta da actividade que mais faz crescer, que é dormir, gosta de ver drama político e de ler poesia, filosofia, ciência, as vésperas de leviathan, e não sei se aqui véspera se diz no sentido de dia anterior ou de final de tarde. Para mim, Monica, é final de tarde na tua casa de campo.

A Carmen sobe montes e vales por caminhos ínvios numa bicicleta estática e não gosta de comédias absurdas e formará a sua própria novela numa casa longe de tudo onde não haja contaminação.

A Ana Valladares tem algo que me fez parar logo, é um detalhe, faz parte dela e de mim ao mesmo tempo. Valladares é o nome dela e o nome da vila onde eu moro, da praia onde eu escrevo e onde me banho e tomo sol. Não pode ser coincidência, Ana. Nunca é. Ficas na obrigação de visitar essa vila portuguesa, porque eu já te visitei a ti. Até porque, como tu, me deixo encantar pela comida-lixo de vez em quando e vou comer ao mundo todo, a Itália, à China e ao La Pepita, em Vigo e hoje vou chegar a comer em Santiago. E é fascinante que o teu desporto favorito seja andar aos cogumelos e às castanhas, passear, perderes-te por ruas ou povos desconhecidos. E é tão bonito parar o carro e meter no maleteiro uma mesinha antiga antes de ver um filme com mensagem social. E gostas dos livros todos, por isso, sim, vais acabar por chegar aos meus, a mim e ao Valadares do Porto, Portugal.  Só tenho pena de não ter estufa nem chaminé em casa, Ana Valladares.

Alexandre Vizinho Aguirre, a charla é sobre ti.

João António Calo Pouso , não caias na trincheira.

Cristina Sobrado, não te protejas, dá-te.

Alexandre, só com o tema da trilogia do Padrinho, do Coppola, e a tua vontade de visitar a cidade onde eu nasci e vivo, o Porto, não nos calaríamos durante dias, mas há uma condição: espero que concordes que o Padrinho só tem dois filmes bons, e que o III é mau. Curiosamente, o que achávamos na altura ser um acesso de nepotismo do pai Francis, a apresentação da filha debutante, Sofia, ao mundo, veio a revelar-se premonitório, porque hoje a filha Sofia é mais brilhante a filmar do que o pai Francis.

João António, será que percebi bem? A qualidade do companheiro viajante deve ser brincalhão? Se percebi, talvez isso baste. O humor é uma virtude superior.

Cristina, tu gostas de comer na rua, de visitar a cidade, de te rires com a Costela de Adão, e ficar o resto da vida a ler Crime e Castigo, do Dostoievsky. Pois, é isto: está tudo dito. Basta querer fazer o mesmo.

Maria Tilve, não te protejas, não caias na trincheira, dá-te. A charla é sobre ti.

Maria, tu que tomas um pequeno-almoço tão forte que a comida não te vê durante o resto do dia, tu que amas Mia Couto com todas as tuas forças, como eu, fica sabendo que ele é, há mais de dez anos, o meu candidato para o próximo Prémio Nobel da Literatura em português, neste caso para Moçambique, e que, apesar de trocar correspondência com ele, como par, tenho veneração tão grande que o pudor me deixa calado quando nos encontramos pessoalmente, logo eu, Maria, que nunca me calo! Pois sei que amas Portugal e que, podendo, vivias o resto da vida, e até morrias nos Açores. Só não sei em que ilha, tens de me dizer antes de eu me ir embora, em qual das nove ilhas irias viver e morrer, Maria Tilve. E, antes de te despedires da Galiza e navegares para os Açores, passa pelo Porto e diz-me como descobriste o sal das palavras novas do Mia, palavras que são novas em todas as línguas.

Uma canção recente da genial cantora mexicana Natalia LaFourcade começa assim. “Esta historia terminó, no existe”. Pois aqui é exactamente ao contrário. Tudo acaba de começar.

Os nomes, anónimos há minutos, tornam-se subitamente gigantes e o centro deste mundo. Este é o movimento. O escritor, o artista, a figura pública, deve tirar-se do centro. Essa é a diferença entre escritores vivos e escritores mortos. Pois muitos dos escritores mortos estão bem vivos em nós, mas os que estão mesmo vivos não se podem comportar como se estivessem mortos, desaparecer do mundo, exaltar o silêncio de forma gratuita.

O universo literário comum é o universo. E tu tens de escutar o universo. Só há problema quando não escutas, quando ignoras. Se escutas, lês. Se olhas em volta, se procuras, se não sais de tua casa e vens à casa do teu irmão galego, nunca descobrirás que há literatura em lado nenhum. E ignoras o teu vizinho. E então tens medo de morrer sozinho e ficas furioso por ninguém te ouvir a ti. Isso é o suficiente para me querer, não escutar, não ler, mas matar. Nunca me matarás se eu te ouvir, se eu te ler, se eu me der a ler.

Como não podemos ter medo de terroristas e armas, também não podemos ter medo de gostar, de chegar perto, de deixar chegar perto. A rapariga sul-africana que se fingiu de morta no Bataclan, e cujo testemunho no facebook foi lido por milhões, disse que, quando estava deitada entre os corpos ensanguentados a despedir-se da vida, em nenhum momento pensou nos assassinos, mas nas pessoas que amava e que a amavam a ela, e garantiu aos familiares dos mortos que eles também estavam a pensar nos que amavam e os amavam a eles, não a perder tempo com o medo.

Como postou a Loaira, da Livraria Ciranda, no seu facebook, de um jovem escritor brasileiro, Gonzaga Neto, “Em tempos de gente seca, chova amor”, que em galego tem a mais bela palavra, que não existe no português e eu aprendi com a Ledicia:  agarimo.

Eu sinto falta de que me toquem e de que se chore mais vezes. Não um choro vazio e egoísta do “Olha para mim”, mas alguma coisa física e violenta por não conseguirmos aguentar a beleza cá dentro. Acontece-me muitas vezes com os poucos amigos íntimos: no Porto até temos o hábito de nos insultarmos por amor, porque não aguentamos a beleza dentro do peito. Esse é que devia ser o nosso universo comum: se nos tocarmos, fisicamente ou intelectualmente, entendemos tudo o que dizemos em qualquer língua: vão perceber porquê quando terminar esta leitura.

não creio na frialdade, pero que a hai, hai

Há uma palavra em galego que é muito mais bonita e completa do que em português: ilusion.

Ilusão, em português, não é virtude. Mas é virtude em galego. Vou daqui com uma decisão: vou começar a usar a ilusão em português como uma virtude.

O universo literário comum do norte de Portugal e da Galiza não é uma questão política ou linguística. É uma questão de carne, de escuta, de atenção. De agarimo.

Tenho um problema grave com a minha interlocutora, Ledicia. Quando comecei a ouvir o que ela escreve, repito, a ouvir na minha cabeça o tom das frase e das palavras da Ledicia, postas como ela as põe na pauta, reconheci-me. É o lado bom do espelho, quando olhas da parte de trás e reconheces um igual. A Ledicia é igual a mim, mas a Ledicia é muito melhor do que eu. Ainda botei os olhos ao Recinto Gris, ao Animal chamado néboa, à Escarlatina, e não encontrei nenhum livro infantil, nenhum livro juvenil ou adulto. Só literatura. E incomodei-me com a beleza, como te prometi, Anxo, que tu também te incomodarias.

Ledicia, não te vou perguntar o que pensas sobre nada, mas o que sentes sobre tudo.

Ou então, vou perguntar outras coisas para fingir que não somos todos frágeis, por exemplo,  o que era o caderno rubio que a professora te quitou? E porque é que a Marta ainda o usava? E porque é que a Marta, que era a mais guapa da classe, tem de escrever grande, Ledicia? Tens algo contra as formigas em forma de palavras, Leidicia, contra segredos escritos baixinho? Fizeste chorar a Marta como Mario, Ledicia. Não é grave, é dramático, como ela disse.  Depois chamaste-lhe pécora, que é uma palavra muito bonita em português, porque não se usa muito e soa aos cobertos dos casamentos, não a prostitutas. Pécora é uma palavra bonita em português. Agora podes escrevê-lo trezentas e trinta e três vezes, Ledicia. Nenhum português pensa em loira quando ouve rubia, mas o galego tem a palavra ruiva e usa rubia para loiros, mas a professora explicou que, afinal, rubia é ruiva e loura é loura. Faime caso, Ledicia. Faime caso, porque, se não me fazes caso também te pego um chiclete ao cabelo e depois alguém vai ter de te cortar uma madeixa e nunca mais serás a mesma. E a verdade é que, se me fazes caso, podes fazê-lo em qualquer língua. Não me importa. Saber escutar é invisível como o agarimo, a eternidade, a pena, o ar, o norte. O nosso norte. E cito-te, Ledicia:

Abrir comiñas: “Há muitas coisas importantes que são invisibles. Air, pena, amor, norte. O do norte é uma coisa rara. Porque, ainda que te dirijas para ele, nunca chegas. Sempre há outro norte mais ao norte que esse onde estás.  E assim podes passar a vida, indo para norte. Eternamente. “ Fechar comiñas, porque Ledicia não se escreve entre comiñas. Ledicia está aqui. Que sorte que Ledicia está aqui.

Quando eu era pequeno e passava a velha ponte de Valença para Tui para comprar caramelos, para mim a Galiza era só uma rua pequena junto ao rio Minho com lojas. Tendas. Tenda sim, tenda sim. Estávamos horas a mostrar os documentos à polícia da fronteira para passar uma ponte de ferro e caminhar quinhentos metros para lá e para cá a comprar caramelos. Não estava mal que a Galiza fosse só uma rua. Ainda é isso para mim. É infinita, mas também é só uma rua onde eu caminho a escutar coisa invisíveis. É perto. É minha.

E, apesar de todas as nossas semelhanças e raízes comuns, o que me encanta, na literatura e na vida, é a diferença. E a comunicação como ponte sobre os desfiladeiros. Gosto dos estrangeirismos, gosto de escrever com palavras mais galegas do que portuguesas, ou portuguesas com sotaque brasileiro ou galego, gosto da liberdade de falar como me apetecer.

Gostava de fazer asneiras e dizer palavrões em galego – é a primeira coisa que se deve aprender, a fazer asneiras e a dizer palavrões.

Sou poliglota, mas comunico numa só língua, que as contém a todas, como os beijos.

E porque eu gosto de todas as línguas, também sei que, se eu fosse refugiado e estivesse cansado e pedisse a uma mulher síria para adormecer o meu bebé, ela lhe cantaria uma balada em árabe e ele entenderia.

Entenderia a paz da sua voz e das suas palavras.

Provavelmente é isso. É essa a solução para um mundo melhor. Aprendermos estratégias com  a música. A música que nos fala sem palavras ou com palavras que não entendemos e, ainda assim, comunica.

Adormecermos com um canto de embalar nos braços de outra mãe.

Pois a minha outra mãe é, faz muito tempo, a Galiza.

Obrigado.

 PG-M 2015
foto da Escola Oficial de Idiomas de Santigago de Compostela

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