2015-07-28

(Volume 2) Sostiene Bernardi e o Voleibol em Itália – Novelle Italiane



II   (volume anterior aqui)

Brasil, Maracanãzinho, 27 de Outubro de 1990, cerca de vinte mil brasileiros nas bancadas, algumas centenas de italianos, meia-final do mundial de voleibol, joga pela Itália a chamada geração dos fenómenos, mas a equipa que limpava tudo, com um magnífico Joe Despaigne como estrela, era mesmo Cuba; – expliquei eu ao Dez-cartas, tentando abstrair-me das manobras do avião no aeroporto de Lisboa,  a preparar a descolagem. Pedi ao Dez-cartas para ficar à janela, era a primeira vez que andava de avião, tudo me parecia fora de escala, tudo menos a jovem selecção portuguesa. Tivemos de ir apanhar o voo a Lisboa, a Nádia, da agência de viagens da nossa aldeia, disse que era a melhor alternativa tão em cima do Europeu, protestou por terem marcado a prova para tão longe e o Dez-cartas ofereceu-se para levar o carro dele – que por acaso é um Panda – até Lisboa e, como viemos de madrugada e o voo era logo às seis e tal da manhã, eu sugeri ao Dez-cartas que deixasse o carro mal estacionado num quelha perto do aeroporto que eles chamam de segunda circular, parece que é a viela que define psicologicamente as classes de tiffosi portugueses e os divide entre o verde da esperança e o vermelho da paixão (há uma versão pessimista, diria mesmo arrivista, de que aqui não curaremos), disse o Dez-cartas e eu não tenho culpa, porque eu só abri a boca para lhe explicar que o preço do reboque pelo estacionamento na segunda circular era mais barato do que o estacionamento no aeroporto durante uma semana. O Dez-cartas manobrou o carro numa zona da segunda circular em que não há rails de protecção e deixou-o ali perto da BP, à sombrinha, debaixo de uma árvore de um jardinzinho muito bonito e prático. Tirámos as bagagens de mão e fizemos aquele bocadinho a pé. Como só levávamos bagaglio a mano, a Nádia disse que podia fazer o check-in online e que podíamos ir directamente ao controlo de bagagem. Como não sabíamos bem como fazer isso, perguntámos a um senhor com uma camisa da Ana, não que algum de nós conhecesse a Ana, mas porque nos pareceu o mais prático, mas ele limitou-se a falar para um walkie-talkie e a gemer monossílabos que nenhum de nós entendeu. Eu sorri-lhe, o Dez-cartas sorriu-lhe, mas nada: ficou, não impávido, não sereno, mas teso e com umas gotículas de suor a escorregar-lhe da testa que o Dez-cartas me explicou serem a sublimação da fúria. É nesta altura que vemos os miúdos da selecção nacional que virão a ser os nossos ídolos e o nosso refúgio, não no farwest, mas all’estremo sud. Primeiro salvamento. Eu e Dez-Cartas estamos vestidos de verde e vermelho da cabeça aos pés, com cachecóis alusivos que adquirimos ao merchandising oficial e dizem “Portugal Young Braves”, para serem entendidos pelo mundo inteiro. Consigo um autógrafo do André M e do Diogo O, porque os outros, embora com aquele sorriso lúteo do medo, não se chegaram às fitas exteriores do check-in. Os corredores para controlo de bagagem são em zigue-zague: faz-se um quilómetro para percorrer quinze metros. Tenho uma condição cardíaca e a menina da segurança, que está formatada para intimidar, tem de me abraçar e amparar. Nem assim consigo passar os líquidos, e tenho mesmo de pagar três euros por uma garrafa de água na zona de trânsito. O embarque foi mais calmo e eu até percebo certas pessoas mais experimentadas que querem fingir que viajar de avião é o seu dia a dia. Nunca olham para os quadros de informações ou, uma vez dentro do avião, também não olham pelas janelitas, lêem muito e nunca rebatem a cadeira antes do tempo, como nós, parolos. E, como eu antecipei que a descolagem ia ser um momento definidor no meu espectro gnoseológico, preferi desviar o assunto para a geração-fenómeno italiana nessa meia-final do mundial de voleibol de 1990. A equipa principal costumava ser Lorenzo Bernardi, claro, e Luca Cantagalli como pontas, Zorzi a oposto, Paolo Tofoli distribuidor, e os centrais, dois Andrea: Gardini e Lucchetta. Lembro-me disto, não sei se foi mesmo assim, mas tu percebes, Dez-cartas. Brasil e Itália estão empatados a 12 na negra. O "murazo" italiano opõe-se ao ataque brasileiro. 13-12 para a Itália. Na jogada seguinte, Bernardi recebe como nos livros, Tofoli passa – colocando as mãos de forma a que o central brasileiro sinta que tem de saltar ao bloco para um bola rápida do central italiano, mas Tofoli empurra a bola para a ponta e Cantagalli bate à linha; 14-12;  Brasil faz um ponto, 14-13, e serve, recebe Cantagalli e corre novamente para a ponta, Tofoli coloca outra vez as mãos de forma a não serem lidas e faz o passe curto, em salto, para o central, Lucchetta, que bate limpo para a zona um. Quer dizer, a bola cai ali na zona intermédia entre a um e a dois. A Itália está na final do mundial do Rio de Janeiro. O avião está no ar. Dez-cartas já dorme. Os miúdos da selecção vão sentados a dez metros de mim, mas, apesar dos meus acenos, nem um olha. Que profissionalismo. Penso que, mal Dez-cartas acorde, tenho de lhe explicar que a final do mundial de 1990 vai ser Itália-Cuba, que Cuba ganhou na primeira fase à Itália por 3-0, e que se ergue esse monstro do voleibol mundial que é o Joel Despaigne, que atacava a mais de quatro metros de altura, bloqueava apenas quinze centímetros abaixo e chegou às trezentas e cinquenta internacionalizações por Cuba. Curiosamente, é um ídolo popular, porque os lugares oficiais tendem a ignorar os diamantes do Fidel, o Despaigne e, mais tarde, o Leonel Marshal, que tinham algumas parecenças em estilo de jogo (dizem as lendas que Marshal chegou a saltar 1,70m). Despaigne acabou por vir, claro, para Itália, onde todo um povo, do voleibol e fora dele, o venera e respeita. Treina uma equipa da segunda liga italiana, mas não sei se ainda salta mais de um metro. Aposto que sim. Esperem que o Dez-cartas acorde para eu lhe contar isto. Não falta muito para chegar a Roma.

(continua no Volume 3)
também pode ler o volume 1 aqui
PG-M 2015
fonte da foto (Andrea Lucchetta)

2 comentários:

Helena disse...

Olhem só o grande Lucchetta! Costumo ver o ex-campeão a comentar ps jogos que o meu marido vê. Vou pôr a leitura em dia e ler tudo per ordem correcta! Ma quanto mi manca l'Italia.

Pedro Guilherme-Moreira disse...

Faz isso, Helena :)