2015-07-31

(Volume 6) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália - Novelle Italiane


VI   (volume anterior aqui)

Bernardi ficou consumido com o poema. A poesia pode ter esse efeito: sintetizar todos os sentidos do universo com a palma da mão que se abre para nela pousar o mundo ou outra mão, que é o mesmo. Foi por isso que Bernardi me passou a mim, Dez-cartas, a responsabilidade de escrever a crónica final em jeito de comentário desportivo. Os nossos meninos começaram e continuaram a perder, mas, a cada "Portuguesa", sentia-se incólume a alma lusitana que planava sobre as montanhas de Aspromonte. A forma mais dura e eficaz de aprender em qualquer nível de desporto é perdendo, com a vantagem de baixar a guarda dos adversários. Na verdade, tinham ganho em Dezembro à Espanha, que viria a ser segunda classificada numa final com negra a 16-14. A Itália tinha, realmente, um nível superior a todas as outras selecções, mas às vezes também se ganha com o coração. E ganham-se corações. Começar a perder e acabar a ganhar fez da equipa portuguesa a mais simpática de todas, com claque italiana nos últimos jogos. Giusy Bonini foi a intérprete e tradutora da selecção portuguesa, mas, além disso, trouxe para o Palazetto sport de Cinquefrondi uma cintilância que fez dela e de Gianluca, o rapaz das finanças do bar, as luminárias nativas das quinas que eu e Bernardi íamos polindo nas águas quentes do Mediterrâneo todos os dias. Vou contar-vos uma coisa extraordinária. No final do primeiro jogo, não sabíamos bem que direcção seguir para sair de Cinquefrondi. Então abordámos um casal maduro muito bonito, ele mais de dois metros, ela quase um e noventa, aquele tipo de loira italiana sobre a qual desceu toda a classe: "Prego, per Nicotera?", e ela, simpática, "oh, no lo so, ci stiamo arrivando da Bologna", e logo eu, "e noi da portogallo!"; ficou um sorriso também no marido gigante, mas o Bernardi não avançou. Quando olhei para ele estava com a boca aberta, em suspenso. Dez-cartas, disse-me, eu esperava tudo, garanto-te, mesmo tudo, menos encontrar aqui, em carne e osso, um ídolo da minha selecção de sempre, um dos seis, nunca. Quem, aquele gigante? Aquele gigante era o Gardini, o central que alternava com o Lucchetta. Não me digas. Digo. Queres ir pedir-lhe um...? Ah, não, não. E a semana continuou. Toto, o velho tiffosi teórico do clube local, o Jolly Cinquefrondi, falou das tácticas e das direcções ideais que il portogallo devia dar ao seu jogo, do que estava a falhar e do que o allenatore Guerra devia fazer, e Bernardi só lhe dizia: o que está a falhar é a cabeça, e é isso que neles vai crescer, mas dentro do crânio e de forma imaterial, que aqui não curamos dos grandes avanços da neurologia. Toto ouvia, mas não acreditava, que aqueles meninos eram muito mais do que estava à vista e então chegava a compará-los à célebre geração dos fenómenos italianos, que tinham vindo do nada, e estava sempre a apontar para Gardini, para Gardini, para Gardini, e a falar das jogadas do mundial de 1990, o que para Bernardi era música. Toto não ficou muito espantado quando Bernardi lhe explicou que lhe chamavam Bernardi precisamente por causa disso, pela sua obsessão pela mesmíssima equipa, que tinha como uma espécie de ídolo colectivo, mas essa ausência de espanto é muito típica, não dos calabreses, mas de todos os italianos, que foram uma eternidade, e ainda sentem que são o centro do mundo. Foi esse centro do mundo intumescido, ensoberbecido, do italiano Toto, que quase deu a primeira e única desinteligência da semana. Depois do primeiro set do Portugal - Itália, Toto passa junto ao court e faz gestos para a bancada, na direcção de Bernardi, que se tornara seu companheiro de conversa e intervalos. Estendeu as duas mãos abertas e depois fez um dois com os dedos, "dodici punti", disse, voltou a estender as duas mãos abertas, depois mais uma e outro dois com os dedos, "diciassiette minuti", e seguiu caminho na direcção do bar de Gianluca. Bernardi desceu calmamente da banca, o peito ebulia, chegou-se ao mesmo bar, cheio de italianos, e disse, em italiano escorreito: "Non ho bisogno che mi ricordi i punti o i minuti". E, imediatamente, funcionou a generosidade italiana. Perceberam que não estavam num refrega regional, mas numa disputa internacional que era de crescimento para todos: eram crianças a virar homens, senhores. "Hai ragione, Bernardi, hai ragione", disseram Gianluca e Nicola. Toto tomou as mãos de Bernardi, olhou-o nos olhos e ainda disse "Scusa" e pagou-lhe tudo o que ele precisou do bar naquela noite. Repetiu esse "Scusa, Bernardi" mais umas vinte vezes. Bernardi, olímpico, ainda declarou, para todos ouvirem: "per me, questi ragazzi sono tutti della stessa squadra". Até serem seniores, precisou. Mas mesmo depois, porque é natural que muitos joguem no estrangeiro, na mesma equipa. Gardini, sempre a uma distância higiénica, como convém a qualquer ídolo, tinha vindo ver o filho jogar numa jovem selecção italiana onde também evoluía o filho de outro ídolo da selecção de 1990: Cantagalli. Gardini ouviu o protesto límpido do português, ele e Aldo Bonini, eminência local. Aldo estendeu a mão a Bernardi e disse: "Grazie per la civilitá". Gardini, gigante, cingiu Bernardi pelo ombro e tomou-lhe um cachecol dos "Portugal Young Braves". "Posso?", perguntou Gardini. Bernardi, de todas as cores, deixou que Gardini levantasse o cachecol e o fizesse pousar sobre uns ombros imensos. Disse "obrigado", mesmo assim, "obrigado" em português bem explicado, mudou o braço do ombro de Bernardi para o ombro da mulher, a loira que distribuía classe, e afastou-se na noite de Cinquefrondi. Bernardi, que depois do poema só expressava as coisas por lágrimas, expressou-as uma vez mais. Gardini, o seu ídolo, tinha os ombros universais forrados do futuro dos meninos: "Portugal Young Braves". No dia seguinte, sem ninguém o esperar, Portugal U17 reconheceu-se finalmente ao espelho na manhã calabresa, foi imperial e venceu a Holanda por 3-0. Não que perder fosse mau, mas ganhar é outro tipo de identidade e talvez a poesia e a literatura não cheguem. Gardini sim, chegou e sobrou.

(continua no Volume 7)

também pode ler Volume 1, Volume 2, Volume 3 ,Volume 4 e Volume 5
Dez-cartas 2015

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