2010-02-04

Testamento

Quando eu morrer, quero coisas simples.
Quero que o meu epitáfio seja publicado na secção cultural de alguns jornais e diga simplesmente "Morreu o escritor mais pequeno do mundo. Tinha quase dois metros de altura e mais de cem quilos de peso e morreu como outra árvore qualquer: erguido. Quer que se esqueçam do seu corpo e nunca sejam obrigados a ler os seus livros, mas que os releiam à luz da sua ausência."
Quero que me americanizem o velório e o funeral, deixando as pessoas expressar-se, usar cores como o vermelho e escrever-me bilhetinhos que podem deixar nos meus bolsos ou forrando o meu caixão. E que me vistam uma roupa confortável que me tivesse posto bonito em vida, e nunca fato e gravata. Imprimam este Testamento e o posfácio ("E agora morri") e coloquem-nos visíveis, num suporte, junto ao morto, para que as pessoas saibam que rir durante o velório é altamente recomendável e as beatas de serviço o registem no seu diário de bordo.
Aos pés do caixão, quero a toga de advogado e a capa de Coimbra, e que tragam para o enterro mais capas e togas negras de todos os lados e credos.
Como único momento solene, que passem uma boa gravação da "Lacrymosa" quando o caixão estiver a entrar na igreja, tal como fazem com as marchas nupciais à luz do vestido branco das noivas.
Quero funeral sem missa, com os Azeitonas a cantar o "Anda comigo ver os aviões"(lamento, mas tem a pureza da minha terra e das aspirações mais simples) ou só a harmónica do Salsa - já que o Brel não pode estar -, e que por favor levem a minha miúda à América se eu não o conseguir fazer até lá.
E chamem os miúdos da Xico d' Holanda (voltem, "Ineses"!), da Inês de Castro, do Colégio dos Carvalhos, do Bonança, da Adriano Correia de Oliveira (Esposende) e da Avelar Brotero (a Micaela Marcedo será sempre a minha leitora mais importante, porque não gostou de tudo depois de ter gostado muito) para dar comprimento ao tempo - e que se cumpra, podendo (se for dia de Pinheiro, deixá-los, mas que se avise a escola e se tire partido do silêncio: vão dizendo em toda a parte, enquanto os bombos ressoam,
o escritor morreu
o escritor morreu
o escritor morreu).
Quero ser enterrado numa campa de cimento onde as pessoas possam escrever livremente, e não quero flores ou decoração alguma, apenas uma fotografia anual aos escritos da campa e à Magnólia que eu gostava que fosse plantada no centro dela, e que crescerá comigo, porque dá flores no Inverno e eu também. E no acto do enterro quero que uma galega toque na sua gaita de foles uma breve melodia lenta e triste para que a vida que acabou de cessar ganhe profundidade. Quero que seja o Canto da Pena, do Milo Romero. Quero que se esqueçam de mim no Verão e se lembrem e riam de mim no Inverno por eu gostar da chuva de sul, que afasta o frio e purifica a alma.
Quero que as pessoas se reúnam para comer e beber à minha custa logo a seguir ao funeral, e que passe o "Creep" dos Radiohead em fundo, mas na versão do Clint Mansell, que é uma música que me dá sempre a perspectiva correcta da vida.
Não quero culto de fotografias minhas, mas que usem e abusem de todos os meus textos, onde disse basicamente tudo o que queria dizer a todas as pessoas do mundo que alcancei. Quero sim que espalhem pelo aparador fotografias de todas as divas de que falei no meu blogue e que lhes escrevam com uma cópia não traduzida deste Testamento, mas, e isto é importante, no centro do aparador, entre as divas, tem de ficar a mais bela fotografia da minha mulher. Pode ser aquela de Veneza, em que ela, no quarto do Rialto, ofusca o pôr-do-sol ou a de Monforte da Beira onde, mais madura, estão tão bonita como é ao vivo.
Num das pontas, se eu algum dia a encontrar, quero um fotografia do outro amor da minha vida, que para mim é o mesmo e só ficou vago para a minha companheira de uma vida porque não se podia cumprir tão cedo, a menina de cabelo curto de Olhão, que não é segredo, mas que eu nunca disse ou contei a não ser aqui; se eu a não encontrar, que fique a moldura só com a frase "menina de cabelo curto de Olhão".
Gostava de lá ter fotografias da Catarina Lacerda, da prima Sónia Ungaro, da Micaela Marcedo e da colega Anabela De Almeida Rodrigues, também, porque foram as mulheres não minhas que melhor me souberam ouvir durante a vida. E a fotografia de um homem que soube ser meu amigo a sério: Carlos Nuno Granja. Digam baixinho à doce Cristina Graça e que ela e a sua Luz de Tavira se encham dos seus próprios nomes. E dos canais e moliço de Aveiro venham navegando a Mariline e a Cristina Vicente que não me deixarão nunca curto na forma de ser e na judiciosa e bem humorada ontologia da Joana Rita Sousa fiquem as gargalhadas e abraços que demos conhecendo.

E, sem culto, deixem a Mar Babo fotografar a essência, a alma, as sombras, a luz, talvez a clareza, até que ascenda, talvez a clareza, sim, antes e depois, se ela ligar as imagens desse dia às palavras de sempre. E chamem o Paulo Lima para ele explicar o que são dois verdadeiros amigos feitos de coisas tão diferentes, unidos numa essência qualquer que com gargalhadas e palavras terminadas em "ão" será decifrada. E chamem a Clara Amorim, chamem depressa a Clara e peçam-lhe que seja na morte o arauto que foi em vida e que faça tremer o mundo dando ao pobre poeta maior tamanho do que a sua real pequenez. E irrompam numa aula da Cláudia Monteiro e digam-lhe que faça o corpo do morto apenas pelas palavras e pela memória que lhe deixou e que depois o leve pelas salas de todos os colégios e escolas que puder e enquanto a voz lhe der. E digam à Alexandra Gonçalves da Rádio Nova que morreu o companheiro de recreio - que ela há muito sabe que não são só palavras, é a carne da rádio no silêncio dos microfones abertos. E à vizinha Andreia Carmo, o anjo a norte, que pequenina se agarrava às minhas pernas e nunca largou. À Bárbara Loução porque tudo ficou incompleto sem a mana a partir antes de mim e ela sabe porquê. À Tânia Ganho porque não tinha passado o muro sem ela, à Ana Ganho porque me segurou deste lado.
Quero que todos se riam do gigante que caminhava e corria de forma pendular e com os pés para o lado e passava a vida a querer arrancar aos outros, a toda a força, o mesmo riso que queria para si vida e morte.
Quero que no dia dos meus anos se reúnam os meus amigos (chamem-lhe o dia do escafandro-mor) para se celebrarem a si próprios e ao que de bom me deixaram, e que propaguem isto pelas gerações, nessa ou na data do último a morrer, sem nunca esquecer o nome de cada um. Não se esqueçam de me guardar sempre um lugar no almoço dos escafandros coimbrãos na véspera de Natal, mesmo que o gerente de sala desconfie de que não vou aparecer.
Quero que os meus editores e herdeiros se aproveitem da minha morte para fazer dinheiro e ficar mais confortáveis, mas falem primeiro à Helena Rafael, à Isabel Cristina Mateus e ao Hugo Xavier, que ninguém na literatura tem mais inteligência e coração do que eles (só se for a Mata Pais de Oliveira e a mana Ana, gostava que as chamassem também porque se tornaram tão importantes), e deixem-nos decidir em conjunto, quero que os jornalistas meus amigos - em particular a Ana Lourenço, a Alexandra Tavares-Teles, o João Paulo Baltazar e a Ana Patrícia de Carvalho - ultrapassem os conflitos de interesse e sejam capazes de citar o meu nome na morte, porque não o permiti em vida, e essa citação final sirva a quem leve a minha luz nos olhos, seja do meu sangue ou não, sirva a que quem leve a minha luz nos olhos possa pôr os pés nas minhas pegadas.
Arranjem à Cristina Marques uma Magnólia e que a Carla Flores, a minha visceral, a ajude a erguer-me no jardim dos poetas. Liguem à Susana Fernandes, a menina da Madeira que já era minha amiga quando o mIRC era rei e se ligava a net a 28 sobre Windows 2 para lhe lembrar que ela nunca deixou de ser a moreninha deslumbrante que me ensinou que o oceano que nos separa se vence sempre, como a Carol e a Lívea ainda mais longe, lá na Poços de Caldas do sul de Minas Gerais onde fui feliz e fiz felizes. Happy. Peçam ao senhor Conselheiro Cravid para dançar em cima da campa a amizade que sempre se elevou desde o carro do cortejo. E que traga com ele a Carolina Cunha, a Eugénia, a Isabel Emídio, a Cláudia Ferreira, a Lígia e os que nunca debandaram, Xana e Matias! E, entre as colegas de curso, quero que a minha fundamentalista, vestida com a minha camisola e o emblema do nosso ao peito, seja a descoberta do século: a suprema jornalista da RTP Andrea Neves, que é tanto!
À troglofofa Teresa Pinto Mendes incumbam de voltar a mim anos mais tarde para lembrar os outros porque ela será a primeira a não esquecer. E à imperial Sandra Ribeiro, que governava melhor o Palace das Termas de São Pedro do Sul do que a própria Dona Amélia e não falha que tivessem a mesma altura e realeza, peçam para voltar despojada e doce a falar do que eu fui de passagem para sempre, como ela para mim. À "Fofinha" Mafalda cabe o coração da livreira que não quis ser por um entendimento maior do amor. À mais pequenina, também Mafalda, mas Eiras, espera o legado que entendeu em primeira linha: que lhe suceda, podendo. E ao doloroso sorriso de Matilde o abraço de sempre, onde terá de trazer a Inês e a Luísa Teixeira.
E nunca se esqueçam de permitir à Catarina Lacerda, ao Hugo Xavier, à Helena Rafael, à Isabel Cristina Mateus e à Vitoria Falabella o acesso a todos os meus inéditos, que saberão tratar e seleccionar com a curiosidade infinita do olhar, o cós subido, a postura luminosa e o amor. Mas não decidam nada antes de a mais brilhante flanêur das artes (literatura incluída) pousar os lábios no maço digital e o provar gerando o entendimento do globo: não deixem sair nada sem a Ana Snow comover e agregar e explicar o que nessas palavras vem do princípio ao fim do mundo e do fim ao princípio outra vez: ouçam-lhe os cálculos, à Ana, que à Ana grandeza não lhe faltará nunca. E se ela precisar de mais destempero apresentem-lhe à outra sublime e peçam-lhe que venha sem marcação: a Cláudia Coimbra.

Peço à Vitoria que guarde este testamento na última forma conhecida e o comunique à Vera e ao Gui, porque estarão com uma tristeza funda e confusão na alma e talvez nem saibam onde está o Testamento, o verdadeiro, que é este. Que riam, caramba, que conservem o corpo mais uns dias sempre a rir para dar tempo de chegar a isto.
E enviem o tal epitáfio com este Testamento em anexo a todos os meus contactos pessoais e profissionais e a redes sociais, para lhes dar a oportunidade de se materializarem, contrariando os maus augúrios dos que nos desmancham o prazer de ter junto a nós, todos os dias, as palavras de centenas de pessoas que se dizem, e podem ser, nossos amigos, mesmo depois do fim. Que se registe que nenhuma amizade é virtual. E que reja o que cada um sente, apenas.

E fique a família Botelho de Sousa a saber que os sobreviventes da Casa Moreira têm neles o conforto formal, mesmo que já tenham mandado o Direito às malvas, o abraço do "não te preocupes com nada, Vera", o colo, e na pessoa da sua artista maior, Rosarinho, que há-de ter perdido o diminutivo mas nunca a excelência, a explicação da morte do escritor pelo seu traço.

Antes de ser deitado à terra o tempo é curto, e, se nada ou pouco disto se cumprir, deixem estar: agora temos a eternidade.

Digam pelo menos ao Fernando Alves que está obrigado a sobreviver-me, por razões de ordem prática: uma elegia dele levanta qualquer morto, devolve-lhe a vida: e era a elegia dele que queria, precisamente por não me conhecer por fora, mas chegar mais depressa por dentro. Uns sonham com férias nas caraíbas, Ferraris, diamantes, eu com uma elegia do Fernando Alves. Com a sublime Maja Stojanovska a acompanhar ao piano.

Finalmente, se não se publicou, que se publique enfim o meu Pequeno Tratado sobre o Amor, na versão original (porque também há uma versão adaptada à mãe Mena) e que se alerte a Lenea Andrade, a menina de cabelo curto de Olhão que afinal foi encontrada, que o tratado lhe pertence. E que venha em abraço com o superlativo companheiro, João Medina Borrego Linhan.

Quero que saibam que este Testamento é apenas para que o sonho se cumpra, por não ser ninguém e conhecer o pó.

E quando estiver lá por cima, aí sim, farei papel de estrela.

Pedro

PS: Este é um texto em aberto, enquanto eu puder escrever nele.

PS2: Vou afixar este Testamento na Junta de Freguesia de Valadares, para se irem habituando à ideia da minha Magnólia no centro da campa;):):